A privatização de um patrimônio nacional

Eletrobras - linhas de transmissão
Eletrobras - linhas de transmissão. Foto: reprodução

A política econômica ultraneoliberal do plano Paulo Guedes tem dois ícones, a reforma da Previdência e as privatizações. Neste último campo, a maior das privatizações será a da ELETROBRAS, pela qual se projeta apurar R$12 bilhões para uma empresa avaliada pelo seu parque de 164 usinas geradoras com capacidade de 42.000 MW, mais sua participação de 50% na usina de Itaipu (14.000 MW), parque que para se construir hoje custaria R$ 800 bilhões, além do que o valor imaterial financeiro das concessões valeria outro tanto. A usina hidroelétrica de São Simão, da CEMIG, com capacidade de 1.710 MW, teve sua concessão leiloada em 2018 e arrematada por um grupo chinês por R$ 13 bilhões. Além das usinas geradoras a Eletrobras tem 58.000 quilômetros de linhas de transmissão, a maior rede do mundo de uma só empresa.

As últimas gestões da ELETROBRAS a partir do governo Temer montaram uma campanha em aliança com a mídia neoliberal para apresentar a empresa como quebrada, por ter dívidas de R$ 30 bilhões. Pela natureza de negócio de geração de energia com investimentos a longo prazo, as empresas elétricas em todo o mundo têm alto endividamento em torno de 45% a 60% dos ativos, a ELETROBRAS está muito abaixo desse índice e nunca esteve quebrada. Empresas geradoras de padrão internacional como EdF (Eletricité de France), Hydro Quebec, Ontario Hydro, ENEL, EoN, têm passivos proporcionalmente muito maiores que os da ELETROBRAS e nunca foram por isso consideradas “quebradas”. A campanha que quer transmitir a ideia de que a ELETROBRAS está quebrada visa exatamente a criar clima para sua privatização a preço vil e justificar essa absurda alienação de patrimônio nacional.

A importância estratégica da Eletrobras

A ELETROBRAS é uma das cinco maiores empresas integradas de energia elétrica do mundo, pelo número de usinas, pela rede de transmissão, pela abrangência territorial em um país gigante. Pela sua importância estratégica para o Brasil, é inacreditável que o Estado cogite de privatizar tal ativo de tanta importância para o País. Os países mais adeptos da economia de mercado não privatizam ativos estratégicos. Os EUA mantêm seus três grandes sistemas hidroelétricos, o maior dos quais é o TVA´Tennessee Valley Authority, como propriedade 100% federal; a França mantém sob controle estatal a grande empresa EdF, antiga Eletricité de France e a Itália mantém como estatal a NEL, hoje dona da antiga Eletropaulo. Nem vamos falar da China, onde todas grandes geradoras são empresas estatais e uma das principais empresas de linhas de transmissão, a STATE GRID, está comprando muitas linhas no Brasil.

Empresas chinesas já são donas da CPFL, 2ª maior distribuidora do Brasil e da antiga CESP Paranapanema, grande geradora, ex-Duke Energy.

A privatização já concretizada de grandes distribuidoras como Eletropaulo, Light Rio e CPFL e de grandes geradoras como a CESP em três bacias não significou nenhum ganho especial ao País, os compradores se limitaram a recolher dividendos, pouco ou nada investem ou reinvestem no negócio, a Eletropaulo teve histórica piora de serviços, com interrupções inéditas de energia por até 4 dias, algo que nunca aconteceu quando era estatal.

Dizia-se no mercado que a ELETROPAULO não valia nada, dado seu altíssimo endividamento e ser a distribuição o pior elo da cadeia de energia elétrica, sendo o melhor a geração, exatamente o forte da ELETROBRAS. Pois colocada à venda pela sua controladora AES, a Eletropaulo foi vendida por R$ 8 bilhões, como então se fala em R$ 12 bilhões pela ELETROBRAS, cem vezes maior que a Eletropaulo e muito menos endividada que esta?

A venda da ELETROPAULO desmontou a lenda “a empresa está endividada e não vale nada” que se dizia da Eletropaulo.

O jogo de mal falar das estatais atingiu seu ápice com a PETROBRAS, após a queda do Governo Dilma; dizia a caixa de repercussão da mídia neoliberal que a PETROBRAS estava quebrada, falida. Passou batido, sem divulgação que em 2015 e 2016 a PETROBRAS fez CINCO emissões de bônus no mercado internacional, inclusive uma emissão com prazo de 100 anos, todas com OVERSUBSCRIPTION, com demanda de compradores de três a seis vezes o volume ofertado. Isso jamais ocorreria com uma empresa em dificuldades financeiras, MAS a campanha, divulgada pelos novos gestores da PETROBRAS, foi necessária para JUSTIFICAR a venda SEM LICITAÇÃO, a toque de caixa, de valiosíssimos ativos como oleodutos e gasodutos, fábricas de fertilizantes, petroquímicas, subsidiárias no exterior. As próprias administrações das empresas propagando que elas estão muito mal, para justificar negócios de fim de feira, sem licitação. Há mais de dois anos há uma campanha semelhante em relação à ELETROBRAS, dizendo que “ela está quebrada e precisa ser vendida”; vozes conhecidas na mídia se encarregam de repetir isso todo dia.

A questão da integração

O sistema elétrico brasileiro é o mais integrado do planeta, porque o regime de chuvas do País é de ciclos distintos. Enquanto os reservatórios do Norte e Nordeste estão cheios e as usinas podem produzir a plena carga, os reservatórios do Sudeste estão baixos e então a energia do Norte é despachada para o Sudeste; no outro ciclo se reverte o processo. Um sistema desse tipo exige um comando central que a privatização irá complicar. O conceito de mercado opera com parâmetros distintos do conceito de interesse nacional e a energia é um componente estratégico do interesse público nacional.

Sistemas hídricos no geral são públicos, até nos EUA, onde a TVA-Tennesse Valley Authority, maior geradora de energia hídrica e mais dois sistemas de energia hidroelétrica, são de propriedade do governo americano. O papel estratégico de um sistema centralizado de energia não pode ser desprezado, trata-se de um enorme patrimônio nacional; além da geração de eletricidade, os reservatórios têm outras finalidades que exigem políticas públicas, como abastecimento de água, pesca, regulação de rios, irrigação, hidrovias, os reservatórios brasileiros são uma imensa reserva de água doce, um valor nacional inestimável, a maior parte dos quais é do Sistema Eletrobras, todos construídos com recursos públicos.

A razão ideológica

Não há uma razão de lógica econômica para a privatização da ELETROBRAS, o valor a se apurar, que se projeta em R$12 bilhões, é irrisório para justificar a perda do controle desse grande sistema. A razão na realidade é IDEOLÓGICA, visa a atender ao fanatismo neoliberal fora de época de transitórios comandantes da política econômica. A nosso ver jamais esse patrimônio poderia ser vendido sem aprovação do Congresso, pois a ELETROBRAS, assim como a PETROBRAS, foi criada por Lei e só pode ser privatizada por outra Lei.

Um jogo de cartas marcadas

O governo FHC cometeu enorme erro em abrir em Nova York o capital da PETROBRAS e da ELETROBRAS. Embora a União seja controladora das duas empresas, elas passaram a ser geridas para atender às expectativas dos acionistas minoritários e não ao interesse publico que é representado pelo acionista majoritário. A variação diária do preço do diesel executada pela PETROBRAS visou a atender aos interesses dos acionistas estrangeiros e não ao interesse nacional, causando a greve dos caminhoneiros que causou imensos prejuízos à economia brasileira.

Essa abertura de capital das duas empresas não atendeu a nenhum objetivo de interesse público, foi praticado por razões ideológicas pelos gestores neoliberais da Era FHC, quando a PETROBRAS teve dois banqueiros de investimentos (Francisco Gros e Henri Reichstul) como presidentes.

Ora, o acionista privado minoritário JÁ comprou suas ações sabendo que essas estatais são empresas voltadas ao interesse nacional, não pode reclamar dessa ser a natureza da empresa pois ele já comprou suas ações nessa condição pré-existente. Por que então a PETROBRAS e a ELETROBRAS devem ser dirigidas em função dos acionistas minoritários privados? O normal em qualquer empresa, mesmo privada, é a estratégia ser do acionista controlador, os minoritários não podem dar as cartas na empresa, seja estatal ou privada.

Hoje existem dois grupos com a maior parte das ações privadas minoritárias da ELETROBRAS, o Banco Clássico, na realidade um biombo onde está o investidor Juca Abdalla, filho do ex-deputado José João Abdalla, preso nos anos 50 e 60 por corrupção e sonegação fiscal, sendo o grupo beneficiário de uma desapropriação por valor absurdo do Parque Villa Lobos em São Paulo pelo Governo Quércia, pelo qual se pagou dois bilhões de dólares por um terreno vazio na margem do Rio Pinheiros, valor que nem o Central Park de Nova York vale e o Grupo 3 G Radar, dos bilionários acionistas da AMBEV, mais conhecido como Grupo Lehman, que também controla a empresa de alimentos HEINZ KRAFT, hoje sob forte investigação da SEC americana por manipulação de mercado. São dois grupos à caça de negócios na bacia das almas, o grupo Lehman presume-se que seja o maior interessado na privatização; já tendo algo como 14%, usou essa estratégia na compra do controle da Companhia Antarctica Paulista, pela qual pagou R$ 200 milhões; na ELETROBRAS fará então o maior negócio na história desse grupo, vai assumir quase de graça um ativo desse porte, como aliás já fizeram com a empresa CEMAR (Centrais Elétricas do Maranhão), comprada da Eletrobras por um dólar e que deu origem ao atual grupo Equatorial, que depois comprou outras subsidiárias da Eletrobras, sempre por meia dúzia de tostões.

Esse é o problema de ter no comando da economia pessoas que passaram a vida todo no “mercado”, eles não têm a lógica do Estado, do interesse nacional, do interesse público, tudo é mercado, o País ganhou o quê com a venda de 36% da PETROBRAS na Bolsa de Nova York? Não ganhou capital novo, vendeu ações velhas e o dinheiro não foi aplicado em nenhum projeto de interesse público, mas por conta dessa insensatez teve que pagar multas e indenizações de US$ 2,9 bilhões a acionistas minoritários americanos especialistas em montar processos para extorquir dinheiro de empresas deslumbradas POR ESTAREM “listadas em Nova York”; é a glória, depois vem a conta.

A privatização da ELETROBRAS é um PÉSSIMO negócio para o País, pior ainda se for por alguns trocados.

Andre Araujo
Andre Araujo, advogado, foi dirigente do Sindicato Nacional da Indústria Elétrica, presidente da Emplasa-Empresa de Planejamento Urbano do Estado de S. Paulo, conselheiro da CEMIG-Cia. Energética de Minas Gerais e atualmente é consultor de Potomac Partners, consultoria em Washington.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Brilhante artigo!
    É preciso mobilizar os brasileiros na defesa dos interesses nacionais enquanto ainda há uma nação a defender.

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