Joe Biden tomou posse: o que o espera e o que nos espera

No dia 20 de janeiro Joe Biden tomou posse como 46º presidente dos Estados Unidos. Os problemas que terá pela frente não são poucos. Com o número de mortos pela Covid-19 já tendo ultrapassado 400 mil pessoas, um dos grandes desafios de seu governo é acelerar o processo de vacinação para garantir que a economia volte ao normal o mais rápido possível. Não se trata de algo simples de ser feito, mesmo com os Estados Unidos sendo um dos principais centros mundiais de produção de vacinas.

Diferentemente do Brasil, por exemplo, onde temos uma ampla rede pública de saúde, os nossos bem conhecidos “postos de saúde”, para onde toda a população pode se dirigir para ser vacinada, nos Estados Unidos isso simplesmente não existe, ou seja, mesmo com as vacinas disponíveis não há lugares onde a população possa ir com facilidade para tomá-la. Em lugares com grandes centros universitários, os hospitais universitários podem ajudar, mas onde não há, essa operação que para nós é tão simples, para eles é muito complicada. Parece algo surreal, mas é o resultado de uma sociedade que delegou ao mercado o atendimento de necessidades básicas da população, como a saúde. Se você vive nos EUA, mas não tem um plano de saúde, você está em maus lençóis. Há milhares de casos em que famílias com pessoas que morreram da Covid-19 ficaram ainda com dívidas de milhares de dólares com os hospitais privados. É o modelo que Paulo Guedes gostaria de implantar no Brasil, pois para ele e seus “Chicago Boys” o problema do Brasil é o Estado.

 Há também o problema da economia. A economia americana vinha bem até o início da pandemia, tanto que há pouco mais de um ano era quase unânime a avaliação de que Trump não teria dificuldade de se reeleger. Com o desemprego em baixa e os salários subindo se considerava uma missão quase impossível desalojá-lo da Casa Branca apesar de seu comportamento patológico e narcisista e sua compulsão para a mentira. Com a Covid-19 a situação mudou. O desemprego disparou e milhões de americanos ficaram sem renda, dependendo da ajuda pública para sobreviver. Milhares de pequenos negócios fecharam as portas definitivamente. A economia americana encolheu, em 2020, 3,2%, a maior queda desde 1946 e o déficit fiscal chegou a 15,8% do PIB. Lá, como aqui, o governo terá que estender as medidas de apoio à população. Biden propôs um novo pacote de ajuda de US$ 1,9 trilhão, que prevê uma nova rodada de pagamentos diretos de US$ 1.400 por pessoa para a maioria das famílias do país, uma suplementação do seguro-desemprego de US$ 400 por semana até setembro, a extensão das licenças remuneradas e aumentos no valor de dedução por filhos menores no imposto de renda.[1]

Como destacou recentemente o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz, “Há evidências esmagadoras de que o pacote de recuperação irá fornecer um enorme estímulo à economia, e que o crescimento econômico vai gerar receitas fiscais substanciais, não apenas para o governo federal, mas também para os estados e municípios que agora estão famintos dos fundos de que precisam para fornecer serviços essenciais”. Caso contrário, lembra Stiglitz, “Há um risco real de que não passar um grande pacote de recuperação causará danos enormes, e possivelmente de longa duração” [2]

O desafio, entretanto, é convencer os Republicanos a apoiar o plano. Os Republicanos, que no governo Trump pouco se importaram com o aumento do déficit público dos Estados Unidos, que encerrou 2020 na casa dos 16% do PIB, de repente passaram a externar suas preocupações com o equilíbrio fiscal e o aumento da dívida pública americana. Trata-se de uma prudência fiscal seletiva que não existiu, por exemplo, quando Trump cortou impostos dos mais ricos. É óbvio que o objetivo principal do Partido Republicano é fazer todo o possível para evitar que o governo Biden dê certo.

Há alguns deputados e senadores que se opõem, digamos, de “boa fé” ao tamanho do novo pacote de ajuda, receosos de que em um pacote tão generoso poderia levar ao desperdício de recursos públicos, dando dinheiro para quem não precisa, gerar incentivos perversos e adiar o retorno a uma atmosfera de normalidade. Trata-se, entretanto, de uma preocupação infundada. Como lembrou Paul Krugman em artigo recente no New York Times[3], em momentos como esse é melhor errar para mais do que para menos. Se errar para menos, todo o esforço terá sido em vão; se errar para mais, sempre se pode corrigir mais à frente. Como lembra o economista, um pouco de inflação nos Estados Unidos a essa altura não seria ruim.  O pior cenário de todos, lembra editorial do Financial Times, seria o esgotamento de uma recuperação econômica por falta de ajuda fiscal. A verdadeira prudência aqui é pecar pela generosidade, diz o jornal[4]

Considere-se ainda que a taxa de juros para os títulos do tesouro americano de 10 anos está na faixa de 1%. Como a economia americana está crescendo a uma taxa superior a essa, a tendência é que o aumento da dívida pública como proporção do PIB se dilua nos próximos anos e se torne irrelevante. Como observou a nova secretária do Tesouro, Janet Yellen, experiente economista de 74 anos, “Mas agora, com as taxas de juros em baixas históricas, a coisa mais inteligente que podemos fazer é agir grande. No longo prazo, acredito que os benefícios superarão em muito os custos, especialmente se nos preocupamos em ajudar as pessoas que têm lutado por muito tempo.”[5] Também ajuda o fato de Jerome Powell, presidente do FED, estar dizendo que não há previsão de alta de juros[6].

O grande desafio de unir o país

       Embora os desafios econômicos e sanitários sejam enormes, talvez o maior e mais difícil desafio de Biden seja o de unir novamente o país, cindido de alto a baixo não só pelas políticas de ódio de Trump, mas principalmente pelas condições econômicas e sociais que permitiram a sua eleição e que não desaparecerão apenas porque Trump saiu de cena. Não será simples. Se Biden não apresentar alternativas concretas para essa enorme massa de deserdados da globalização – a classe média baixa, que viu seus empregos desaparecerem com a automação crescente e deslocamento da produção para regiões de mão-de-obra barata – esse enorme segmento da sociedade americana vai continuar a ser presa fácil de aventureiros que prometem soluções fáceis e equivocadas, como ficou patente com a guerra comercial contra a China, que além de não resolver o problema, jogou o custo das tarifas sobre as empresas e consumidores americanos.

       Dizendo a que veio: as primeiras ordens executivas

Mal tomou posse, o Presidente Joe Biden assinou uma dezena de ordens executivas, mais do que qualquer um dos seus antecessores. O objetivo é, de um lado, destacar o sentido de urgência que a crise sanitária e econômica por que passa o país impõem às ações do novo governo. De outro lado, é sinalizar a ruptura com a política isolacionista de Trump e anunciar o reengajamento dos Estados Unidos na agenda global.

O que move Biden nesses primeiros movimentos é a necessidade de enfrentar o que Ron Klain, chefe da assessoria de Biden, denominou as “quatro crises sobrepostas e compostas”, ou seja, a pandemia, a economia, o meio-ambiente e a igualdade racial e restaurar o lugar dos Estados Unidos no mundo.

Como era de se esperar as primeiras ordens executivas de Biden vão ao encontro de suas promessas de campanha. O cancelamento da permissão do oleoduto Keystone XL está de acordo com sua agenda ambiental e já provocou forte reação da indústria petroleira, que o acusa de estar suprimindo milhares de empregos bem remunerados. No dia 27 de janeiro, o governo Biden anunciou uma série de medidas que chamou de ambiciosas para enfrentar a crise climática. As ações atingem fortemente a indústria de gás e petróleo ao proibir novas explorações em terrenos públicos e cortar subsídios de combustíveis fósseis, além de estabelecer uma série de políticas para incentivar a economia de forma sustentável. Também cita a necessidade de proteção da floresta amazônica, ponto de possível atrito entre o governo Biden e o governo brasileiro[7]. A reversão da proibição de viagens de vários países africanos e de maioria muçulmana também sinaliza a reversão de políticas racistas e xenófobas de Trump.

Como as ordens executivas não dependem da aprovação do Congresso, elas podem ser implementadas mais rapidamente. As áreas em que o presidente americano tem maior discricionariedade para tomar decisões são aquelas relacionadas com a política externa. Embora a política externa não seja a prioridade do governo Biden no momento, uma vez estar com seu foco totalmente voltado para os problemas internos do país, há algumas decisões importantes sendo tomadas que sinalizam a mudança de rumo da política externa americana. Entre elas está a decisão de os Estados Unidos voltarem a participar da OMS e do Acordo de Paris sobre o Clima.

O plano de Joe Biden, de se apoiar no nacionalismo econômico e no reforço do “Buy American” (compre produtos dos EUA) para relançar nos próximos anos a economia americana, já colocou outros governos em alerta, sobretudo o Canadá, cuja economia é profundamente integrada à dos Estados Unidos. O plano “Buy American” que Biden adotou durante a campanha exigia um aperto nas regras sobre compras governamentais, aumentando os requisitos de conteúdo nacional e fechava brechas disponíveis para compras de produtos estrangeiros. Pela proposta, o governo Biden deverá destinar US$ 400 bilhões em quatro anos para a aquisição de bens e serviços produzidos nos EUA. Além disso, US$ 300 bilhões para financiar a pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias e de energias verdes. Ocorre que os EUA estão no Acordo de Compras Governamentais (ACG) com outros 47 países da Organização Mundial do Comércio (OMC). Pelo acordo, os países abrem a estrangeiros seus mercados de compras públicas e dão mais transparência à concorrência internacional num mercado estimado em US$ 1,7 trilhão por ano. Para um governo que promete o retorno ao multilateralismo e ao fortalecimento da aliança com seus parceiros tradicionais, restringir o acesso ao mercado de compras governamentais dos Estados Unidos pode ser uma sinalização negativa.

A disputa geopolítica entre os Estados Unidos e a China exigirá do Brasil toda a eficiência de uma diplomacia que proteja os interesses nacionais e mantenha distância do choque das duas potências.

       Política externa: a China continua a ser o alvo

Embora a política externa seja a área em que o presidente dos Estados Unidos tenha maior liberdade de ação, sem depender tanto da aprovação do Congresso, como ocorre com medidas de política interna, não parece que seja essa, em um primeiro momento, a prioridade de Biden e nem que ele pretenda fazer tantas mudanças como o retorno à OMS e ao Acordo de Paris poderiam nos levar a supor.

É bem verdade que é uma prioridade do novo presidente americano romper com o auto isolamento que Trump promoveu com sua política do “America First”, refazer a rede de alianças rompidas ou esgarçadas por Trump e recolocar os Estados Unidos como o principal protagonista no processo de globalização. Mas a questão central para a política externa dos Estados Unidos atualmente, que são suas relações com a China e o movimento de desacoplamento da economia chinesa, provavelmente não sofrerá mudanças radicais.

Não se pode negar que apenas a mudança de estilo nas negociações com a China, recorrendo menos às ameaças e mais à diplomacia, como parece ser o estilo de Biden e seu secretário de Estado, já é uma importante mudança, que pode distensionar as relações bilaterais com reflexos positivos em todo o mundo. A exigência de Trump de que o resto do mundo escolhesse um dos lados em uma disputa que não tem prazo para acabar tensionou desnecessariamente as relações internacionais. Era a tática de dividir, que Trump adotou na política interna americana e que tanto mal fez aos Estados Unidos, estendida para o plano internacional.

Daqui para a frente a luta será com luvas, mais civilizada, mas nem por isso menos violenta. Não podemos esquecer que durante a campanha eleitoral Joe Biden chamou o presidente da China, Xi Jinping, de “bandido” (thug) e até agora os dois não trocaram uma única palavra. Alguns de seus principais auxiliares, quando que se referem à China, utilizam termos duros, não muito diferentes dos utilizados na era Trump. Antony Blinken, secretário de estado, diz que “os EUA devem vencer a batalha entre “tecno-autocracias” – China – e “tecno-democracias”. Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional, e ex-conselheiro de segurança nacional do então vice-presidente Biden, tornou-se cada vez mais agressivo com a China. A Secretária do Tesouro, Janet Yellen que, como presidente do Fed, trabalhou com reformadores chineses no Banco Central, diz que a China é o “concorrente estratégico mais importante”.[8]

Há, ainda, o problema adicional de que, dado o consenso bipartidário existente em relação à China, qualquer “piscadela” que Biden der em direção aos chineses poderá ser interpretada como um gesto de fraqueza.  A audiências de confirmação de Gina Raimondo, a nova secretária de Comércio (USTR), tornaram-se tensas quando ela não se comprometeu a manter a gigante de telecomunicações chinesa Huawei Technologies Co. em uma lista negra que a impede de obter semicondutores estrangeiros.[9] Tudo indica, portanto, que as medidas tomadas por Trump contra a China se tornarão uma espécie de barra de referência, abaixo da qual não se pode recuar.

É preciso considerar, ainda, que a continuidade das manobras da Marinha dos Estados Unidos no mar do Sul da China, desafiando a reivindicação chinesa de soberania sobre o mar territorial ao redor das ilhas que, historicamente, fazem parte de seu território, e o voo de um bombardeiro americano B-52, verdadeira fortaleza voadora, sobre o Golfo Pérsico, depois da posse de Biden, mostram que há condutas intrínsecas à condição americana de potência imperialista que não dependem do governo de plantão.

       Relações Brasil-Estados Unidos: o que nos espera

Há uma certa preocupação no Brasil se as atitudes recentes do presidente brasileiro poderiam prejudicar a interlocução entre os dois governos e suas parcerias estratégicas. Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, fizeram coro com Donald Trump e a extrema-direita americana ao afirmar que as eleições dos Estados Unidos teriam sido fraudadas e chamar os invasores do Capitólio de cidadãos de bem que se sentiram agredidos e traídos pela classe política americana.

Ao agir desse modo, o Presidente brasileiro apenas reforçou a visão negativa do Partido Democrata a seu respeito, que o vê como um radical de extrema direita, fiel a Trump e capaz de tomar decisões contrárias aos interesses de seu próprio país apenas para manter sua fidelidade ideológica à extrema direita dos Estados Unidos.

É possível que haja ruídos de comunicação entre os dois governos, sobretudo na área ambiental, mas na economia possivelmente não haverá grandes mudanças e caso haja poderão ser até para melhor, uma vez que a proximidade entre Trump e Bolsonaro não resultou em ganhos significativos para o Brasil. Ao contrário, com sua política do “America First”, Trump não hesitou em tomar medidas prejudiciais ao Brasil sempre que lhe pareceu necessário.

A área comercial foi a que teve mais avanços nas relações Brasil-EUA nos últimos dois anos. Brasil e Estados Unidos concluíram um acordo sobre temas não tarifários, como facilitação de comércio, boas práticas regulatórias e anticorrupção, com potencial para reduzir custos e gerar mais comércio e investimentos em âmbito bilateral.

Os EUA voltaram a permitir a importação de carne in natura brasileira e Brasil e EUA buscaram aprofundar seus laços comerciais em áreas como bens, defesa, energia e infraestrutura. Além disso, os EUA endossaram a candidatura do Brasil à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Entretanto, os ganhos econômicos desses acordos foram pouco relevantes para o Brasil e beneficiaram mais os Estados Unidos.

Depois da China, os Estados Unidos são o principal parceiro comercial do Brasil. O superávit da balança comercial do Brasil, em 2020, deve alcançar US$ 50,9 bilhões, dos quais a China contribuiu com US$ 33,6 bilhões, enquanto entre os principais parceiros a contribuição dos Estados Unidos foi negativa. O saldo da balança entre Brasil e EUA foi negativo em 2019 em US$ 400 milhões, e em 2020, o déficit se aprofundou para US$ 2,7 bilhões. Apesar disso, as exportações brasileiras para a China são concentradas em poucas commodities e são pouco expressivas em serviços. Em contraste, a relação comercial do Brasil com os EUA se mostra mais diversificada, de maior valor agregado e com maior participação intrafirma. Em 2019, segundo o USTR, o volume total do comércio de produtos e serviços dos EUA com o Brasil foi de US$105 bilhões, sendo US$ 73,7 bilhões em bens e US$31,4 bilhões em serviços.  Enquanto os EUA são o nosso segundo parceiro comercial global, o Brasil ocupa a segunda posição em relevância comercial para os EUA na América Latina, atrás do México. A importância dessa relação de comércio e de investimentos, com a presença significativa de empresas americanas no Brasil e empresas brasileiras nos Estados Unidos, tende a exercer uma influência positiva para a construção de relações pragmáticas entre os dois países.

A nova política externa dos Estados Unidos, sob o governo Biden, que certamente deverá valorizar mais o multilateralismo, a diplomacia e o diálogo poderá até ser mais benéfica aos interesses brasileiros. Não se deve, entretanto, esperar muitos avanços em relação ao que já foi feito nos últimos dois anos. Como destacou relatório recente da Câmara Americana de Comércio no Brasil (Amcham):

“A negociação de um acordo mais abrangente de comércio, por exemplo, envolvendo a redução de tarifas e outros temas mais intrincados, como serviços, propriedade intelectual e compras públicas, embora pudesse ser iniciativa benvinda, está envolta de enorme complexidade. Além do já mencionado desacordo entre os dois países em relação à questão climática, seriam necessárias consultas prévias ao Congresso americano e, do lado brasileiro, uma definição se as negociações ocorreriam em conjunto com o MERCOSUL ou de forma individual pelo Brasil – o que demandaria, nesse último caso, alteração das regras do bloco, em consenso com Argentina, Paraguai e Uruguai. Além disso, a negociação de um acordo comercial envolvendo Brasil e EUA sempre será desafiador, em grande parte pelo fato de as economias serem muito parecidas em vários aspectos (ambos são grandes produtores de commodities agrícolas e produtos industrializados, como aço, alumínio e automóveis)”[10]

Além disso, uma iniciativa dessa natureza não deve ser prioridade na agenda comercial dos EUA, sobretudo nos primeiros anos da administração Biden. Dada a grande experiência de Biden com o tema das relações internacionais, é pouco provável que o novo presidente norte-americano busque uma política de confronto com o Brasil. Se o comportamento de Biden como vice-Presidente na gestão Obama serve de guia, é provável que o novo Presidente norte-americano buscará menos o confronto e mais a diplomacia e o diálogo.

É bem verdade que auxiliares próximos de Biden dizem que seu governo não será um governo “Obama 3.0”. Afirmam que o mundo mudou, que sobretudo a China mudou e que a política externa de Biden levará em conta essas transformações. Mas é pouco provável que a política externa de Biden seja tão errática e intempestiva como a de Trump. Certamente haverá maior previsibilidade.

No caso do Brasil, mesmo considerando a questão da Amazônia e as acusações de fraude nas eleições americanas feitas pelo Presidente brasileiro, é pouco provável que a administração Biden busque uma política de confronto direto. O que não quer dizer que, nos bastidores, a administração americana não possa trabalhar até por um eventual impeachment do Presidente brasileiro, caso o movimento ganhe força no Brasil nos próximos meses, dada a gestão calamitosa de Bolsonaro no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Isso não seria inédito na América Latina.

Uma chave importante para entender qual será a política de Biden em relação ao Brasil e à América Latina é saber como evoluirá a relação Estados Unidos com a China na gestão democrata. Toda a política externa da administração Trump para a América Latina esteve orientada no sentido de barrar a presença econômica e a influência política da China na região. Caso Biden mantenha a política de confronto com a China, é provável que isso tenha reflexos nas relações dos Estados Unidos com a América Latina e o Brasil. Enquanto maior economia da América Latina e com um peso geopolítico inquestionável, o Brasil ocupa espaço regional de destaque. Apesar de os EUA deterem o maior estoque de investimentos estrangeiros em território brasileiro, seu crescimento anual vem diminuindo desde o início da década. Por outro lado, a China vem se tornando uma importante fonte de aporte de capitais no Brasil.

Em carta de congratulações enviada a Biden no dia de sua posse, em 20 de janeiro, o Presidente brasileiro afirmou que a relação entre o Brasil e os Estados Unidos “é longa, sólida e baseada em valores elevados, como a defesa da democracia e das liberdades individuais”. Nessa frase cifrada está a oferta implícita do governo brasileiro ao novo Presidente americano de o Brasil continuar a agir como linha auxiliar dos Estados Unidos não apenas na região, mas, sobretudo, em seu confronto com a China.

Biden já anunciou que pretende construir uma aliança global de democracias liberais para confrontar regimes que os Estados Unidos consideram “autoritários”. É óbvio que o alvo número um de Biden é a China. A questão, entretanto, é que na visão dos democratas americanos o Presidente brasileiro é um político de extrema-direita com pendores autoritários e, em tese, o Brasil deveria ser igualmente alvo dessa ação conjunta comandada por Biden em nível internacional. Entretanto, a experiência histórica mostra que os Estados Unidos têm sido extremamente tolerantes com regimes autoritários da América Latina, desde que façam o seu jogo.

Uma grande incógnita é saber qual será a posição do governo americano em relação ao governo Bolsonaro no que diz respeito à questão climática e como isso poderá afetar as relações econômicas. Durante a campanha eleitoral o presidente Biden fez duras críticas ao Brasil, ameaçando-o com sanções econômicas caso não enfrente com seriedade o aumento desordenado do desmatamento da Amazônia. O Presidente brasileiro respondeu com bravatas, dizendo que “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”.

Na carta enviada a Joe Biden, Bolsonaro também menciona o desejo de cooperar com os Estados Unidos na questão do clima. É pouco provável, entretanto, que venha a tomar qualquer posição mais dura a respeito do tema, seja porque isso desagradaria sua base política, seja porque a gestão ambiental do governo Bolsonaro tem sido um desastre completo.

A questão que fica, portanto, é se os Estados Unidos de fato confrontarão o governo brasileiro sobre a questão do meio-ambiente ou se adotarão uma postura mais tolerante em troca de ter o Brasil como linha auxiliar na região e principalmente em sua política de enfrentamento com a China.

A Amazônia ganhou importância na agenda do presidente eleito Joe Biden e deverá trazer dores de cabeça para o governo brasileiro.

Relatório recente da Câmara Americana de Comércio no Brasil aposta que o tema da sustentabilidade e da preservação ambiental ganhará centralidade na agenda de comércio e de investimentos envolvendo o Brasil, assim como já ocorre hoje na relação do Brasil com os países europeus. Segundo o mencionado relatório, “A percepção sobre o compromisso brasileiro na área ambiental será determinante para os rumos do relacionamento com os EUA, assim como a habilidade e a disposição de ambos os países em buscar soluções mutuamente satisfatórias para os diversos desafios nessa seara”. [11]

Isso vai depender, entretanto, se a ênfase de Biden na questão do clima é apenas um circo para agradar a esquerda do Partido Democrata ou se de fato ele pretende que os Estados Unidos se tornem um novo campeão na defesa do clima do planeta. Se a segunda hipótese for verdadeira, o que parece ser pela indicação de John Kerry, ex-secretário de Estado do governo Obama, como “tzar do clima”, o Brasil poderá vir a ter problemas mais sérios.

Uma questão importante entre empresários e analistas é de como a eleição de Biden pode mudar algo na forma como as empresas brasileiras e latino-americanas fazem negócios com os Estados Unidos. Certamente vão ocorrer mudanças importantes. Trump era contrário ao multilateralismo e privilegiou os acordos bilaterais. Por seu estilo agressivo de negociar costumava tomar decisões rápidas, para pressionar o outro lado. Com Biden será diferente. Ao privilegiar as relações diplomáticas, a globalização e o multilateralismo, o ritmo e o conteúdo das negociações certamente sofrerão mudanças. Ao trazer todos para a mesa de negociação, certamente a construção de acordos vai ser mais demorada.

Mas, em contrapartida, haverá maior previsibilidade, mesmo porque as pessoas que Biden está trazendo para os cargos chave são conhecidas, com grande experiência em relações internacionais. Havia uma preocupação inicial por parte dos empresários de que Biden iria trazer para algumas funções chave do governo membros da ala progressista, mais à esquerda do Partido Democrata, mas não é isso que está ocorrendo.

É óbvio que nos próximos um ou dois anos, as relações econômicas entre Estados Unidos e Brasil dependerão muito da evolução da pandemia da Covid-19 e seus efeitos sobre a economia de ambos. Mas com certeza essas mudanças trarão novas oportunidades para as empresas brasileiras. A possibilidade de rearranjos nas cadeias globais de suprimento pode abrir novas oportunidades para os países da região, inclusive o Brasil, porque é grande a presença de empresas norte-americanas no Brasil e de empresas brasileiras nos Estados Unidos.


[1] Rubin, R. e Collins, E. Biden anuncia novo pacote de estímulo, de US$ 1,9 tri. Dow Jones Newswires, Valor. 15/01/2021. Disponível em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/01/15/biden-anuncia-novo-pacote-de-estimulo-de-us-19-tri.ghtml

[2] Stiglitz, J. E. Biden Goes Big. Project Syndicate, 01/02/2021. Disponível em: https://www.project-syndicate.org/commentary/biden-right-to-launch-massive-rescue-plan-by-joseph-e-stiglitz-2021-02

[3] Krugman, P. Pandemic Rescue: It’s ‘And’ Not ‘Or’. New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/01/27/opinion/stimulus-pandemic-rescue.html?searchResultPosition=6

[4] Financial Times. A daring start to Joe Biden’s presidency. Disponível em: https://www.ft.com/content/65f7dabb-78ec-47bf-b460-b7b0b8c3fed7

[5] Politi, J. Janet Yellen tells confirmation hearing that US should ‘act big’. Financial Times, 18/01/2021. Disponível em: https://www.ft.com/content/72ca778e-4486-45fe-a990-74551dc95a8f

[6] Derby, M. S. EUA: Powell diz que aumento de juros está

longe de ser iminente. Dow Jones Newswires, Valor. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/01/14/eua-powell-diz-que-aumento-de-juros-esta-longe-de-ser-iminente.ghtml

[7] Pamplona, P. Em pacote sobre o clima, Biden mira gás e petróleo e cita proteção da Amazônia. Folha de S. Paulo, 14/01/2021. https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/01/14/eua-powell-diz-que-aumento-de-juros-esta-longe-de-ser-iminente.ghtml

[8] Davis, B. e Wei, L. Biden’s China Policy to Be Steered by Team of Rivals. The Wall Street Journal, 03/02/2021. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/bidens-china-policy-to-be-steered-by-team-of-rivals-11612348201?mod=searchresults_pos12&page=2

[9] Idem, ibibem.

[10] Amcham.  Trump vs. Biden. Cenário Pós Eleição. Disponível em:  https://www.amcham.com.br/connect/conteudo/publicacoes/trump-vs-biden-cenario-pos-eleicoes-no-4/trump-vs-biden-cenario-pos-eleicao.pdf/view

[11] Idem, ibidem.

Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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