Os Soldados da Borracha e a Importância da Amazônia para a Segunda Guerra Mundial

Caroline Murakami

“Soldados da Borracha: o exército esquecido que salvou a segunda guerra mundial” narra o desenrolar das negociações diplomáticas que viabilizaram a exportação de borracha brasileira para os Estados Unidos durante Segunda Guerra Mundial.

O látex natural oriundo da Bacia Amazônica foi estratégico para a campanha militar das forças aliadas, pois em 1941 os japoneses já tinham tomado o controle das plantações de borracha do sudeste asiático. A escassez desse recurso indispensável obrigou o governo dos Estados Unidos a buscar uma parceria com o governo brasileiro, que recrutou 50 mil homens para servirem como “soldados da borracha”. O livro resgata os bastidores dessa história, realçando a participação do Brasil na Guerra e a importância não reconhecida da Amazônia para o sucesso dos aliados. Os documentos apresentados são fruto de um trabalho de pesquisa inédito, liderado pelos autores em arquivos do Departamento de Estado e do Senado norte-americano. Esses documentos provariam, segundo eles, que os Estados Unidos pagaram integralmente pela borracha exportada nesse período, algo que tinha sido motivo de contestação entre os dois países.

Publicado em 2015 pela editora da PUC-RS, o livro é de autoria de Gary e Rose Neeleman, um casal de jornalistas norte-americanos que moraram no Brasil como correspondentes da United Press. Outros livros dos autores incluem: “Trilhos na Selva: O Dia a Dia dos Trabalhadores da Ferrovia Madeira-Mármore”, e “A Migração Confederada ao Brasil: Estrelas e Barras sob o Cruzeiro do Sul”.

O Primeiro Ciclo da Borracha e a Biopirataria da Hevea Brasilis

Neeleman começa o livro rememorando a importância da borracha no final do século XIX, quando começa o Primeiro Ciclo da Borracha: “até 1900, o Brasil produziu 95% de toda a borracha no mundo…, [em 1910] a borracha era responsável por 40% de todas as exportações do Brasil…, [e] até 1922 os Estados Unidos usaram 70-80% de toda a produção de borracha do mundo”. A melhor e mais cara borracha no mercado se chamava Pará Hard Fine, extraída da árvore borracheira Hevea Brasiliensis, nativa da Bacia Amazônica. Os seringueiros responsáveis pela extração de toda essa borracha eram camponeses importados do Nordeste especialmente do Ceará – que trabalhavam em regime de escravidão por dívida (peonagem):

“O negócio completo de borracha da Amazônia estava em um sistema de escambo de      débito-crédito e a estrutura era tal que o extrator, ponto mais baixo da cadeia, nunca recebeu a      dívida. Embora ninguém controlasse diretamente o seringueiro em suas atividades diárias, ele  era controlado pelo fato de que estava em dívida perpétua.”

Além de ser um trabalho de quase servidão, a extração de látex era uma tarefa extremamente solitária, perigosa e instável. Cada seringueiro era responsável por uma área que continha de 100-200 árvores borracheiras. Ele precisava acessá-las, no meio da floresta, com uma espingarda e um facão. A extração de borracha durava até o anoitecer e era preciso defumar esse látex sob um fogo. A borracha só era extraída durante o verão, obrigando os seringueiros a viver de agricultura de subsistência durante o resto do ano. Além do endividamento perpétuo, precisavam conviver com a ameaça de animais selvagens, índios e doenças. Esses trabalhadores voltaram pobres para o sertão nordestino, mas as elites de Manaus e Belém enriqueceram como nunca.

Diante da dominância brasileira da borracha, o Império Britânico começou a recrutar interessados na tarefa de contrabandear borracheiras brasileiras para a Inglaterra. Neeleman narra a saga do inglês Henry Wickham, um botânico amador que conseguiu contrabandear 70 mil sementes da Hevea Brasilis, em 1876. Wickham pagou para que pessoas locais ajudassem na coleta das sementes, em seguida escondidas no porão de um navio, que foi lacrado com pregos. O roubo contou com a participação do cônsul honorário britânico, que atuou junto às autoridades alfandegárias brasileiras para que o navio fosse liberado sem que a carga fosse inspecionada e as sementes descobertas. Ao chegar em Londres, somente 20 mil das sementes sobreviveram. Foi o suficiente para que os britânicos passassem a dominar o cultivo da Hevea Brasilis e criassem plantações de borracha em suas colônias asiáticas (Índia, Malásia, Singapura, e Sri Lanka).

Diferentemente dos experimentos em Fordlândia, onde o cultivo de borracha não resistiu às pragas locais, a tentativa de criar plantações industriais de Hevea Brasilis na Ásia deu certo. Com isso, o Primeiro Ciclo da Borracha se encerrou em 1912, quando as plantações de borracha do Sudeste asiático substituíram os seringais brasileiros no fornecimento mundial da borracha. Dez anos depois, em 1922, o Brasil responderia por somente 6% da produção mundial de látex natural.

Henry Wickham com uma das árvores Hevea Brasilis plantadas a partir das sementes roubadas da Amazônia.

A Chinchona era produtora de quinina, única substância disponível na época para o tratamento de febres tropicais. As sementes roubadas por Clements também foram plantadas na Índia e a Inglaterra dominou a comercialização de remédios à base de quinina. Markham e Wickham enriqueceram o Império Britânico e suas colônias asiáticas, em detrimento do Brasil, e eram reconhecidos publicamente por isso. Neeleman resgata seu obituário no jornal The London: “Sir Henry Wickham…foi aquele que, enfrentando extraordinárias dificuldades, teve sucesso no contrabando de sementes da árvore Hevea do Alto Amazonas e estabeleceu a ampla indústria de plantação de borracha.”

A Segunda Guerra Mundial e os Acordos de Washington

Quando os Estados Unidos foram instados a entrar na guerra, em 1941, Neeleman explica que “97% de toda a borracha natural do mundo estava na mão dos japoneses”. Nessa época, os industriais norte-americanos já produziam borracha sintética, mas o custo ainda era excessivamente caro. Também existem produtos estratégicos para os quais o uso da borracha natural é necessário até hoje, como pneus de aviões. Neeleman ilustra a importância da borracha na fabricação do material para o esforço de guerra:

“Tudo na Segunda Guerra Mundial dependia da borracha. Os tanques Sherman têm 20 toneladas de aço e meia tonelada de borracha. Em um caminhão Dodge, há aproximadamente 225 kg de   borracha. Há quase uma tonelada de borracha em um bombardeiro pesado. Cada couraçado   afundado em Pearl Harbor tinha mais de 20 mil peças de borracha. Cada navio, cada válvula e     vedação, cada pneu em cada caminhão e avião tinham borracha. Cada centímetro de fio em     cada fábrica, casa e escritório nos EUA está envolto em borracha. Correias transportadoras,   peças hidráulicas, botes infláveis, máscaras de gás, guarda-chuvas -tudo é feito de borracha.”

Com as plantações de borracha sob domínio do inimigo, os Estados Unidos se viram obrigados a virar os olhos para o seu antigo fornecedor ou arriscariam perder a guerra. “Entre os produtos fundamentais que os EUA e os Aliados precisavam, estava a borracha, o minério de ferro, produtos químicos, diamantes industriais e cânhamo. A borracha estava acima de todos os outros produtos, e o Brasil era a resposta para a escassez.”

Washington não demorou a agir. Dois dias após o ataque a Pearl Harbor, articulou para que o governo chileno enviasse um telegrama à União Pan-Americana, pedindo a convocação imediata de uma reunião hemisférica de chanceleres. Como de praxe, a diplomacia norte-americana procurava escalar seus aliados para tomarem o protagonismo de suas próprias iniciativas, com o intuito de fazê-las parecer um esforço multilateral. O encontro ficou conhecido como A Conferência do Rio de Janeiro e foi sediado no Palácio Tiradentes, nos dias 15-28 de janeiro de 1942. O objetivo principal da conferência era conseguir que os países da América Latina rompessem relações diplomáticas com a Alemanha nazista. Posteriormente, os Estados Unidos também negociaram com o Brasil, em caráter bilateral, a instalação de bases militares no Nordeste, o envio de 25 mil soldados à Itália, e o financiamento da extração de uma série de recursos naturais, entre eles a borracha. Esses tratados foram assinados em 3 de março de 1942 e ficaram conhecidos como os Acordos de Washington. No ano seguinte, Roosevelt e Vargas se encontraram numa dessas bases militares, no Rio Grande do Norte, para discutir o desenrolar desses acordos.

Cooperação Bi-Nacional e o Segundo Ciclo da Borracha

Segundo Neeleman, o acordo negociado em torno do fornecimento de borracha era considerado o mais importante de todos, inclusive sendo chamado de “o acordo”. Após sua celebração, os Estados Unidos criaram a Companhia de Reserva da Borracha (Rubber Reserve Company), uma agência americana, com escritórios em Washington e no Rio de Janeiro. Essa estatal seria responsável pela compra de toda a borracha brasileira que não fosse necessária para uso doméstico. O governo brasileiro se comprometeu a organizar a compra doméstica por meio do Banco do Brasil, que também regularia o preço. Com isso, estabeleceu-se um monopólio bi-nacional do mercado da borracha no Brasil. O Banco do Brasil teria precedência sob a RRC para garantir a soberania brasileira e impedir qualquer aparência de ingerência norte-americana. Washington também providenciou linhas de financiamento para a melhoria das condições de saneamento básico na região amazônica. A imagem do seringueiro como um nordestino maltrapilho e miserável, suscetível a doenças, era motivo de preocupação para o embaixador norte-americano. Diferentemente do Primeiro Ciclo da Borracha – comandado pelos empresários da “elite da borracha” sob os auspícios do livre mercado – o Segundo Ciclo da Borracha foi coordenado por uma ação estatal, para atender a uma campanha de guerra.

Getúlio Vargas foi o primeiro presidente brasileiro a visitar a Amazônia, em outubro de 1940. O interesse dos americanos na borracha brasileira se encaixava perfeitamente com o interesse dos nacionalistas brasileiros em colonizar a região amazônica. Na sua visita, Vargas deixou claro “nos últimos séculos, a tarefa do Brasil tinha sido de domar a natureza…e o próximo objetivo era aumentar a sua população em um ambiente que tinha sido considerado inóspito para a civilização”. Para tal, era necessário promover a migração de camponeses nordestinos para ocupar a fronteira amazônica. A campanha para recrutar os Soldados da Borracha, oferecia uma oportunidade perfeita para esse propósito. Nos Acordos de Washington, o governo brasileiro se comprometeu a criar uma divisão especial do Departamento Nacional de Imigração (DNI) para esse fim. Com sede em Fortaleza, o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA) recebeu financiamento do governo norte-americano para comandar a campanha de alistamento dos seringueiros e do cuidado de suas famílias, que geralmente permaneciam no Ceará.

Em muitos aspectos, a campanha da borracha foi um fracasso. O Brasil nunca conseguiu exportar as 25.000 toneladas de borracha almejadas pelos norte-americanos. Paralelamente, avanços na produção da borracha sintética pela própria RDC diminuíram a dependência da borracha brasileira. O governo norte-americano também organizou uma campanha nacional de reciclagem de pneus e outros produtos borracheiros para abastecer sua indústria bélica. A borracha brasileira, importada a 39 centavos por libra, era consideravelmente mais cara que a borracha importada anteriormente da Ásia, que custava 18,5 centavos por libra. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a produção de borracha natural na Bacia Amazônica entrou em declínio novamente. Encerrou-se o Segundo Ciclo da Borracha.

O governo Vargas é criticado por ter abandonado os seringueiros na miséria logo após o fim da campanha. Neeleman viajou a Rondônia para entrevistar os soldados da borracha ainda vivos e encontrou vários deles morando em favelas na periferia de Porto Velho. Ademais, descobriu que esses trabalhadores, por meio do Sindicato dos Seringueiros, recebiam uma pensão do governo brasileiro, mas reivindicavam um aumento. Eles alegavam que nunca foram devidamente compensados pelo seu trabalho. Os seringueiros e o então Presidente Lula acreditavam que o governo norte-americano nunca tinha pago por toda a borracha comprada. Neeleman argumenta que os documentos compilados por ele no livro provam que o governo dos Estados Unidos não deve dinheiro ao governo brasileiro, pois estaria estipulado nos Acordos de Washington que “a borracha comprada pelos Estados Unidos seria ‘somente em dinheiro no ponto de envio”. Essa descoberta é tida por Neeleman como uma das contribuições mais importantes do seu livro:

“Parte do objetivo deste livro não é apenas registrar a história da contribuição dos seringueiros à       II Guerra Mundial, mas também traçar, por meio dos documentos recentemente revelados dos arquivos do Senado Norte-Americano o caminho do dinheiro desde o Governo dos EUA até o     Governo Brasileiro e os bancos”.

Em 2010, Neeleman teria revelado sua descoberta ao então embaixador Thomas Shannon, ao ministro Antônio Patriota, e ao presidente do Sindicato dos Seringueiros.

Qual é o Legado dos Soldados da Borracha?

Entre 1942 e 1947, 50 mil homens foram alistados para servir nos seringais da Amazônia e 26 mil morreram no ofício. O número é muito maior que os 457 soldados mortos na Força Expedicionária Brasileira (FEB). Neeleman chega a afirmar que a contribuição dos Soldados da Borracha “pode ter sido o maior sacrifício de qualquer país que não Estados Unidos, Grã-Bretanha e França para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial”. Essa afirmação pode parecer exagerada, mas a taxa de mortalidade nos seringais, de aproximadamente 50%, era altíssima até mesmo para os padrões da Segunda Guerra Mundial. A probabilidade de morrer como um Soldado da Borracha era muito maior do que num exército regular e compatível com a mortalidade de vários campos de trabalho forçado, onde pereceram milhões de civis e prisioneiros de guerra na Europa e na Ásia. Na maior parte dos países envolvidos, a Guerra contou com o sacrifício de militares e civis. Os Soldados da Borracha representam a maioria das baixas civis do Brasil durante o conflito. A Amazônia foi um campo de batalha não convencional e os seringueiros que ali pereceram contribuíram para a vitória dos aliados, assim como os soldados brasileiros que tombaram na Itália.

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1 COMENTÁRIO

  1. Artigo oportuníssimo, cumprimentos à autora por divulgar um episódio quase desconhecido da nossa história, sendo esse um dos raríssimos livros dedicados ao assunto. Ainda hoje, os “Soldados da Borracha” são ignorados quando se mencionam as baixas brasileiras na guerra, como ocorreu na última celebração do Dia da Vitória, em maio último.

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