Resenha do livro de Emílio Odebrecht, Uma guerra contra o Brasil: como a Lava Jato agrediu a soberania nacional, enfraqueceu a indústria pesada brasileira e tentou destruir o grupo Odebrecht. Rio de Janeiro, Topbooks Editora, 2023, 1ª edição.
DO LADO DAS VÍTIMAS DA LAVA JATO
“Faltava até aqui uma condição absolutamente indispensável e que sequer tem sido mencionada pelos aderentes à versão da acusação: a voz e o ponto de vista da defesa, dos que foram acusados, presos, condenados pelos alegados delitos. que ressalta da enorme quantidade de material informativo impresso ou veiculado pela televisão é o domínio maciço da perspectiva acusatória, sem contraditório”. i
No entender do Embaixador Rubens Ricupero, é essa a grande novidade do livro de Emílio Odebrecht: dar voz e explicar o ponto de vista das vítimas da Lava Jato. Seria “uma das primeiras (vezes), se é que houve outras, em que se apresenta ao grande público e ao escrutínio dos críticos um relato completo e desimpedido da defesa de um dos acusados, e não dos menores. Emílio Odebrecht, que assina a obra, é o símbolo que encarna a maior empresa atingida pela Lava Jato, a primeira companhia de construção do Brasil e da América Latina e uma das maiores do mundo. Pelo menos, era essa a situação antes que a força-tarefa da operação dirigisse a mira contra a firma e, por pouco, não a destruísse por completo”. ii
Datado de 13 de outubro de 2022, o prefácio do Embaixador Ricúpero precedeu as gravações da Operação Spoofing iii recentemente divulgadas que não integraram a Vaza Jato e a possível retomada do caso Tacla Durán iv. Ambos os fatos tendem a estabelecer ainda maiores evidências da prática de lawfare (ou seja, do uso das leis como arma política) por parte do ex-Juiz Sérgio Moro e do ex-procurador da República Deltan Dellagnol, bem como a estimular o surgimento de uma literatura cada vez mais solidária para com as vítimas da Operação Lava Jato. Até porque, como o demonstraram os resultados das eleições do ano passado (em que ambos foram eleitos), faz falta, no Brasil, um movimento intelectual – e politicamente ativo – no sentido de não mais se permitir a repetição da catástrofe que foi a Lava Jato.
A Operação Mani Pulite, ou Mãos Limpas, na Itália, que também teve por objetivo ostensivo limpar o país da corrupção entre os políticos, não deixou de contar com um final igualmente dramático. No mesmo prefácio, o Embaixador Ricupero se refere a artigos escritos por ocasião do trigésimo aniversário da operação italiana, para citar, por exemplo, como “efeitos da operação: a substituição da corrupção do dinheiro pela corrupção das almas, a divisão do povo em bons e maus, a propagação da crença de que política é sempre propina, ou de que os partidos são um câncer, que se deve confiar aos promotores públicos o destino do país. (…) O impacto mais grave, contudo, se manifestou na esfera da sociedade e da política: nasceram naquele tempo a antipolítica, o rancor, o ódio social, o conspirativismo”. v
Após recordar que a operação italiana serviu para a dissolução de todos os grandes partidos democráticos (a Democracia Cristã, o Partido Socialista Italiano, o Partido Social Democrático, o Partido Liberal); impulsionou o surgimento de agremiações como a Lega Lombarda, mais tarde Lega Nord, hoje Lega, de extrema direita, xenófoba, violentamente anti-imigrantes e refugiados; agrupamentos populistas como o Movimento 5 Estrelas e o neofascista Fratelli d´Italia; propiciou nove anos do fenômeno Berlusconi; e, em seu mais recente capítulo, viabilizou a vitória da aliança da Lega com a Forza Italia de Berlusconi e os Fratelli d´Italia, o embaixador Ricupero se baseia na opinião do ex-juiz Gherardo Colombo, que atuou na Mãos Limpas, para concluir que:
“Tentar modificar a sociedade por operações judiciais é inútil e contraproducente. Inútil porque só reformas políticas e econômicas estruturais de longo prazo são capazes de produzir mudanças sociais e culturais. Contraproducente porque a instrumentalização da Justiça penal para fins políticos acaba por gerar desastres históricos para a sociedade e compromete a fé no sistema judiciário. “Foi o que sucedeu na Itália (…). Ainda mais grave, se possível, tem sido o estrago entre nós”. vi
E, com efeito, a tragédia no nosso caso foi bem mais intensa e custosa, como o expõe em seu livro uma das vítimas, Emílio Odebrecht.
******
“Do outro lado da linha estava meu filho Marcelo, que aparentava até certa tranquilidade, mas foi objetivo: contou que sua casa, em São Paulo, havia sido invadida por nove agentes armados da Polícia Federal para cumprir mandatos de busca, apreensão e para levá-lo preso. (…) Em seguida, fui informado de que, além dele, outros quatro executivos do Grupo Odebrecht eram alvos de ordens de prisão: Márcio Faria, César Rocha, Rogério Araújo e Alexandrino Alencar. (…) No mesmo momento, a Federal batia à porta da Construtora Andrade Gutierrez e, além de prender o presidente da empresa, Otávio Marques de Azevedo, levou junto alguns de seus principais executivos”. vii
Com a chamada “Um dia para não esquecer” no título do primeiro capítulo, Emílio Odebrecht se concentra, na primeira parte do livro, nas ações policiais e judiciais da Lava Jato, iniciando-as em 19 de junho de 2015, quando a Polícia Federal bateu às portas da Odebrecht. Tratava-se da 14ª fase da Operação Lava Jato e a Odebrecht era apenas um de seus objetivos. Denominada Erga Omnes – ou “vale para todos” – a intervenção ocorria em quatro estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Na mesma manhã, foram executados onze mandados de prisão, 38 de busca e apreensão e oito de condução coercitiva.
De susto em susto, o autor busca mostrar, nos capítulos da parte inicial, a parcialidade ou má-fé das ações e bem assim a ilicitude das intervenções efetuadas. No caso da condução coercitiva – ou “sob vara”, segundo o jargão jurídico -, a lei brasileira estabelece que “só pode ser submetido a tal medida o acusado ou testemunha que, por duas vezes seguidas, tenha ignorado intimação para depor à Justiça. E nenhum dos vitimados pela artilharia de Moro tinha sido citado, convocado ou intimado para o que quer que fosse. A ilegalidade desse procedimento só foi reconhecida no final da Lava Jato”. viii
Aos poucos, Emílio Odebrecht vai comprovando que interessava à Lava Jato, sobretudo, fazer estardalhaço, conseguir o maior número de manchetes na mídia e chamar a atenção de todos. O objetivo, em todas as operações da Lava Jato, era causar escândalo público, como se verificou já em sua estreia, em 17 de março de 2014, data em que a Polícia Federal cumpriu 81 mandados de busca e apreensão, 18 prisões preventivas, 10 mandados de prisão temporária e 19 de condução coercitiva.
Aquela primeira ação tinha por objetivo desmantelar uma organização que se dedicava à lavagem de dinheiro de pessoas envolvidas em corrupção de agentes públicos, sonegação fiscal, evasão de divisas, extração e contrabando de pedras preciosas e desvios de recursos do governo brasileiro. O principal preso do dia, Alberto Youssef, era também suspeito de envolvimento com o tráfico internacional de drogas. A operação foi batizada Lava Jato, porque o grupo operava uma rede de postos de combustíveis e lavagem de carros montada para “lavar” dinheiro próprio e de terceiros.
Na ausência do Presidente da Odebrecht S.A. (Marcelo Odebrecht, preso em Curitiba), coube ao autor do livro, seu pai, assumir o comando da defesa e procurar tranquilizar os 180 mil integrantes das empresas do grupo. Esse cuidado de Emílio Odebrecht com os executivos e funcionários do grupo se mantém ao longo da obra, juntamente com a descrição das anomalias jurídicas da Lava Jato – que vão sendo apontadas pelo autor, cada vez com mais frieza e tranquilidade – e sem vitimismo, da mesma forma que as aberrações da Lava Jato foram sendo confundidas, por grande parte mídia e dos espectadores, como parte da normalidade.
Só que nada era normal…
Cite-se a sétima fase da Lava Jato, lançada em 14 de novembro de 2014 e intitulada “Juízo Final”. Trezentos agentes da Polícia Federal foram postos nas ruas de São Paulo, Pernambuco, Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Distrito Federal para cumprir 39 mandados de busca e apreensão, 21 prisões temporárias, seis prisões preventivas e nove conduções coercitivas. A respeito, o autor informa:
“Desta vez nenhum integrante da Odebrecht foi preso – mas vários de nossos escritórios sofreram operações de busca e apreensão. Foram levados a prisão – sempre sob o foco das redes nacionais de TV, dos grandes jornais e das revistas semanais – os presidentes da Queiroz Galvão (…), da OAS (…), da Camargo Corrêa (…), da UTC (…). Outros altos executivos tiveram o mesmo destino (…). Intimidados e encarcerados, muitos deles deixaram empresas acéfalas e sem comando, obrigadas a paralisar suas atividades – um problema que iria se tornar dramático nos meses e anos seguintes. Familiares e empresas daqueles que eram presos tornavam-se vítimas da insegurança e da rejeição por parte da opinião pública, de clientes e do sistema financeiro.” ix
Tampouco era normal que se instalasse uma fábrica de delações nas prisões da Polícia Federal, em Curitiba… Que o abuso de autoridade fosse a principal arma dos procuradores federais… Que prisioneiros, como o doleiro Youssef, em suas celas, tivessem suas conversas gravadas de forma ilegal… Que o então juiz Sergio Moro se comportasse sobretudo como um justiceiro… Que funcionária do governo norte-americano lotada na Embaixada dos Estados Unidos no Brasil viesse dar lições de ódio com vistas ao combate à corrupção… Que um juiz atuasse, na produção de provas, como parceiro do órgão de acusação… Que canteiros de obras fossem sendo fechados em todo o Brasil quando ainda estavam longe de terminarem as edificações que tinham por objetivo erguer… Que se tenha tornado uma epidemia a interrupção de projetos de infraestrutura em andamento, já contratados ou prestes a serem iniciados… Que um juiz lesse, em três minutos, uma apelação de 1.400 páginas… Que “muito do que foi confessado ou delatado (…), ou foi grandemente exagerado ou não era verdade. Eram `fatos´ criados pelos investigados, réus ou não, para conseguirem satisfazer seus inquiridores e se livrar da pesadíssima pressão que a força-tarefa exercia sobre eles e até sobre seus familiares”. x
As constatações das irregularidades da Lava Jato continuam nessa primeira parte e se transformam, mais tarde no livro, em legítimas acusações, impunes até esta data. As imputações da Lava Jato à Odebrecht, por sua vez, negociadas com 78 de seus colaboradores, resultaram, até setembro de 2022, em vultosas condenações: R$ 531 milhões de multas, 319 anos de prisão e 51 colaboradores impedidos de continuar na empresa. No entender do autor, “com as multas pagas, as penas de prisão sendo cumpridas e com seus contratos de trabalho encerrados, são pessoas que a Justiça puniu, mas não consegue provar que eram culpadas”. xi
Sobre a suposta estrutura montada pela empreiteira para fazer repasses a políticos, que foi chamada de “departamento da propina” pelos procuradores, Emílio Odebrecht explica que se tratava de um sistema de geração de recursos não contabilizados, “o popular `caixa dois´. Não sejamos hipócritas: desde a invenção do capitalismo, é comum empresa média ou grande manter pelo menos 1% de seu faturamento ali alocado. Não é certo, mas assim é, e serve para atender contingências inesperadas (…) pagamentos em espécie a fornecedores, especialmente em zonas de conflito; pagamentos não convencionais, como registros de integrantes de nossas empresas em casos de sequestros´; (…) contribuições para campanhas políticas.” xii
No último capítulo da primeira parte, Emílio Odebrecht lamenta ter sido obrigado a vender “ativos que deveriam ser vistos como um patrimônio da nação”. A empresa vivia, em junho de 2019, um “cenário de guerra”. O faturamento de 2015, da ordem de R$ 132 bilhões (o segundo maior, entre os grupos privados brasileiros), havia garantido cerca de 180 mil empregos diretos e 70 mil indiretos em mais de vinte países. Em 2019, 150 mil pessoas haviam sido demitidas e reduzido a quase zero o número de trabalhadores indiretos. “Daquela comunidade de mais de um milhão de pessoas que dependiam diretamente de nossa existência, no mínimo 800 mil estavam sem quem os provesse de trabalho ou renda, em um momento em que o índice de desemprego no Brasil superava 14%.” xiii
******
“Ser empresário, aprendi ao longo da vida, é mais que uma ocupação, papel ou profissão. É uma atitude básica diante da vida, comprometida com a produção de níveis elevados de riqueza moral e material para clientes, acionistas, companheiras e companheiros de trabalho, e para as comunidades onde a empresa se faz presente.
“Em nosso grupo, empresariar sempre foi sinônimo de trabalhar e lutar para que um dia a humanidade realize o seu projeto de criar as condições de uma vida digna para todos, tendo o ser humano como princípio, meio e fim, vivendo numa sociedade de confiança.” xiv
Se, ao louvar as conquistas da empresa e da família Odebrecht em duas das quatro partes do livro, Emílio Odebrecht tinha por objetivo salientar as diferenças entre a conduta do grupo privado e a impostura de seus algozes, ele claramente o logrou. Como se verifica, ante os admiráveis fundamentos e êxitos da empresa relacionados, mais repulsivos se tornam os desígnios de destruição da Lava Jato e seus contestados métodos.
Com o título “160 anos de trabalho, princípios e fé no Brasil”, xv o autor começa a contar as histórias da família e da empresa Odebrecht e a explicar o valor do reinvestimento como filosofia da empresa, princípio também adotado pelos executivos, acionistas de fato ou de direito. Ao optar pelo reinvestimento em lugar da distribuição de dividendos, os acionistas abdicam de riquezas pessoais para “consolidar novos investimentos, colher resultados e voltar a investir”, permitindo o crescimento da empresa. Segundo o autor: “Este foi o caminho que escolhemos. E a caminhada foi exitosa.” xvi
Da Pomerânia, chegou a Santa Catarina em meados do século XIX e se naturalizou brasileiro, o engenheiro Emil Odebrecht, avô do primeiro Emílio (avô, por sua vez, de seu homônimo, o autor do livro) que se mudou em 1917 para o Recife para construir a ponte Maurício de Nassau. Fundou, em 1923, também no Recife, a Emílio Odebrecht Construtora Ltda., empresa transferida, juntamente com a maioria de seus trabalhadores, para Salvador da Bahia em 1925. As dificuldades de fornecimento de matéria prima e equipamentos, bem como a escassez de combustíveis durante a segunda guerra mundial, obrigaram Emílio Odebrecht, em 1943, a entregar seus bens aos credores e a retornar a Santa Catarina. O filho, Norberto, aos 23 anos de idade, herdou a empresa “com canteiros de obras parados, salários atrasados, clientes receosos e uma montanha de dívidas”, mas decidiu “pactuar, com os mestres e demais trabalhadores, que estes seriam pagos com dinheiro que fosse entrando, conforme cada obra ficasse pronta – o que faria da Odebrecht a primeira empresa brasileira a operar no sistema de participação dos empregados nos lucros e resultados.” xvii (grifo do próprio autor)
Segue-se a aparentemente irrefreável expansão da Odebrecht: para o “exclusivo mercado do Sudeste” a partir de 1969; como vencedora de licitações para obras governamentais – das quais, o primeiro serviço para a Petrobrás data de 1953, com importância cada vez maior, sobretudo durante o governo Geisel (de 1969 a 1973); para o exterior, após o fim do milagre econômico dos anos setenta, quando “logo estaríamos falando oito línguas, em dezenas de fusos horários”, xviii deixando “cidades, escolas, comunidades que antes nem existiam”; xix e chegando a Portugal em 1988, à Inglaterra e Mar do Norte em 1997, à União Soviética no final da década de 1980 e aos Estados Unidos em 1990.
Segundo o autor, as ideias de Norberto Odebrecht que nortearam a empresa derivavam de “uma filosofia de vida centrada na educação e no trabalho. Aplicada no dia a dia, essa filosofia tornou-se uma cultura empresarial singular, que nos guia e nos distingue desde então.” xx Ao conjunto de ideias, se foram agregando outros preceitos orientadores do grupo, quais sejam: o “espírito de servir: senso de obrigação, consciência do valor do trabalho”; xxi a “educação pelo trabalho: as pessoas que formamos são o mais rico legado que podemos deixar”; xxii o “investimento social: nossas ações são muitas e nós as vemos como obrigação ética”. xxiii
Apesar de tudo isso, as pesadas acusações de que o grupo foi vítima e sua vigorosa repercussão nos grandes meios de comunicação tornaram conveniente, em dezembro de 2020, a renovação da empresa, sua transformação e adoção de um novo nome, Novonor (junção das palavras “novo” e “norte”), com a qual Emílio Odebrecht inicia a terceira parte do livro. A partir de seu apego aos valores luteranos, “credo ancestral dos Odebrecht”, Emílio descreve sua própria formação educacional e cultural, para realçar o aprendizado de respeito à história da arte brasileira; a seus próprios antepassados (para os quais constrói um mausoléu, concebido pela arquiteta Lina Bo Bardi); e bem assim ao ecossistema, através da plantação de árvores (mais de um milhão e meio em áreas rurais de Minas Gerais e da Bahia) ou da utilização de energia solar e da reciclagem pelos famílias que residem em suas propriedades.
Emílio Odebrecht também recorda a “busca ininterrupta de oportunidades de contribuição para as instituições governamentais tendo em vista o bem comum, como no apoio à formulação de políticas públicas e na defesa intransigente da democracia” xxiv , enumerando exemplos como o do Estatuto da Criança e do Adolescente, para cuja preparação e discussão a empresa promoveu ações em conjunto com a UNICEF e a Frente Parlamentar pelos Direitos da Criança e do Adolescente; do Programa Nacional de Desestatização; da defesa da inclusão, no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte, da participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados das empresas; da Lei das Licitações ou da lei que estabeleceu a possibilidade de gestão de serviços públicos por empresas privadas, mediante concessão.
Essa incursão da empresa na arena política é inerente à personalidade do autor, na medida em que crê não podermos “avançar apenas até esses pontos: a defesa do bem-estar humano, do bem-estar da natureza e da viabilidade econômica e administração segura das organizações empresariais em um mundo ambientalmente correto. Temos que ir além, incluindo o desafio cultural e o desafio político”. xxv No seu entender, “é sobre cinco esferas – a ambiental, a social, a da governança, a cultural e a política – que se assenta o desenvolvimento sustentável”. xxvi
A visão do mundo de Emílio Odebrecht se estende pelos demais capítulos da terceira parte, em que defende o respeito ao outro, a solidariedade no trabalho, o espírito de servir, a educação, o pensamento empresarial (e, portanto, a ideologia capitalista), a transparência e a privatização. Da defesa das privatizações, recorda sua participação em CPI quando foi inquirido pelo deputado Aldo Rebelo, então do PCdoB – Partido Comunista do Brasil – de São Paulo: “bem-preparado nas perguntas, duro nos questionamentos, não teve condescendência com o depoente, no caso eu, embora demonstrando sempre que buscava apenas o que era certo. Vi que ali estava um político sério e um homem de bem, ainda que, circunstancialmente, defendesse posições antagônicas às nossas”. xxvii
É com essa deferência à divergência de opiniões que Emílio Odebrecht apresenta seu projeto de futuro, cujo primeiro pilar “terá nossa intransigente defesa da democracia” xxviii. “O segundo pilar é de natureza socioeconômica. Trata-se da redução do desnível social”. xxix E o terceiro é a agenda ambiental. Além disso, a Novonor procurará manter o “ganha-ganha, uma relação benéfica entre pessoas, sócios, instituições, empresas e clientes”, xxx renovando “no presente as ações que ajudarão a construir o futuro que desejamos”. xxxi
******
“Reestruturados e bem-posicionados do ponto de vista estratégico, nos setores alvos dos maiores investimentos, como transporte, mobilidade, saneamento, energia elétrica, petróleo, defesa e tecnologia e habitação, além de consolidados em química e petroquímica, focamos nas oportunidades, razão pela qual o faturamento anual do Grupo, que em 2008 fora de R$ 40 bilhões, chegou a R$ 132 bilhões em 2015, sete anos depois. São números gerados por uma centena de empresas que operavam em 15 setores econômicos, em 30 países. (…) “Era esse, grosso modo, o perfil da Odebrecht quando surgiu a Lava Jato, operação que ofendeu o Direito, subverteu as leis, consumiu e dissipou energias e conseguiu alterar, de forma brutal, o destino de uma grande corporação nacional, geradora de milhares de empregos e ímã de investimentos e riquezas para o Brasil.” xxxii
Na quarta parte do livro, Emílio Odebrecht recorre a diferentes autores e artigos para comprovar que não são unicamente seus o espanto e a indignação ante os malfeitos da Lava Jato. Assim, “a terra arrasada em que Moro transformou o país levará décadas para renascer” xxxiii é afirmação do jurista Marcelo Uchôa, professor de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) ao portal Brasil de Fato, em reportagem de 23 de abril de 2021. Para o cientista político Luiz Werneck Vianna, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 13 de março de 2021, a Lava Jato causou a “desertificação da política”, tendo-se configurado como “um erro monumental.” xxxiv Pensadores na mesma linha – como os juristas Lenio Luiz Streck e Marco Aurélio de Carvalho, o jornalista Jânio de Freitas, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o juiz e escritor Marcelo Semer ou o advogado Antônio Carlos de Almeida Braga, entre outros -, são igualmente citados pelo autor.
No entanto, nenhuma publicação se iguala, em importância para a demonstração das perversidades e maquinações da Lava Jato, à propagação, iniciada em 9 de junho de 2019, pelo jornal digital The Intercept Brasil, de pacotes de conversas do juiz, do procurador Dallagnol e de outros membros da operação, ilegalmente hackeadas e seriamente auto incriminatórias. A divulgação dos embustes e tramoias da Lava Jato passou a ser conhecida como “Vaza Jato”.
Menos famoso, porém ainda mais relevante para o entendimento das motivações de Sérgio Moro, revelou-se o artigo “Le naufrage de l’opération anticorruption ‘Lava Jato’ au Brésil”, publicado pelo jornal Le Monde em 11 de abril de 2021, cujos autores apresentaram evidências de que um dos objetivos da Lava Jato consistia em acabar com a ameaça que configurava, para os Estados Unidos da América, o crescimento das empresas brasileiras, sobretudo no exterior. O artigo conta a história das ligações do ex-juiz Sérgio Moro com autoridades em Washington a partir de 2007, quando o governo de George W. Bush, insatisfeito com a falta de cooperação de diplomatas brasileiros com o combate ao terrorismo, decidiu criar um grupo de peritos locais, simpáticos a seus interesses e dispostos a aprender seus métodos, “sem parecer peões” xxxv. Foi o próprio governo brasileiro que indicou Sergio Moro para participar do “projeto Pontes”, em que os Estados Unidos disseminavam seus procedimentos de combate à corrupção, aplicação de sua doutrina jurídica (principalmente o sistema de recompensa para as delações) e o compartilhamento informal (fora dos canais oficiais) de informações sobre os processos. xxxvi
Em artigo intitulado “A Operação Lava Jato e os objetivos dos Estados Unidos para a América Latina e o Brasil”, publicado em 29 de julho de 2019 (antes, portanto, da Vaza Jato), o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães já se havia dado conta dos estreitos vínculos da Lava Jato com Washington. xxxvii Para o embaixador, o principal objetivo da Operação tampouco era a luta contra a corrupção, mas sim impedir a eleição do Presidente Lula em 2018.
É em tom pedagógico que o embaixador Guimarães discorre, no mencionado artigo, sobre os pontos relevantes da história do imperialismo norte-americano e seus objetivos estratégicos. A seu ver, após a Lava Jato e a destituição da Presidente Dilma Roussef, “os Estados Unidos da América atingiram seu principal objetivo estratégico: eleger líderes políticos favoráveis aos objetivos americanos. E com o Governo Temer e agora com o Governo de Jair Bolsonaro estão alcançando todos os demais objetivos”.
Entre esses outros, encontram-se dois que tudo têm a ver com o objeto do livro de Emílio Odebrecht. São eles: impedir o desenvolvimento de indústrias autônomas em áreas avançadas e enfraquecer os Estados da região. xxxviii
******
“Quando a operação começou, em março de 2014, o Brasil era a 7ª maior economia do planeta. Quando ela terminou, em fevereiro de 2021, nosso país encolhera para o 12º lugar na economia mundial. Outros fatores contribuíram para essa queda, mas nada foi tão impactante quanto a destruição de riquezas, de estruturas e de capital humano e material levada a cabo pela Lava Jato. (…) “Os exemplos parecem intermináveis. Fiquemos com apenas um setor: antes da Lava Jato, nosso país tinha algumas das maiores construtoras do planeta. (…) A Odebrecht era a maior delas, mas existiam várias outras. (…) E para cada obra em que era contratada no exterior, a Odebrecht levava consigo 300, 400 pequenas e médias empresas brasileiras, integrantes da cadeia produtiva dos serviços de engenharia e construção.” xxxix
No último capítulo, intitulado “Hoje o Brasil está fora do mercado mundial de engenharia e construção”, Emílio Odebrecht enfatiza o que dá a entender em todo o livro – que a principal das vítimas não foi a empresa nem a família Odebrecht, nem mesmo o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, recordado, com certo alívio e esperança, no Post Scriptum, “do outro lado da Praça dos Três Poderes, em Brasília (…) escolhido por mais de 60 milhões de eleitores para liderar a missão de dar início à reconstrução do Brasil.” xl
A principal vítima da Lava Jato foi o próprio Brasil. Que Emílio Odebrecht assim o vê, já se revela no título da obra, com letras maiores: “Uma Guerra contra o Brasil”. O autor cumpre com o prometido em letras menores e bem relata “como a Lava Jato agrediu a soberania nacional, enfraqueceu a indústria pesada brasileira e tentou destruir o grupo Odebrecht”. Tenta, também, mostrar que o futuro poderá ser diferente.
Mas, no leitor, fica, sobretudo, a profunda dor da pena – que percorre toda a obra – de ver o Brasil tão duramente atingido e espoliado. i
________________________________________
i Embaixador Rubens Ricupero, no Prefácio do livro de Emílio Odebrecht, Uma guerra contra o Brasil: como a Lava Jato agrediu a soberania nacional, enfraqueceu a indústria pesada brasileira e tentou destruir o grupo Odebrecht. Rio de Janeiro, Topbooks Editora, 2023, 1ª edição, pag. 17.
ii Idem, ibidem, pag. 18.
iii A operação Spoofing foi deflagrada pela Polícia Federal em julho de 2019, com vistas a investigar as invasões às contas do aplicativo “Telegram”, contendo conversações entre autoridades brasileiras e pessoas relacionadas com a operação Lava Jato. Esses diálogos, mas não todos, foram divulgados pelo periódico virtual The Intercept – Brasil em junho de 2019 e Walter Delgatti Neto confessou ter sido o responsável pela violação do celular do Ministro Sérgio Moro e de várias outras autoridades. O hacker preso repassou à Polícia Federal toda a documentação roubada, com novas conversas incriminatórias da Lava Jato, que foram divulgadas apenas recentemente.
iv O advogado Tecla Durán, acusado de ser operador de propinas da Odebrecht no exterior, informou, em dezembro de 2017, que havia sido vítima de extorsão por integrantes da Lava Jato, entre eles o ex-juiz, ex-ministro e agora senador Sergio Moro (União Brasil-PR), além do ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR). Recebera ofertas de redução da pena e garantia de prisão domiciliar mediante o pagamento ilegal de cinco milhões de Reais. Recusou-se a pagar e teve mandado de prisão preventiva expedido contra si, mas refugiu-se na Espanha e não pôde ser detido. No corrente ano, afirmou ao juiz Eduardo Fernando Appio, da 13ª Vara Federal de Curitiba, que é perseguido até hoje e apresentou provas do esquema de extorsão praticado por um grupo de advogados ligados a Moro e Dallagnol. Sua esperada vinda ao Brasil para novos depoimentos ainda não pode ser concretizada, mas o assunto não está encerrado. v
v Constatações creditadas ao articulista Michele Brambilla, do jornal Il Giorno. Idem, ibidem, pag. 23.
vi Ricupero, Rubens, op.cit., pag. 25.
vii Emílio Odebrecht, Uma guerra contra o Brasil: como a Lava Jato agrediu a soberania nacional, enfraqueceu a indústria pesada brasileira e tentou destruir o grupo Odebrecht. Rio de Janeiro, Topbooks Editora, 2023, 1ª edição, pag. 29. viii
Idem, ibidem, pag. 32.
ix Idem, ibidem, pag. 35 e 36.
x Idem, ibidem, pag. 87.
xi Idem, ibidem, pag. 106.
xii Idem, ibidem, pag. 107 e 108.
xiii Idem, ibidem, pag. 112 e 113.
xiv Idem, ibidem, pag. 113.
xv Idem, ibidem, pag. 119.
xvi Idem, ibidem, pag. 121.
xvii Idem, ibidem, pag. 127.
xviii Idem, ibidem, pag. 137.
xix Idem, ibidem, pag. 142.
xx Idem, ibidem, pag. 164.
xxi Idem, ibidem, pag. 167.
xxii Idem, ibidem, pag. 169.
xxiii Idem, ibidem, pag. 172.
xxiv Idem, ibidem, pag. 198.
xxv Idem, ibidem, mesma página.
xxvi Idem, ibidem, pag. 199.
xxvii Idem, ibidem, pag. 212.
xxviii Idem, ibidem, pag. 223.
xxix Idem, ibidem, pag. 226.
xxx Idem, ibidem, pag. 234.
xxxi Idem, ibidem, pag. 236.
xxxii Idem, ibidem, pag. 162 e 163.
xxxiii Idem, ibidem, pag. 241.
xxxiv Idem, ibidem, pag. 242.
xxxv Conforme constava em telegrama do embaixador Clifford Sobel a que o Le Monde teve acesso.
xxxvi O artigo na íntegra, traduzido para o português, pode ser encontrado no link https://pt.org.br/emportugues-le-monde-descortina-bastidores-da-lava-jato/
xxxvii O artigo pode ser encontrado no link https://sul21.com.br/opiniao/2019/07/a-operacao-lava-jato-eos-objetivos-dos-estados-unidos-para-a-america-latina-e-o-brasil-por-samuel-pinheiro-guimaraes/
xxxviii Segundo o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, op.cit., os objetivos estratégicos permanentes dos Estados Unidos para a América Latina, listados no parágrafo 10 e explicados um a um a seguir no referido artigo, são:
“1. impedir que Estado ou aliança de Estados possa reduzir a influência americana na região;
2. ampliar sua influência cultural/ideológica sobre os sistemas de comunicação de cada Estado;
3. incorporar todas as economias da região à economia americana;
4. desarmar os Estados da região;
5. manter o sistema regional de coordenação e alinhamento político;
6. impedir a presença, em especial militar, de Potências Adversárias na região;
7. punir os Estados que contrariam os princípios da liderança hegemônica americana;
8. impedir o desenvolvimento de indústrias autônomas em áreas avançadas; 9. enfraquecer os Estados da região; 10. eleger líderes políticos favoráveis aos objetivos americanos.”
xxxix Idem, ibidem, pag. 310.
xx Idem, ibidem, pag. 316.
Parabéns Maria Auxiliadora Figueiredo por essa esclarecedora resenha que nos estimula na leitura dessa importante obra de Emílio Odebrecht.
Parabéns Maria Auxiliadora Figueiredo por essa esclarecedora resenha que nos estimula na leitura dessa importante obra de Emílio Odebrecht.
Parabéns , brilhante sua análise , orgulho de saber que temos mentes que esclarecem e informam de fato ! Abraço!
Parabéns Maria Auxiliadora!
Sempre brilhante!