Corrupção Woke: Nine Borges e Patrícia Silva expõem como ela funciona

Foi lançado em meados do ano passado, pela editora Avis Rara, o título “Corrupção da Linguagem, Corrupção do Caráter: Como o Ativismo Woke Está Destruindo o Ocidente”, das autoras brasileiras Nine Borges e Patrícia Silva. O livro, dividido em quatro capítulos, vem engrossar o coro e o repertório contra o chamado wokeísmo em nosso país, propondo-se a discutir brevemente o que caracteriza esse tipo de ativismo, quais suas origens e princípios, e expor métodos e táticas utilizados por seus apoiadores para conquistar espaço, bem como algumas necessidades e desafios que se farão presentes no seu enfrentamento.

Nine Borges é doutora em Educação pela UFRJ, e Patrícia Silva, pós-doutora em Sociologia pela mesma instituição. Ambas têm alcançado uma boa repercussão nas redes sociais, produzindo conteúdo a partir de denúncias e críticas contundentes do ativismo woke, expondo suas repercussões sociais, políticas e psicológicas.

Ao longo do primeiro capítulo, as autoras atribuem as origens da ideologia woke a uma conjunção de elementos teóricos vindos do neomarxismo e do pós-modernismo, ainda que essas correntes tenham aspectos contraditórios entre si. Do neomarxismo – referindo-se com este termo, mais especificamente, à Escola de Frankfurt ou Teoria Crítica – os teóricos woke teriam trazido a ideia de que há uma estrutura de poder e opressão baseada em ideologia, cultura e identidades dominantes, deslocando o eixo do conflito revolucionário na teoria marxista do âmbito econômico para o da educação, da comunicação, da arte e das crenças. Já dos pós-modernistas ou pós-estruturalistas, teria sido assimilado o ímpeto desconstrucionista, que coloca o indivíduo como agente de poder, capaz de determinar suas verdades por meio da manipulação da linguagem,  de seus significados e interpretações. Enquanto o marxismo clássico dependia de uma explicação da História fundamentada no conceito de estrutura e na luta de classes, o pós-modernismo os rejeita e trabalha apenas com a existência de múltiplas narrativas, impossíveis de serem enquadradas ou hierarquizadas por qualquer critério comum.

Dialogando com outros críticos da ideologia woke, Borges e Silva explicam que, para acomodar essa contradição essencial entre seus dois esquemas de pensamento fundantes, o wokeísmo teria privado da desconstrução pós-moderna tudo aquilo que fosse considerado “oprimido”, representando-o nos conceitos de identidade e minoria, além de ter consolidado uma postura anti-intelectual entre seus apoiadores, visto que a ciência e o conhecimento, com seus critérios rígidos e instituições, seriam em sua própria origem e constituição um meio de perpetuar o poder sistêmico e os privilégios dos supostos opressores. Dessa combinação teórica um tanto capenga, teria surgido uma escola de pensamento chamada de Justiça Social Crítica, à qual as autoras por vezes se referem como equivalente ao wokeísmo.

Além desse desenvolvimento filosófico híbrido, foi preciso também, segundo as autoras, uma geração de pessoas educada em determinadas condições para que o ativismo woke pudesse se arraigar, o que se deu com o advento da Pedagogia Crítica. Nesta, os alunos são levados a sentir-se culpados e responsáveis pela opressão e injustiça existentes no mundo, as quais são constantemente enfatizadas, ocasionando um estado de crise emocional que os impulsiona a desejar e trabalhar por mudanças sociais radicais. Essa prática educacional teria surtido um efeito especialmente profundo numa geração de classe média que cresceu usufruindo de vantagens em termos de bens e serviços, e então se depara, por meio da Pedagogia Crítica, com a urgência de escapar da categoria estigmatizada de “opressor”. Para que isso se concretize, essas pessoas passam a ter uma necessidade moral de declarar sua própria culpa com relação aos privilégios dos quais teriam desfrutado por suas características ou dos grupos que compõem, além de buscar atender às supostas exigências dos vitimizados pela onipresente opressão social, ou encaixar-se entre eles. As universidades seriam o ambiente ideal para colocar em prática o radicalismo resultante dos anos de escolarização, pois os alunos desejam integração, destaque e têm muitas oportunidades de engajar-se politicamente.

Outro fator relevante no desenvolvimento da geração que trouxe à tona o wokeísmo poderia ter sido ocasionado por mudanças no âmbito familiar. Os pais das gerações mais recentes se diferenciam dos próprios pais na criação de seus filhos, rejeitando punições, disciplinas físicas e restrições diversas como parte da educação. Ademais, o grande número de lares com apenas um dos genitores presente, pode gerar a tentativa de compensação por parte deste, seja no nível material ou emocional, por exemplo, comprando mais brinquedos para a criança ou relutando mais em lhe dizer “não”. Somado a isso, na chamada geração Z (nascida a partir do final dos anos 90), há a presença massiva de dispositivos tecnológicos, consumindo o tempo dos jovens e mediando as relações familiares. Por conta dessas mudanças, os jovens teriam ficado com a capacidade de lidar com conflitos e, por consequência, de tolerar divergências e entraves, diminuída. Dessa forma, a juventude woke não aprendeu a discordar e conciliar, e interpreta toda discordância como ataque pessoal.

No segundo capítulo, são descritos alguns dos princípios e mecanismos pelos quais o ativismo woke opera, como a “cultura do cancelamento”, as pautas identitárias, e a corrupção da democracia, da linguagem, da ciência e do caráter. A corrupção da democracia se daria, principalmente, por meio da interdição do debate público sobre temas concernentes às alegadas minorias oprimidas, às quais é também concedido um tratamento especial perante a lei, como forma de “reparação”. Além disso, a mídia e seus investidores mobilizam vultosos recursos financeiros e técnicos para acelerar mudanças sociais, sem levar em consideração o interesse popular; os objetivos seriam capitalizar a moralidade pública e fomentar novos nichos de mercado.

A linguagem, como elemento central da cultura, é foco prioritário a todo movimento que se propõe a remodelar estruturas e instituições sociais. Assim, de acordo com Borges e Silva, os ativistas woke buscam corrompê-la por meio da difusão do relativismo interpretativo, criação de termos novos e diluição semântica. Estratégias discursivas também são empregadas, como a utilização do estilo acadêmico para conferir ar de imparcialidade, autoridade científica e progressismo a um conteúdo completamente enviesado e ideológico. O constante apagamento e reinterpretação de termos tornaria mais difícil concatenar o pensamento e racionalizar argumentos, podendo também gerar incompreensão pelas novas gerações daquilo que foi comunicado no passado. A fixação com o controle sobre a linguagem gera ainda um efeito de constante autocensura nos indivíduos, visto que os falantes precisam se conter para não causar uma ofensa involuntária (ou até cometer um crime).

No âmbito científico, a corrupção promovida pelo fenômeno woke teria se dado num processo de décadas por meio de múltiplas práticas problemáticas e o desenrolar de seus efeitos. As autoras afirmam que a transmissão de conhecimento acadêmico e a qualidade metodológica teriam decaído em função: primeiramente, da interferência descabida de preferências políticas e ideológicas dos docentes, a qual se dá por meio de bibliografias quase exclusivamente compostas por autores compatíveis com tais preferências e ausência do estudo de autores críticos; em segundo lugar, da falta de treinamento metodológico, com a maioria dos trabalhos, especialmente nas Ciências Humanas, sendo de estudos de caso e ensaios, resultando em sua baixa aplicabilidade a políticas públicas; e, ainda, em decorrência de a política acadêmica dar-se em um ambiente de baixo risco (para os que a fazem) e com pouca responsabilização, de forma que as decisões se dão com base em disputas internas e não há comprometimento com o uso consciente dos recursos financeiros ou com o retorno social gerado. As doutrinas woke teriam, então, saído de uma produção acadêmica compartimentada, descolada da realidade que a cerca e dos estudos tradicionais mais amplos, diretamente para informar todas as instituições e estruturas sociais, sem que as ideias pressupostas ali fossem postas à prova – o que é reforçado nas universidades por meio da ameaça de “cancelamento”, da negação da objetividade, da desconstrução do método científico (visto como ferramenta de perpetuação da dominação social) e da relação mercadológica estabelecida nas instituições de ensino superior por meio da imposição de um viés progressista para captação de investimentos.

A corrupção do caráter, por sua vez, é incentivada pelo pensamento woke por meio da promoção do vitimismo como ato político; do questionamento radical das verdades morais, o que corrobora a disseminação de ideias e ações moralmente questionáveis; e, também, pela gratificação da mentira e da hipocrisia, a qual se dá sempre que alguém esconde suas verdadeiras convicções, adaptando sua linguagem e discurso com vistas à obtenção de um benefício. Alguns exemplos deste último caso seriam os religiosos, coagidos a contradizer os princípios de sua fé, e os trabalhadores em saúde, que têm de se adaptar a narrativas que não respeitam a materialidade do corpo humano, para não parecer preconceituosos.

No terceiro capítulo, as autoras buscam apresentar de que forma a ideologia woke se infiltrou em uma gama de movimentos sociais, distorcendo suas causas originais. São citados o Movimento Negro, o feminismo, o transativismo e o veganismo; cada qual acompanhado de uma breve explicação sobre como os mecanismos de corrupção descritos no capítulo anterior teriam se instalado em cada um destes círculos e algumas das consequências observáveis.

O último capítulo do livro é dedicado à discussão de certos desafios que se colocam para a definição do que é woke e sua classificação política, além das possibilidades e propostas para lidar com esse tipo de ativismo. A incoerência teórica, combinada e alimentada pela recusa da evidência empírica e da razão como critérios, são algumas das dificuldades identificadas na hora de classificar a ideologia woke.  Esta seria, portanto, “um alvo em movimento” que, embora se valha de argumentos da Teoria Crítica marxista e do pós-modernismo, não se filia estritamente a nenhuma das duas teorias: não é marxista porque nega o imperativo das condições materiais e de classe; não é pós-modernista porque, embora negue certas verdades, tidas como sustentáculos de opressão, continua afirmando outras intransigentemente (como a proteção de minorias, por exemplo).

Alega-se ainda, no decorrer de todo o texto, que o woke não é liberal, ou antes, é iliberal. No capítulo final é um pouco mais desenvolvida essa ideia – o liberalismo necessariamente apresentaria características como menor intervenção estatal, igualdade dos indivíduos perante a lei e liberdades de associação e expressão; as quais, estariam ausentes ou em contradição com a prática ativista woke. Entretanto, é preciso ressaltar que desde a ascensão política do liberalismo, nenhum regime considerado liberal jamais colocou tais preceitos em prática de maneira inquestionável (se é que isso é sequer possível), perseguindo violentamente seus inimigos políticos e ideológicos ao longo de toda a história dos últimos séculos – fossem católicos, monarquistas, fascistas ou comunistas. Além disso, as características mencionadas estão, ao menos em princípio, claramente presentes no discurso woke: por exemplo, os privilégios legais concedidos às minorias seriam justamente uma ferramenta para atingir igualdade entre elas e os grupos que as teriam oprimido historicamente, e a restrição dos chamados “discursos de ódio” seriam uma forma de garantir liberdade de associação e expressão. É razoável, portanto, que o wokeísmo seja entendido mais como liberalismo extremado do que como iliberal.

Outro ponto que merece atenção é que o identitarismo é colocado na obra como um elemento constitutivo de um fenômeno mais complexo, o ativismo woke, mas não se confunde com ele, ainda que correntemente os dois termos já sejam usados como sinônimos por críticos no Brasil. Talvez essa tentativa de fazer uma descrição mais completa possa ter dificultado um tanto a formulação de uma definição precisa, admitindo-se a complexidade do tema.

Bastante interessantes são os trechos finais, que tratam sobre como esquerdas e direitas opositoras dos woke têm lidado com o movimento e onde as autoras defendem uma aliança entre expoentes de todo o espectro político para combatê-lo. Argumentam que a opinião pública está dando sinais claros de esgotamento com relação ao wokeísmo, com cada vez mais pessoas se posicionando contrariamente e recebendo apoio, mesmo que as estruturas institucionais ainda estejam tomadas por ele, em grande parte, devido ao pesado financiamento direcionado às suas pautas. Para empreender essa indispensável frente anti-woke, será necessário que os “cancelados” acolham-se uns aos outros em torno de princípios essenciais, como a democracia e a justiça, calcados na lógica e no pensamento crítico responsável, e rejeitem a desumanização e intimidação promovida pelos ativistas por meio de culpa por associação e rotulações.

Considerando todas as consequências geradas pelo fenômeno woke em diversos âmbitos da sociedade brasileira nos últimos anos, a obra de Nine Borges e Patrícia Silva traz, num momento política e ideologicamente oportuno, uma discussão muito proveitosa sobre assunto, que não pode – e não deve – mais ser ignorado entre aqueles que se preocupam com o futuro da cultura nacional e das relações (de produção ou não) que gravitam em torno dela.

Amarilis Rezende
Formada em História pela FFLCH-USP e militante do Quinto Movimento.

Não há posts para exibir

4 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns pelo texto. Agora temos ferramentas para combater essa ideologia que tanto se presta a promover a desunião entre os brasileiros.

Deixe um comentário

Escreva seu comentário!
Digite seu nome aqui