O Grande Reset – A utopia das elites

Hanna Ruckert – colaboradora do Portal Bonifácio

A pandemia de COVID-19 desafiou o sistema socioeconômico do capitalismo moderno em um nível sem precedentes, e é esperado que reestruture significativamente o sistema. Há uma discussão sobre a necessidade de uma “reinicialização geral”, mas ainda não está claro qual modelo seria mais adequado.

Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial, propõe um modelo de capitalismo do tipo stakeholder, que busca solucionar as mazelas sociais do capitalismo financeiro atual, valorizando não apenas os interesses dos acionistas, mas de todos os envolvidos com a empresa, incluindo funcionários, clientes, fornecedores e a sociedade em geral.

  No primeiro capítulo, Schwab define sua obra como “Um híbrido entre um livro acadêmico leve e um ensaio”, no qual inclui teorias e exemplos práticos que visam explicar por meio de diversas conjecturas como o mundo pós-pandemia será. Vale ressaltar que o autor reitera, de um modo subitamente otimista, que em nenhuma de suas conjecturas o mundo retornará ao seu status quo pré-pandêmico.

  No geral, o livro se estrutura em três capítulos principais os quais oferecem uma visão de um futuro ideal defendido pelo autor. O primeiro capítulo especula sobre o impacto da pandemia em cinco macro categorias: econômica, social, geopolítica, ambiental e tecnológica. O segundo considera os efeitos em termos micro, isto é, em indústrias e empresas específicas. Por fim, o terceiro levanta hipóteses sobre a natureza das possíveis consequências em nível individual.

  Ao analisarmos de modo resumido as ideias principais do primeiro capítulo, notaremos que o autor disserta sobre o surgimento de um “governo forte”, bem como o enfraquecimento da interconectividade econômica entre as nações. Ao estabelecer inúmeras analogias com os eventos oriundos da Segunda Guerra Mundial, como o surgimento de um governo de bem-estar social na Europa pós-guerra, Schwab deduz que a pandemia levará ao eventual maior fortalecimento desses governos. Ele ainda classifica a famosa frase da ex-primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher – “Não existe sociedade” como um mero zeitgeist, isto é, um símbolo de sua época. Época essa, vale dizer, em que os sentimentos neoliberais e antiestado no Reino Unido eram fortes.

  À primeira vista, a análise de Schwab sobre o nascimento de um Estado interventor e protetor após um evento catastrófico como a recém pandemia parece razoável, contudo, o autor não defende a volta de um Capitalismo de Estado com grande enfoque em questões sociais e desenvolvimentista como o de outrora, mas sim a criação de uma nova forma de capitalismo – o stakeholder.

  Para consolidar seu ponto, o autor usa de um argumento de autoridade ao citar a economista Italiana Mariana Mazzucato. A economista em questão já foi convidada a comparecer à famosa cúpula do Davos, onde defendeu a ideia do governo não como uma entidade que regula e protege o mercado, mas como um agente que molda e gera mercados focados exclusivamente em dois fatores: inclusão e sustentabilidade.

  Não por acaso Mazzucato é uma grande apoiadora da Agenda Davos – um plano criado pela organização de Klaus Schwab, Fórum Econômico Mundial, que visa “reglobalizar” o mundo por meio de aumento de interconectividade econômica. Um dos pilares da Agenda Davos é a implementação do Investimento estrangeiro direto, na qual somente nações que aderem a certas medidas de sustentabilidade estarão aptas a receber financiamento internacional.

  Essa imposição de valores morais que se entrelaçam com o capital constituem a diferença teórica entre capitalismo stakeholder de Klaus Schwab do capitalismo shareholder defendido por Milton Friedman em 1970. Para os seguidores da agenda Davos, as empresas não devem apenas ter foco em lucros de curto-prazo, como também devem tornar-se bastiões de uma moral universal, na qual se utiliza do capital financeiro para moldar as relações econômicas das demais nações, independentemente se tais imposições atrasam ou não seu desenvolvimento.

  Deve-se ressaltar aqui que o autor no início de seu livro afirma que sua obra seria apenas um texto “leve”, portanto, é de se imaginar que as ideias defendidas por ele são de natureza especulativa e superficial. Schwab passa boa parte de seu livro traçando paralelos com o passado, buscando soluções “inovadoras”, mas com raras instâncias de aprofundamento de como tais ideias seriam implementadas.

  Precisamente por isso o autor aparenta ignorar as potenciais ramificações que sua nova forma de capitalismo traria para o mundo. O livro não foca no desenvolvimento industrial de base, fenômeno esse que os países de primeiro mundo tanto desfrutaram durante o século XIX, enquanto o Sul Global, de modo geral, era tratado como colônia. Sua obra visa cobrar das antigas colônias que hoje tentam se desenvolver uma espécie de dívida para com o planeta.

Essa cobrança, caso não cumprida, acarretará punições aplicadas pelo capital financeiro. Se determinada nação ou empresa não cumprir a meta estabelecida pelo sistema de governança global, os lobistas ligados aos grandes bancos, bem como legisladores com interesses liberais e até mesmo moralistas, limitarão a ação dessas empresas, sejam elas estatais ou privadas.

  É importante notar que o critério para alocação de capital estrangeiro defendido por Schwab não parte de um princípio subjetivo e flexível. Afinal, o stakeholder capitalismo possui um sistema chamado ESG – sigla em inglês para “environmental, social and governance” (ambiental, social e governança, em português), geralmente usada para medir as práticas ambientais, sociais e de governança de uma empresa. Essas medições baseadas nos parâmetros mencionados vão produzir uma pontuação que será usada como base para atrair investimentos. Diferentemente do Capitalismo shareholder, em que os investimentos eram atraídos exclusivamente pelo potencial lucro inerente ao projeto oferecido pela empresa.

  De modo geral, a ideia central da tese econômica aqui analisada é influenciar uma nação em todos os seus possíveis setores. Como foi dito no início do livro, o Grande Reset possui um aspecto “micro” referente às empresas e um “macro” referente às questões do próprio Estado. O sistema ESG deve, portanto, ser adotado por todos os setores de uma nação, sejam eles públicos ou privados, caso contrário as indústrias nacionais não receberão ações, títulos e empréstimos do capital financeiro necessários para seu desenvolvimento.

  Vale destacar aqui a natureza contraditória referente aos princípios defendidos pelo autor. Schwab, que notoriamente expõe em seu escritório o busto do marxista revolucionário Vladmir Lenin, ao longo de sua obra, aparenta evitar o exercício da dialética. Todas as suas ideias, especulações e conjecturas em nenhum momento enfrentam algum tipo de antítese, isto é, de ideia contrária a alguma de suas propostas.

  Em outras palavras, o autor simplesmente ignora as implicações negativas de suas teses as quais inegavelmente possuem, em sua essência, aspecto colonial. Até o mais leigo historiador pode interpretar as diretrizes do ESG como uma forma de imposição moral de cunho eurocêntrico. Por exemplo, apesar de o Quênia possuir cerca de 90% de energia renovável, o país possui uma visão conservadora em relação ao conceito de família.

  Ou seja, mesmo seguindo as diretrizes climáticas com mais afinco do que muitas nações desenvolvidas, o Quênia ainda sofreria pressão por parte de instituições financeiras como a gigante americana BlackRock, visto que o aspecto social de sua sociedade segue uma moral cristã, e não a moral secular e liberal comum aos anglo-saxões. No final do dia os 80% de católicos no Quênia terão que se adequar aos valores de seus antigos colonizadores.

  Por essa lógica, o Quênia, que apenas em 1963 conseguiu sua independência da Inglaterra, e que, portanto, não passou por um período de desenvolvimento industrial, terá agora que renunciar a sua soberania para receber financiamento dos bancos que outrora os exploraram, como é o caso do país com o banco Inglês HSBC.

  A falta de dialética em seu trabalho não impediu, contudo, o autor de demonstrar dúvidas em relação a aplicação de seu plano. No final do primeiro capítulo, as otimistas especulações e soluções oferecidas ao leitor dão espaço a uma crescente preocupação: o enfraquecimento da globalização.

  Para Schwab a pandemia anteciparia, em algum grau, o enfraquecimento e até mesmo a reversão do processo globalista por meio de maior protecionismo, fortalecimento de fronteiras, e do renascimento da ideia de estado-nação o que, consequentemente, levaria ao aumento do sentimento nacionalista.

 Schwab sutilmente deixa transparecer sua insatisfação com a tendência nacionalista que tem surgido em todo o mundo desde a crise financeira de 2008, a qual foi agravada pela pandemia. Essa tendência é mais precisamente caracterizada como intrarregionalista, já que as relações de interdependência de longa distância, ou seja, inter-regionais, têm sido substituídas. Um exemplo disso é a China, que recentemente tem redirecionado parte de suas exportações para o mercado interno, o que levou a uma redução na absorção de produtos chineses pelos Estados Unidos, de 35% para 20%.

  Esse redirecionamento das exportações, que anteriormente eram voltadas para os Estados Unidos, foi uma resposta à guerra comercial que o então presidente americano, Donald Trump, estabeleceu contra a China, com o objetivo de enfraquecer seu crescimento econômico. Ao também adotar uma estratégia de comércio intrarregional, com o foco de suas importações na Ásia e no mercado interno, a China conseguiu contornar as políticas imperialistas do presidente norte-americano.

De acordo com autor liberal e especialista em Relações Internacionais John Mearsheimer, o nacionalismo é a mais forte das correntes políticas, podendo facilmente enfraquecer o liberalismo. Para Mearsheimer, isso contudo não impede ambos de coexistirem pacificamente.
Schwab, ao contrário de Mearsheimer, não possui crença em tal coexistência. Em seu subcapítulo dedicado à globalização o autor cita o trabalho do Economista da controversa organização Ford, Dani Rodrik, em que menciona o problema do “Trilemma político”.
  O Trilemma político sugere que para que haja a globalização as nações devem abrir mão de certa porção de sua soberania e democracia, portanto o nascimento de um sentimento nacionalista forçaria o retrocesso do sentimento cosmopolita liberal.
  Para corroborar seu ponto o autor cita as políticas protecionistas de Trump e da valorização da indústria americana como exemplos de antiglobalismo. O estudo de Rodrik conclui que os sentimentos antiglobalistas ocorrem quando a economia do país está forte e a desigualdade social está alta.
Schwab ao detalhar o trabalho de Rodrik não desenvolve um paralelo entre o paradoxo de uma alta economia atrelada a elevados níveis de desigualdade social, pois caso o fizesse teria que admitir que a globalização beneficia o capital financeiro em detrimento do capitalismo industrial, o que acarreta maior concentração de capital nas mãos dos grandes monopólios.

  Para os ideólogos do grande reset, Trump é uma ameaça não pelas suas falas xenofóbicas, mas sim pela sua política de atração de indústrias para o solo americano e promoção de empregos para a classe operária. Não há espaço para o 32desenvolvimentismo industrial no Grande Reset, apenas formação de certos monopólios os quais são beneficiados pelo capital financeiro e cujo valor social está atrelado à controversa métrica do ESG.
Por exemplo, em 2022 o Canadá estabeleceu uma legislação draconiana na qual todas as pequenas e médias empresas deveriam seguir a métrica do ESG, a adesão forçada a esse novo sistema levará muitas dessas pequenas empresas à insolvência.

  Deve-se destacar aqui que diferentemente dos grandes negócios que conseguem achar brechas legais com o intuito de não declarar impostos e que concomitantemente ainda usufruem de grandes empréstimos por partes dos bancos de base, os pequenos negócios não usufruem dos mesmos privilégios financeiros e, portanto, tais diretrizes os alijariam no cenário da selvagem competição do mercado. Em outras palavras, o ESG visa primariamente a aniquilação dos mais fracos, em benefício dos mais fortes, isto é, dos monopólios.

  O trilemma destacado por Klaus Schwab de que as noções de soberania, democracia e nacionalismo são incapazes de se balancearem entre si se torna cada vez mais real ao constatarmos que as diretrizes do ESG vistas no Canadá possuem o intuito de se espalharem pelo globo. A ONU recentemente anunciou o desejo de implementar uma métrica única pela qual consumidores, investidores, seguradoras, detentores de títulos, credores e outros podem comparar entidades e responsabilizá-las por seu comportamento de carbono. Tal métrica, ressalta a ONU, será implementada de modo forçado, o que novamente coloca em xeque a noção de soberania aqui destacada.
Schwab, doutor em economia o qual ao se formar recebeu o título summa cum laude (com a maior das honras) é um homem que não deve ter sua inteligência levianamente contestada. O que espanta em seu livro não é a profundidade com que o autor aborda suas ideias, mas como ele avalia a execução de seu plano em todos os possíveis campos, abrangendo também o campo psicológico.

  No início do texto foi aqui destacado o fato de o autor separar o grande reset no campo macro, bem como no micro. Ao finalizar sua obra o autor dá maior destaque aos micro aspectos inerentes à implementação de seu plano, aspectos esses majoritariamente ligados à psicologia das massas.
Nessa porção do livro o autor ganha características dignas de um vilão de James Bond, ao destacar que pouco mais de 50% da população mundial está online e que há mais de 1.5 bilhões de smartphones pelo mundo. Schwab corretamente nota que o “vetor de velocidade de acesso às pessoas” nunca foi tão alto.

No segundo capítulo, o autor reafirma a importância da interconectividade em larga escala, sugerindo que este fenômeno poderia ser utilizado como uma ferramenta de repressão online por ativistas, com o objetivo de implementar políticas “woke” e ambientais por parte de empresas e governos, em prol do bem comum de todas as sociedades globais. No entanto, o autor utiliza uma linguagem frequentemente hiperbólica e superficial para persuadir o leitor a adotar suas ideias.

 Talvez um dos aspectos mais controversos do livro não seja de cunho econômico, mas sim filosófico. O autor aparenta apoiar a ideia de uma sociedade terminalmente online. Em um de seus subcapítulos dedicado ao “reset tecnológico” Schwab inusitadamente usa de frases exclamativas para destacar como a pandemia moldou as relações humanas. “Você não precisa mais ir à academia, faça exercícios em casa pela internet!” ou “Você não precisa mais viajar longas distâncias para ver seus familiares, use o grupo do whatsApp!”.
  Tais frases recorrentemente são justificadas pelo argumento materialista “sai mais barato”, ou pelo argumento moralista “ficando em casa você polui menos”. É difícil não notar como Schwab vê o ser humano, bem como suas relações pessoais como sendo maliciosas ao meio.

  Para o autor, devemos residir em nossas residências consumindo informações online cada vez mais controladas por monopólios midiáticos. Devemos ter nossas mentes moldadas por tais narrativas e implementá-las pelo mundo afora, sem de fato termos preocupação com a realidade que nos rodeia. “Ativistas digitais do grande reset”, este é um título em que Schwab parece se orgulhar de promover dentre a juventude que a cada década passa mais tempo na realidade paralela que é o mundo digital.

   É de comum sabedoria que as plataformas digitais comumente tornam-se espaços em que o ódio é normalizado e os jovens descontentes são suscetíveis à radicalização, seja esta de direita ou de esquerda. No mundo digital encontramos e engajamos diariamente com “bolhas” comunitárias as quais são hermeticamente isoladas das demais bolhas pelo algoritmo das diversas redes sociais usadas. Nessas estufas ideológicas, propaga-se apenas as mesmas ideias sem muitos embates, a ideia que mais ganha likes geralmente não é a com maior consistência argumentativa, mas a que mais gera respostas emotivas. Como diria o filósofo Guy Debord, vivemos na “sociedade do espetáculo”.
O mundo imaginado por Schwab é um mundo de polarização ideológica, oligopólios, monopólios, de relações materiais e supérfluas. Todos esses aspectos são defendidos pela mais vaga e ardilosa das premissas “devemos fazer o que aqui digo pelo bem comum”. Será mesmo que uma obra escrita pelo membro da organização do Fórum Econômico Mundial, organização esta em que líderes não eleitos influenciam a política de países que muitos mal sabem apontar no mapa seria algo que beneficiaria a todos de fato? 
À primeira vista o livro de Klaus Schwab parece ser uma bela utopia de cunho tecnocrático, mas aos olhos mais céticos a obra pode ser vista apenas como uma coletânea de devaneios de uma elite financeira que possui muito poder e muito desejo de exercê-lo sobre os demais. Afinal, para que o poder se você não pode utilizá-lo sobre o coletivo? Em um mundo onde manda quem tem dinheiro, o crescente número de bilionários e sua visão misantrópica das relações humanas passa a ser um tópico de geral preocupação. Será mesmo que devemos delegar a essas pessoas a capacidade de “resetar” o mundo? Como dizia o provérbio medieval: “a estrada para o inferno é pavimentada com boas intenções”.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Isso parece cada vez mais real… Seremos obrigados a viver em um mundo onde as corporações mandam em tudo e todos.
    E caso você discorde de algum deles… Sofrerá as consequências. Isso sim é distopia, maldita ESG.

  2. Ainda bem que estas ideias estão sendo discutidas. Um grupo de grandes bilionários com riqueza superior ao PIB de diversos países, naturalmente têm o desejo de impor ao mundo seus valores e objetivos. Será uma discussão da atual década.

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