O Brasil na guerra entre China e Estados Unidos

Donald Trump e Xi Jinping: concorrentes estratégicos Artyom Ivanov/TASS

A guerra comercial entre Estados Unidos e China representa um ponto de virada nas relações internacionais de comércio e no próprio processo de globalização da economia mundial. As exigências que os Estados Unidos estão fazendo para chegar a um acordo com os chineses evidenciam que o maior problema não é o déficit comercial com a China, que alcançou US$ 400 bilhões em 2018, mas o temor dos americanos de que a China os ultrapasse como principal potência econômica global. No fundo é uma luta pela supremacia tecnológica.

Mesmo que o conflito atual seja encerrado por meio de um acordo provisório entre as duas superpotências, como tudo indica que irá ocorrer, esta questão permanecerá latente, como brasa sob as cinzas, e certamente reaparecerá em algum momento futuro, ao menos que a China dobre os joelhos e aceite todas as imposições americanas, o que evidentemente não vai acontecer. Para Robert Lighthizer, representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) e principal negociador do acordo, a China é “um desafio existencial para os Estados Unidos.”1

Paralelamente à guerra comercial contra a China, os Estados Unidos estão promovendo um ataque pesado à Organização Mundial do Comércio (OMC), com o objetivo de reescrever as regras internacionais de comércio em seu próprio favor e isolar a China. Todos os novos tratados bilaterais e plurilaterais de comércio que os Estados Unidos estão assinando com parceiros mais fracos incluem cláusulas que lhes dão o poder de impor sanções comerciais e outras medidas punitivas contra qualquer país que contrarie sua vontade2.

A intenção dos Estados Unidos é que essas novas regras sejam também incluídas nas regras multilaterais de comércio da OMC. As mudanças que os Estados Unidos estão propondo nas regras de Tratamento Especial e Diferenciado (TED) da OMC, por exemplo, visam a dificultar o acesso ao mercado americano não só da China, mas de todos os países em desenvolvimento3.

Um dos principais efeitos da guerra comercial foi a desorganização das cadeias globais de valor. Mesmo que a guerra comercial se encerre, empresas e países precisarão reorganizar suas redes globais de fornecedores, encurtar suas cadeias de suprimento, e procurar parceiros comerciais mais confiáveis, pois nada garante que o conflito não se reacenda mais adiante.

A tendência é que, na Ásia, as iniciativas para construir acordos regionais de livre-comércio, como Acordo China+Asean, sejam fortalecidas. Iniciativas de integração de infraestrutura de transportes e comunicação, como o projeto “Um Cinturão, uma Rota”, que interligará mais de 65 países da Ásia, Europa e África com China, por meio de uma extensa e moderna rede de ferrovias e portos, passarão a ter uma importância ainda maior. Os acordos de cooperação Sul-Sul, como o BRICS, o Acordo China-Celalc e inclusão da América Latina no projeto “Um Cinturão, uma Rota” também ganharão maior relevância.

Diante da desaceleração da economia norte-americana e da instabilidade dos mercados provocadas pela guerra comercial, o presidente Donald Trump está sob pressão para concluir um acordo com a China e encerrar a disputa. Se essa guerra está causando sérios danos à economia e às empresas chinesas, como era o objetivo de Trump, talvez esteja provocando danos ainda maiores à própria economia americana e a toda economia mundial.

A China é um grande mercado para muitas empresas manufatureiras americanas e a desaceleração da economia chinesa, em decorrência das tensões comerciais, está impactando negativamente seus balanços. Grandes empresas norte-americanas como Caterpillar (equipamentos de construção); 3M; Apple, Nvidia (microchips), The Reading (baterias elétricas para empilhadeiras) Whirlpool (eletrodomésticos) e seus fornecedores em outras regiões ou países como Foxxcon, SK Hynix Inc. (fabricante sul-coreana de microchips), Nidec Corp. (fornecedora japonesa da Apple) anunciaram expressivas queda nos lucros e no faturamento.

Os principais indicadores econômicos apontam para um esfriamento da economia americana no ano de 2018, interrompendo dois anos de forte crescimento. A taxa de crescimento do PIB dos Estados Unidos cresceu 2,6%, entre outubro e dezembro de 2018, bem abaixo dos 3,4% do terceiro trimestre e dos 4,2% do segundo trimestre. De acordo com as previsões das autoridades do Federal Reserve (FED, o banco central americano), o PIB dos Estados Unidos deverá crescer 2,3% em 2019, 2,0% em 2020 e 1,8% em 20214.

A cooperação comercial Brasil-China pós-guerra comercial

A julgar pelos resultados de 2018, os efeitos da guerra comercial China-EUA foram positivos para o Brasil, uma vez que o país acabou beneficiado pelo desvio de comércio decorrente da guerra tarifária entre os dois países. O Brasil exportou mais para a China, em decorrência das tarifas impostas aos produtos americanos, sobretudo agrícolas, e também exportou mais os Estados Unidos, em decorrência das tarifas impostas pelos Estados Unidos aos produtos chineses.

Entre 2017 e 2018, as exportações do Brasil para a China passaram de US$ 47,5 bilhões para US$ 64,2 bilhões, o que represente um crescimento de 35%. Grande parte desse aumento decorreu do aumento da exportação da soja. Entre 2017 e 2018, a exportação de soja do Brasil para a China aumentou de 53,8 milhões para 68,8 milhões de toneladas métricas e o valor exportado subiu de US$ 20,3 bilhões para 27,3 bilhões. Ou seja, em decorrência da guerra comercial, a exportação brasileira de soja para a China aumentou 15 milhões de toneladas métricas e rendeu ao Brasil mais US$ 7 bilhões de dólares, apenas em 2018. Há uma década, 38% da soja que entrava no mercado chinês vinha dos EUA e 34% do Brasil. Hoje, 57% da soja que abastece a China vai do Brasil, segundo a Administração Geral da Alfândega da China5.


Fonte: MDIC

Fonte: MDIC

Além de ganhar com o aumento das exportações, sobretudo de soja, para a China, o Brasil também se beneficiou do aumento das exportações para os Estados Unidos de produtos que eles deixaram de comprar da China, em função do aumento das tarifas. Entre 2017 e 2018, as exportações brasileiras para os Estados Unidos aumentaram de US$ 26,8 bilhões para US$ 28,8 bilhões, o que representa um aumento de 7,5%.

Fonte: MDIC

Mas esses ganhos de curto prazo podem não compensar as perdas no longo prazo, pelas seguintes razões:

  1. Se a guerra comercial se prolonga, o crescimento mundial desacelera e o Brasil, como todos os outros países, vai sair perdendo. A longo prazo não haverá ganhadores. De acordo com relatório sobre tendências de trocas internacionais, da OMC, a tendência de crescimento do comércio internacional é a mais fraca desde 2010, apontando para um aprofundamento da desaceleração das importações e exportações no primeiro semestre de 2019, devido à tensão entre Estados Unidos e China1.
  2. A continuidade da guerra comercial pode provocar uma escalada protecionista com impacto negativo no preço das commodities em geral, que respondem por 65% das exportações brasileiras.
  3. Os ganhos que o Brasil pode obter com o aumento das exportações de alguns produtos podem não compensar a perdas em outros. Retornemos ao caso da soja. O Brasil é um grande exportador de carne de porco e frango e esses dois setores dependem da soja nacional para ração. Com as sobretaxas sobre a soja americana, os importadores precisam pagar um prêmio sobre a soja brasileira, tornando mais interessante para as empresas vender o grão e parar de fazer a moagem para produção de farelo e ração animal. Com isso, não só o preço da ração aumenta, tirando competitividade dos exportadores brasileiros de carne, como também perdemos participação no mercado mundial de farelo2. Ou seja, perdemos mercados em produtos de maior valor agregado (carne e farelo de soja) e nos tornamos cada vez mais dependentes da produção e venda de produtos com baixo valor agregado (os grãos).
  4. O desvio de comércio provocado pela guerra comercial, se de um lado pode beneficiar os exportadores brasileiros, por outro lado pode também prejudicar os produtores locais, uma vez que tanto exportadores americanos, quanto chineses, vão procurar outros mercados para escoar a produção barrada pelas tarifas nos Estados Unidos e na China.
  5. A forma mais rápida de a China reduzir seu superávit comercial com os Estados Unidos é aumentar a importação de produtos agrícolas americanos, que disputam com o Brasil o mercado chinês. Segundo a imprensa americana, a China estaria propondo comprar US$ 30 bilhões a mais ao ano em produtos agrícolas americanos, como soja, milho e trigo3. “O secretário de Agricultura dos Estados Unidos festejou, via Twitter, que a China teria se comprometido a comprar mais 10 milhões de toneladas de soja americana”4. O presidente americano também comemorou pelo Twitter: “Se for feito o acordo com a China, nossos grandes Fazendeiros Americanos serão tratados melhor do que jamais foram tratados antes”5. Na medida que aumenta o otimismo sobre a possibilidade de um acordo entre os Estados Unidos e a China, o preço da soja brasileira vai caindo. Entre setembro de 2018 e janeiro de 2019, o preço da soja caiu em torno de 20%.

    Fonte: Cepea/USP
  6. O provável encurtamento das cadeias globais de valor vai prejudicar ainda mais o Brasil que, pela distância em relação aos principais mercados consumidores do planeta, já tem dificuldade de inserir-se nas atuais cadeias globais de valor.

A guerra comercial é ao mesmo tempo um desafio e uma oportunidade para a China e outros países em desenvolvimento, como o Brasil. Desafio por que exigirá que China e os demais países em desenvolvimento encontrem saídas para manter seu desenvolvimento econômico sem depender tanto dos Estados Unidos. Oportunidade porque permitirá que fortaleçam seus laços de cooperação.

No caso específico das relações Brasil-China, a guerra comercial traz também desafios e oportunidades. Um desafio de curto prazo para a China é como costurar um acordo com os Estados Unidos sem prejudicar seus demais parceiros comerciais. O Brasil e os Estados Unidos competem entre si pelos mercados agrícolas da China. Qualquer acerto entre a China e os Estados Unidos para aumentar a importação de produtos agrícolas dos Estados Unidos pode afetar negativamente o Brasil. O Brasil tem sido um parceiro confiável da China e é importante que esses laços de confiança sejam preservados e fortalecidos. A China sabe que, por mais importante que seja uma boa relação com os Estados Unidos, qualquer acordo com os norte-americanos será sempre provisório. Os Estados Unidos não veem a China como parceiro estratégico, mas como concorrente estratégico.

Já no caso do Brasil, mesmo considerando a recente mudança do governo e a eleição de um presidente admirador de Trump e declaradamente pró-americano, o fato é que, como dois grandes países em desenvolvimento, Brasil e China têm muito mais em comum entre si do que com os Estados Unidos. O Brasil tem importância estratégica como grande fornecedor de alimentos e outros insumos, que a China vai precisar cada vez mais à medida em que se torna um país desenvolvido. A China tem importância estratégica para o Brasil, não só como mercado de exportação, mas também como fonte de investimento direto estrangeiro e parceira na cooperação industrial, tecnológica, científica e cultural. Encontrar um caminho que permita China e Estados Unidos acomodarem seus interesses e, ao mesmo tempo, fortalecer a cooperação Sul-Sul é um grande desafio. Dependendo de como se saia nesse desafio, a China se afirmará como grande líder mundial.

1 Moreira, A. OMC: Perspectiva para o comércio global permanecer negativa no 1º trimestre. Valor Econômico, 19/2/2019.

2 Gonçalves, C. Maggi vai tratar de embargo à carne brasileira na China”. Agência Brasil, 20/6/2018. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-06/maggi-vai-tratar-com-russia-e-china-sobre-embargo-carne-brasileira. ; Consultado em 24/2/2019.

3 Shuping, N., Yang, S. e Almeida, I. China propõe comprar dos EUA mais US$ 30 bi em produtos agrícolas. Valor Econômico, 22/1/2019.

4 Sá, N. China oferece comprar dos EUA o que hoje compra do Brasil. Folha de S. Paulo, 27/2/2019.

5 Idem, ibidem

1 Wei, L. e Davis, B. US., China Close in on Trade Deal. The Wall Street Journal, 3/3/2019

2 Chen, S. Poison pill terms will kill fair trade. China Daily, 25/10/2018.

3 Moreira, A. EUA querem excluir países de tratamento especial no OMC. Valor Econômico, 21/2/2019.

4 Torry, H. PIB dos EUA desacelera e fica aquém da meta de Trump. Valor Econômico, 1/3/2019.

5 Duarte, L. “Como a guerra comercial entre EUA e China pode afetar o Brasil”. BBC Brasil, 7/7/2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44745494. Consultado em 2/3/2019.

Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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