Covid-19: EUA apoiam quebra de patentes e Brasil fica em posição desconfortável

"Ciência e Caridade", pintura de Pablo Picasso.

Na corrida entre o vírus e a vacina, o vírus segue na frente. Enquanto novas variantes do coronavírus, mais letais e transmissíveis, multiplicam-se livremente, o combate à pandemia enfrenta limites de diversas ordens. O vírus se aproveita de nossa natureza social para se espalhar, enquanto os limites relacionados a essa mesma natureza social impedem que o combate à pandemia e seus efeitos seja mais efetivo.

Limites tecnológicos e físicos para desenvolver e ampliar a produção e distribuição de vacinas; limites políticos impostos pelos países sede dos laboratórios produtores das vacinas para privilegiar sua própria população e, não menos importante, limites de mercado. Por mais meritória que possa ser a produção privada das vacinas, assim como era a produção de pão, carne e cerveja nos tempos de Adam Smith, não é pelo amor à humanidade que os laboratórios privados se dedicam a produzi-las, mas pelo dinheiro.

Questões relacionadas à garantia do retorno financeiro dos investimentos, como as patentes, mesmo quando financiadas generosamente pelos Estados, têm primazia sobre qualquer consideração humanitária ou de saúde pública. Chegamos, na última semana de abril, à marca de um bilhão de vacinas já aplicadas em todo o mundo, mas 82% das vacinas foram dadas em países de renda alta e renda média-alta, de acordo com dados da Universidade de Oxford. Apenas 0,2% das vacinas foram dadas em países de renda baixa. Não é de estranhar, portanto, que uma nova onda de infecções, ainda mais letal que as duas primeiras, venha ganhando força na periferia do sistema capitalista mundial.

As multinacionais farmacêuticas entre o lucro e a saúde humana.

Uma terceira onda de infecções se fortaleceu no mês de abril e elevou o número total de casos em todo o mundo para cerca de 150 milhões e o número de mortos para cerca de 3,2 milhões de pessoas. Enquanto nos Estados Unidos – até agora o principal foco da doença, com 32,15 milhões de infectados e 573 mil de mortes –, e na Europa, a curva apresenta sinais de arrefecimento na medida em que o percentual de vacinados aumenta, na Ásia e América Latina observa-se uma tendência contrária. Embora Brasil e México permaneçam ainda como os dois países com maior número de mortes depois dos Estados Unidos – 400 mil e 215 mil, respectivamente – a Índia já saltou para a segunda posição no número total de infecções – 17,64 milhões – com um número de mortes, considerado por muitos como subestimado, superior a 200 mil.

Enquanto nos países pobres e na maioria dos países em desenvolvimento a vacinação se arrasta, novas cepas do coronavírus, mais transmissíveis e mais letais, multiplicam-se, tornando cada vez mais difícil e demorado o controle da doença em nível mundial. A constatação de que não há salvação sem que a maior parte da população mundial seja vacinada vai se mostrando cada vez mais verdadeira. Nem por isso os países ricos dão mostras de abandonar o chamado nacionalismo das vacinas.

A iniciativa Covax – organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – por meio da qual os países ricos se comprometeram a fornecer vacinas gratuitas para 92 países de baixa e média renda cortou o número de vacinas que planeja enviar até o final de maio para 145 milhões de doses em vez de cerca de 240 milhões planejados inicialmente, porque a Índia, seu principal fornecedor, parou a exportação enquanto luta contra uma onda de casos em casa. Embora mais de 200 milhões de doses já tenham sido administradas nos EUA, a Covax forneceu menos de 41 milhões dos dois bilhões de doses planejadas até fim do ano, aprofundando ainda mais o fosso entre ricos e pobres.

A Índia, que abriga o maior laboratório de produção de vacinas do mundo, o Instituto Serum, que produz as vacinas da AstraZeneca-Oxford e está abastecendo, além de seu próprio país, muitos outros países em desenvolvimento, enfrenta dificuldades para ampliar a oferta, porque os Estados Unidos, visando aumentar a produção de vacinas em seu próprio território, está dificultando a exportação de diversos componentes necessários para a produção.

Apesar do coro crescente a favor da suspensão das patentes, não há sinais de que os grandes laboratórios farmacêuticos e seus governos cogitem tomar alguma medida mais radical com o objetivo de acelerar a produção e a distribuição dos imunizantes, sobretudo para os países mais pobres. Proposta feita pela Índia e África do Sul para a suspensão das patentes na OMC e apoiada por mais de 60 países e um grupo de 175 ex-líderes mundiais e vencedores do Prêmio Nobel, que pediram que o presidente dos EUA, Joe Biden, tome “ações urgentes” para suspender os direitos de propriedade intelectual sobre vacinas anticovid para ajudar na campanha global de imunização, foi rechaçada pelos grandes laboratórios farmacêuticos globais.

O simples fato de a nova representante comercial dos Estados Unidos (USTR), Katherine Tai, e sua equipe ter discutido o tema, nas últimas semanas, com representantes da indústria, sindicatos e grupos de interesses, provocou fortes reações. Em encontros privados, em Washington, os fabricantes de medicamentos advertiram os funcionários do governo americano de que a suspensão temporária das patentes poderia resultar na entrega das novas tecnologias, como a mRNA, utilizadas pela Pfizer e Moderna na produção das vacinas da Covid-19, para a Rússia e a China, as quais poderiam ser usadas para a produção, no futuro, de outras vacinas e mesmo novas terapias contra o câncer e doenças cardíacas.

Uma luz no fim do túnel?

Sob pressão da base democrata e, provavelmente, preocupado com o risco de a Índia, seu principal aliado na Ásia, perder totalmente o controle sobre a pandemia, abrindo ainda mais espaço para a China na região, o governo Biden anunciou o apoio dos Estados Unidos à suspensão temporária das patentes de vacinas anticovid. Independentemente do que o apoio norte-americano possa representar de concreto nas discussões em curso na OMC, trata-se de um acontecimento histórico. Nunca é demais lembrar que a inclusão da questão da propriedade intelectual na pauta de negociações de comércio que levou à criação da OMC, em 1994, e que resultou na assinatura do acordo TRIPS sobre patentes, foi praticamente uma imposição dos Estados Unidos em apoio à indústria farmacêutica norte-americana. As duras críticas da indústria farmacêutica à decisão de Biden dizem muito sobre o atual momento político global. As grandes corporações globalizadas já não se identificam mais com os governos de seus países de origem, como ocorria em passado recente. A disputa entre governos de todo o mundo com as gigantes de tecnologia, não só em torno do pagamento de impostos, mas também sob o controle de informações de interesse estratégico, mostra que o grau de monopolização do capitalismo global ameaça colocar os estados nacionais como atores cada vez mais subalternos, inclusive no centro hegemônico.

Caso não haja da parte dos governos uma mudança de atitude com relação ao “nacionalismo a vacinas” a flexibilização das patentes também não produzirá os efeitos desejados. A produção de vacinas depende de uma complexa cadeia internacional de suprimentos que vem sendo travada por restrições impostas pelos principais países produtores de insumos necessários para sua produção. Um grupo restrito de países – Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido, Japão e China – respondem por cerca de 88% dos componentes usados nas vacinas. Segundo o Banco Mundial, os Estados Unidos respondem por 33% dos ingredientes e a União Europeia por outros 24%, totalizando 57% dos mais de 100 ingredientes necessários. A grande dificuldade que a Índia enfrenta no momento para expandir sua produção são as restrições impostas pelos Estados Unidos, por meio do Defense Production Act (DPA), decretado por Trump e não revogado por Biden, para a exportação de vários componentes, para reservá-los à produção nacional. Mesmo no Brasil, que faz parte do restrito grupo de países com capacidade própria de produzir vacinas – o chamado “Clube da Vacina[i]” – tanto o Butantan quanto a Fiocruz têm registrado dificuldade no recebimento de insumos ativos, o que tem levado a atrasos nas entregas das vacinas.

E o Brasil?

Quando a Índia e a África do Sul apresentaram, na OMC, a proposta de flexibilização das patentes, em outubro passado, o Brasil, que tinha uma posição histórica a favor de quebra de patentes farmacêuticas, foi o único país em desenvolvimento que ficou ao lado dos EUA, União Europeia, Japão, Suíça e outros países desenvolvidos contra a proposta. Diante do desgaste, dentro e fora do Brasil, que essa posição acarretou ao governo Bolsonaro, os representantes brasileiros passaram a ficar calados nos debates na OMC. Com a mudança da posição dos Estados Unidos em relação ao tema, o Brasil fica em uma situação no mínimo vexaminosa. Difícil explicar como o país sede dos principais laboratórios farmacêuticos mundiais apoia a quebra das patentes e o Brasil, um dos países do mundo mais prejudicados pela adoção de patentes de remédios, em 1994, fica ao lado do oligopólio da indústria farmacêutica.


[i] O chamado “Clube da Vacina” que reúne os países do mundo com capacidade de produção das vacinas anticovid é formado por: Estados Unidos, União Europeia, China, Índia, Reino Unido, Canadá, Suíça, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Rússia, Brasil e Argentina.

Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

Não há posts para exibir

1 COMENTÁRIO

Deixe um comentário

Escreva seu comentário!
Digite seu nome aqui