Intérpretes do Brasil – Milton Santos

Milton Almeida dos Santos (Brotas de Macaúbas-BA, 1926 – São Paulo-SP, 2001), mais conhecido como Milton Santos, foi um dos mais eminentes geógrafos brasileiros, homenageado com o Prêmio Vautrin Lud, a mais importante condecoração no ramo da Geografia.

Milton Santos destacou-se na formulação de um pensamento nacional acerca da territorialidade brasileira. Em sua concepção, o território não significa apenas recurso político-econômico, mas, sobretudo, abrigo, onde a sociedade estabelece seus modos de vida e de convivência.

O território, como categoria política, não pode ser compreendido sem referência à dinâmica histórico-social que o perpassa e o vivifica. O território, em si mesmo, é uma abstração. O “território utilizado”, permeado pelo trabalho e pela política, em uma relação interdependente entre os elementos fixos, imóveis, e os fluxos, móveis, é o que viabiliza, em sentido físico-político, a existência coletiva da Nação.

O espaço, enquanto território, isto é, espaço nacional, possui, então, uma historicidade, em razão dos processos sociais nele assentados. O Brasil, “com uma grande variedade de sistemas naturais sobre os quais a história foi se fazendo de um modo também diferenciado” (Santos e Silveira, 2001, p. 249), teria conhecido diferentes modos de utilização do espaço conforme os ciclos econômicos.

Os “quatro Brasis” a que ele se refere – a “Região Concentrada” formada por Sudeste e Sul, o Nordeste, o Centro-Oeste e a Amazônia – teriam sido integrados, em meados do século XX, pelo signo do industrialismo. A partir de então, poder-se-ia considerar o território brasileiro completamente apropriado, em função da expansão politicamente induzida da fronteira econômica, tendo como marcos a Marcha para Oeste, de Getúlio Vargas, a construção de Brasília e os programas de colonização e expansão agrícola-industrial do regime militar.

Milton Santos via no retorno a ideia de Nação e na solidariedade nacional a solução para os grandes desafios enfrentados pelo Brasil.

A industrialização, eixo da integração físico-demográfica do território brasileiro nesse período, é entendida pelo autor não apenas como a criação de atividades fabris em si, mas como “processo social complexo, que tanto inclui a formação de um mercado nacional, quanto os esforços de equipamento do território para torná-lo integrado, como a expansão do consumo em formas diversas, o que impulsiona a vida de relações (leia-se terciarização) e ativa o próprio processo de urbanização” (Santos, 2005 [1993], p. 30).

A urbanização, como fenômeno correlato do industrialismo, alastrou-se pelo Brasil no período de 1940 a 1980, quando a taxa de urbanização salta de 26,35% para 68,86%, em um período em que triplica a população total brasileira e, assim, a população urbana se multiplica sete vezes e meia.

O urbanismo brasileiro, contudo, arrastou consigo a pobreza, que passa a se localizar, sobretudo, na grande cidade. A acelerada metropolização, manifestação da rápida modernização do tecido socioeconômico nacional, refletiu não apenas o planejamento governamental e empresarial, mas, igualmente, as tensões e contradições derivadas desse processo.

Essas questões agudizam-se à medida em que, ao final do século XX e início do XXI, ocorre, segundo o autor, uma “involução metropolitana”, com o polo dinâmico da produção de valor deslocando-se das cidades para as regiões agrícolas e seus respectivos polos urbanos regionais.

Isso decorreria, principalmente, da desconcentração industrial e da criação de novas frentes de expansão agro-técnico-científico-industriais ocorridas a partir da década de 1970, em função de políticas estatais orientadas para o desenvolvimento e o povoamento da hinterlândia brasileira.

Haveria, então, uma concomitância da tendência centrífuga das cadeias produtivas com uma tendência centrípeta, no coração financeiro da capital paulistana, dos comandos financeiro-administrativos da produção, ressignificando a metrópole como “locus” de gestão para minorias gerenciais, em vez de arena de oportunidades para as maiorias populares.

Santos, todavia, não vê a cidade brasileira pelo prisma da negatividade. Em sua concepção, “A cidade, onde tantas necessidades emergentes não podem ter resposta, está desse modo fadada a ser tanto o teatro de conflitos crescentes como o lugar geográfico e político da possibilidade de soluções” (Santos, 2005 [1993], p. 30).  A cidade, portanto, torna-se espaço não apenas de escassez e de competição, mas também de soluções.  

A cidade, tomada em abstrata, seria, contudo, incapaz de proporcionar as bases para o encaminhamento de soluções alternativas ao status quo da dominação financeira, pois a sua abstração como elemento disperso na aldeia global seria, ela mesma, expressão dessa dominação.

Em suas reflexões ao final da vida, Santos considera que, no contexto mundial da globalização, a solução para os desafios da época encontra-se na Questão Nacional. Em suas palavras, “Para encontrar um começo de resposta, o primeiro passo é regressar às noções de nação, solidariedade nacional, Estado nacional” (Santos, 2000, p. 95).

A globalização, para ele, não implicaria a inevitabilidade da perda de soberania. A tirania do dinheiro e a tirania da informação, operadas pelas corporações transnacionais à revelia do interesse social e em detrimento da coesão territorial da Nação, seriam viabilizadas pelas normas, regulamentações e infraestruturas instituídas pelos Estados. A privatização das realidades sociais e dos usos do território em favor da acumulação financeira transnacional constituiria, pois, o resultado planejado de opções governamentais acerca do modo de inserção do País na globalização.

Justamente por isso, a “política do mercado”, em sua lógica particularista, acumuladora e excludente, não seria inelutável, mas apenas um caminho entre tantos outros. Face à globalização, seria possível – e, mais ainda, necessário – estabelecer um projeto nacional capaz de orientar soberanamente as nações num mundo progressivamente interconectado. Os exemplos contemporâneos de países tão distintos como China, Rússia, Índia, Coreia do Sul, Vietnã e Noruega, casos de sucesso na globalização a partir da liderança de Estados fortes imbuídos de projetos nacionais, atestam a validade histórica da tese defendida pelo autor.

A viabilidade de um projeto nacional estaria intrinsecamente relacionada, para Santos à centralidade da Política propriamente dita, com P maiúsculo. Ela, por definição, significa a primazia do bem comum e da proteção e promoção do que é nacional, isto é, do que é comum a todos que compartilham um status de cidadania em dado território e sob uma determinada jurisdição estatal. Em suas palavras:

“A política, por definição, é sempre ampla e supõe uma visão de conjunto. Ela apenas se realiza quando existe a consideração de todos e de tudo. Quem não tem visão de conjunto não chega a ser político. E não há política apenas para os pobres, como não há apenas para os ricos. A eliminação da pobreza é um problema estrutural. Fora daí o que se pretende é encontrar formas de proteção a certos pobres e a certos ricos, escolhidos segundo os interesses dos doadores. Mas a política tem de cuidar do conjunto de realidades e do conjunto de relações.” (Santos, 2000, p. 67).

Santos critica, pois, a redução da política a um “acúmulo de normatizações particularistas, conduzidas por atores privados que ignoram o interesse social”, que funciona de maneira a “conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas (Santos, 2000, p. 36-37).

Ao restituir o caráter nacional e coletivo da Política, Santos posiciona-se contrariamente à tendência contemporânea de substituir a política social pela filantropia oficial, ditada por instituições como o Banco Mundial, e de corrosão do tecido social pela multiplicação de falsas identidades, desenraizadas, arbitrárias e aleatórias, cujos portadores, transformados em vetores semiconscientes de estereótipos criados pelo marketing e pelo show business, tornam-se incapazes de vislumbrarem realidades maiores que a sua própria e de aglutinarem-se com os demais grupos e setores sociais em defesa de um projeto comum de redenção nacional.

Não por menos, quando questionado sobre o Dia da Consciência Negra, ele, sem negar a importância simbólica da data, afirmou que o fundamental seria haver a tomada de consciência nacional, pois, apenas nos marcos da nacionalidade, junto aos demais brasileiros, os negros encontrariam a solução para as questões que os afetam.

A profícua obra de Milton Santos, cuja amplitude resiste a ser sistematizada em poucos parágrafos, constitui elaboração do mais alto nível acerca do Brasil em suas dimensões geográficas, isto é, da interdependência entre sociedade, política e espaço. Pensar, viver e fazer a Nação a partir do seu território, que, portanto, deve ser valorizado e defendido, eis o fio condutor do legado intelectual do autor.

REFERÊNCIAS:

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: Território e Sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.

SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 5ª ed. São Paulo: Edusp, 2005 [1993].

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Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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3 COMENTÁRIOS

  1. Um excelente texto! Temos todo ideário nacional popular construído por Milton Santos que em seu bojo teórico é verdadeiramente desenvolvimentista e soberano….

  2. Belíssimo texto Felipe, parabéns.

    Que todos os Brasileiros possam ser um pouco Milton Santos

    • Concordo contigo! Devemos valorizar e respeitar nossa história e seus grandes pensadores, dentre os quais está Milton Santos

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