A Independência além do grito: a grande aventura épica do surgimento da Nação brasileira.

*Maria Auxiliadora Figueiredo

Viena, 1815; Rio de Janeiro, 1820; Cidade do Porto, agosto de 1820; Cidade de Santos; Cidade do Porto; Rio de Janeiro; São Vicente. Baixada santista; Lisboa….

Diferentes cenários, com cronologias próximas ou iguais, vão introduzindo, ao longo do livro, os acontecimentos, atores, suas conversas, suas dúvidas, seus interesses e as contendas, conluios e batalhas que culminaram, em Lisboa, em 1825, com o reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal e Inglaterra.

O grito de 7 de setembro de 1822 tem apenas uma menção fugaz, um único parágrafo, qual seja:

“O Grito do Ipiranga é um ato político e de planejado marketing (a palavra não existia, mas a encenação é antiga). No dia 2 de setembro, no Rio, a princesa Maria Leopoldina, com os poderes de regente interina, reuniu o conselho de ministros e, perante eles, com o consentimento prévio do marido, assinou o decreto de separação de Portugal. O objetivo do evento à margem do riacho é tornar pública a separação e comprometer São Paulo com a Regência e os atos do príncipe.”

Para José Antônio Severo, a pequena relevância do Grito, em que pesem seu alto valor simbólico e o vigor de sua memória, está explícita no desenrolar da obra e já se evidencia no título: “Independência – Além do Grito”. Porque é disso que se trata ou o que o autor busca provar: que a Independência do Brasil não emanou de ação volitiva de Dom Pedro I às margens do Ipiranga, mas, sim, de inúmeros fatores geopolíticos e estratégicos sendo considerados à época no Brasil e na Europa, bem como de insurreições contra o domínio português que pipocavam em diferentes regiões do país e ameaçavam a integridade do território nacional. Como bem nota o autor na contracapa do livro, a vitória dos patriotas tampouco ocorreu integralmente em 7 de setembro de 1822, mas se estendeu até o ano seguinte no Nordeste e mais outro, na Província Cisplatina.

São tantas as implicações dos acontecimentos que precederam o Grito, que Severo quase não se ocupa da experiência dos países da América hispânica que se iam tornando independentes nos moldes dos Estados Unidos e/ou conforme os ideais da Revolução Francesa. As múltiplas independências dos nossos vizinhos são, porém, lembradas na obra por protagonistas portugueses e brasileiros, como José Bonifácio de Andrada e Silva, que as têm por maus exemplos por significarem a fragmentação do antigo império espanhol nas Américas.         

Severo inicia o livro no que considera o “parto de nosso personagem, o Brasil”, o Congresso de Viena, ao qual Lisboa comparece como Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e suas colônias de ultramar. A promoção de colônia a “reino unido” reflete a crescente autonomia de que o Rio de Janeiro passou a dispor desde a vinda da Família Real. Consiste, sobretudo, no motivo pelo qual o retorno do Brasil à situação colonial, estabelecido pelas Cortes Extraordinárias Constituintes da Nação Portuguesa após a Revolução do Porto, não poderia ser aceito pelo Príncipe Regente. A entrada em vigor da jurisdição do congresso constitucionalista português implicou, para Dom Pedro, o esvaziamento de todo o seu poder, reduzido à província do Rio de Janeiro, pois as demais Juntas Provisórias passaram a responder diretamente à Junta de Lisboa. 

José Antônio Severo considera que foi nesse quadro que se iniciou a luta pelo poder que acarretou a independência. Esse comecinho da disputa, contudo, o leitor só o encontra no quinto capítulo do livro, quando já lhe foi dado conhecer os diferentes modos de pensar dos irmãos Andradas, de Dona Leopoldina e Dom Pedro, de Dom João VI, de seus interlocutores, dos inspiradores da revolução espanhola de 1812 (que gerou a Constituição de Cadiz), dos membros de uma sociedade secreta do Porto intitulada Sinédrio, do governador militar inglês de Portugal, William Carr Beresford, dos militares portugueses insatisfeitos com o domínio militar britânico, dos chefes militares, comerciantes, jornalistas influentes e membros da maçonaria portuguesa (insatisfeitos, por sua vez, com o governo provisório e em desacordo quanto ao formato a ser adotado pelo governo que o sucederá), dos principais integrantes da Santa Aliança e até dos integrantes das tropas portuguesas enviadas ao Brasil para pacificar grupos independentistas exaltados e manifestantes nas principais cidades brasileiras.

A densidade desses primeiros capítulos não diminui nos seguintes. Ao contrário, aumenta. O leitor continua a ser inteirado dos pensamentos dos principais atores, como de José Bonifácio, reiteradas vezes, de Dona Leopoldina e Dom Pedro, do chefe de operações na Província Cisplatina, do rei Fernando VII (que pretendia promover novamente a anexação de Portugal à Espanha), de Dona Carlota Joaquina e o príncipe Dom Miguel, de Talleyrand e Metternich no âmbito da Santa Aliança, do Duque de Wellington (Foreign Office), de diversas personalidades locais e portuguesas envolvidas nas negociações para o retorno de Dom João VI a Portugal e assim por diante.

O parágrafo do Grito acima citado e o breve relato da paixão de Dom Pedro pela paulista Domitila de Castro Canto e Melo só vão constar do décimo segundo capítulo, quando o Príncipe Regente já terá demonstrado suas habilidades políticas em Vila Rica (Minas Gerais) e em São Paulo. Mas a situação nacional “é complicada, com guerra civil na Bahia, rebeliões em Belém e São Luís, indefinição no Recife e uma dúvida em Montevidéu, onde o governador Frederico Lecor aderiu à Independência, mas o exército português, que ocupa a cidade, ficou com as Cortes”. 

É na descrição das batalhas que José Antônio Severo nomeia muitos dos heróis e heroínas desconhecidos da Independência do Brasil. O ritmo denso e de múltiplos cenários dos capítulos sobre os modos de pensar dá lugar, a partir do Grito, a uma cenografia igualmente multifacetada, porém com vivacidade e velocidade redobradas na narração dos confrontos visando à pacificação do país e ao estabelecimento do Império, bem como na apresentação dos inúmeros comandantes e integrantes importantes de ambos os lados das refregas.

Sem conseguir largar o livro, ao chegar às batalhas e às exposições das táticas adotadas pelos combatentes, o leitor vai tomando ciência, quase que sem perceber, da participação, no cerco de Montevidéu, do futuro Marechal Osório, comandante do exército brasileiro na Guerra do Paraguai, então com 14 anos de idade. Nos enfrentamentos na Bahia, fica sabendo do contingente de mulheres combatentes, entre as quais se encontrava Maria Quitéria, promovida a 1º cadete por ato de bravura em seu primeiro enfrentamento. Conhece, ainda, outra figura importante da Bahia, Maria Filipa de Oliveira, denominada a Marisqueira, que liderou grupo de 80 mulheres nadadoras e mergulhadoras que lograram, em alto mar, envenenar marinheiros e incendiar barcos portugueses. Já no Piauí, entre as desavenças e combates, o leitor é apresentado à diversidade étnica de sua população, em que “brancos, mulatos e pretos, todos uns e ouros, se tratam com recíproca igualdade”.

Como pretendia, José Antônio Severo demonstra, dessa forma, que a Independência não foi uma ação de homens brancos e adultos, com um único negro, espantado, assistindo, como no famoso quadro de Pedro Américo. Ao contrário, Severo alcança, na obra, seu objetivo de provar que “houve povo nessa empreitada” – e mulheres.

Por fim, cabe assinalar que o “Independência Além do Grito” se presta admiravelmente à elaboração de sua versão cinematográfica, mas não como um único filme. Seu denso conteúdo, enorme quantidade de personagens, variedade de cenários e façanhas próprias de superproduções demandariam um seriado, com múltiplos – e deliciosos – capítulos. A necessidade maior, porém, de sua divulgação decorre do objetivo mesmo da obra: corrigir uma historiografia falha e omissa, que não reflete a realidade da nação brasileira no momento de seu nascimento. O livro de José Antônio Severo revela ser imprescindível a vulgarização, o quanto antes, dos fatos, ideias e lutas que efetivamente levaram o Brasil a separar-se de Portugal.

  • *Embaixadora aposentada.

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