Severo, intérprete do Brasil

Primeiro conheci o José Antônio Severo historiador pelos livros presenteados pela jornalista Ana Amélia Lemos, chefe da sucursal do jornal Zero Hora em Brasília (depois senadora) e que sabia do meu interesse pela história da Província de São Pedro do Rio Grande e das minhas andanças pelos pagos em busca da memória dos bravos, que a partir da fronteira sul ajudaram a construir o Brasil.

Anos depois, Severo me foi apresentado no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação pelo jornalista Ivanir José Bortot, meu companheiro de jornadas estudantis da UNE (União Nacional dos Estudantes) nos finais dos anos 70. Foi uma breve conversa sobre os temas que selaram definitivamente nossa identidade e amizade: a história e a memória do Brasil. Da conversa nasceu o convite imediato para que Severo passasse a integrar a assessoria do Ministério.

Quando deixei a pasta e fui para o Ministério da Defesa, Severo me acompanhou no desafio pleno de novos caminhos a quem se interessava por história e memória do País.

Percorremos os cenários da Guerra do Paraguai em viagem inesquecível, marcada por emoções e reminiscências sobre personagens e episódios do conflito que envolveu o destino de brasileiros e paraguaios.

Em Curuzu, Humaitá, Tuiuti, Curupaiti, Itororó nossa delegação, ao lado da delegação paraguaia, depositou flores em homenagem aos combatentes que honraram as duas pátrias em solo e nas águas do rio Paraguai. Severo citava de cabeça números e personagens de cada episódio e era admirável como fazia isso com a simplicidade dos sábios e a precisão dos matemáticos.

Sempre imaginei Elisa Alícia Lynch, a mulher irlandesa do general Solano Lopez, como uma personagem à espera de um roteiro para um filme épico sobre a Guerra da Tríplice Aliança.

Discuti horas com severo sobre a vida de aventuras da grande dama da guerra, provavelmente a única protagonista cuja biografia eu conhecia melhor do que ele.

Severo escreveu um texto a título de pré-roteiro e submeteu a minha apreciação. Opinei que o texto estava muito fiel à vida de Madame Lynch e que eu preferia que o filme tivesse a liberdade de introduzir um pouco de ficção, sem alterar substancialmente a biografia da mulher do general. Eu tinha muito mais simpatia pela biografia carregada de fantasia do gaúcho Fernando Baptista – Elisa Lynch, mulher do mundo e da guerra –  que li pela primeira vez em uma edição argentina do que pelo belo e rigoroso trabalho dos irlandeses Michael Lillis e Ronan Fanning – Calúnia, Elisa Lynch e a Guerra do Paraguai – que conheci em uma edição publicada em Assunção.

A verdade é que Severo concordou, não sei com que grau de convicção, com as alterações que sugeri, e eu é que nunca encontrei tempo para colocá-las no papel. De qualquer forma, quando essa ideia do roteiro for retomada, o nome de meu amigo estará obrigatoriamente inscrito no primeiro plano.

O jornalista, o editor inovador e o repórter que espantava os colegas pelo talento e criatividade são os Severos mais conhecidos, mas há um Severo tão talentoso e pouco revelado no leitor intenso, capaz de escrever resenhas que podem constar como capítulos inéditos e surpreendentes dos livros resenhados.

Finalmente, o Severo que mais me impressionava: o intérprete do Brasil que percebia com grande sensibilidade as armadilhas intelectuais e políticas dos modismos identitários a ameaçar as origens indígena, africana, portuguesa e mestiça do Brasil. Tinha orgulho do sangue índio e português e se reconhecia gaúcho de pelo duro, como se fala nos pagos. Juntos fomos à casa de Paixão Cortes para levar uma condecoração que concedi ao fundador do movimento tradicionalista gaúcho. Severo ainda organizou uma palestra minha no Instituto Histórico e geográfico do Rio Grande do Sul, quando defendi o tradicionalismo como uma manifestação nacionalista, democrática e anti-imperialista nascida dos estudantes do Colégio Júlio de Castilhos, em contraponto à interpretação da chamada “nova esquerda” e dos “progressistas” identitários que acusam o tradicionalismo de legitimar o latifúndio e o conservadorismo no Brasil meridional.

Severo partilhava minhas preocupações com a ofensiva desagregadora do identitarismo patrocinado pelas corporações financeiras e multinacionais, financiado pelas bolsas generosas das fundações estrangeiras e protegido por grande parte de nossa academia. E me surpreendia pela intuição e clareza de um raio intenso a iluminar a escuridão com que identificava as causas e as origens do identitarismo.

No seu Rio Grande, apontava a historiografia revisionista contemporânea plantada nas universidades como uma corrente divorciada das raízes do Rio Grande antigo e de sua matriz indígena, negra, mestiça e rural, tão bem retratado pelos velhos ensaístas não acadêmicos que escreveram a história gaúcha.

Em São Paulo, via o antigo berço dos Bandeirantes abrindo as portas para os modismos identitários importados da Europa e dos Estados Unidos e as concessões ao cosmopolitismo perfumado como expressão da fragilização dos laços de São Paulo com a centralidade da questão nacional, herança da derrota das elites do estado em 1932 e do pensamento criado na USP, já chamada por um intelectual de departamento francês de ultramar. A grande universidade paulista desprezou o pensamento de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro e mesmo seus mais talentosos intelectuais nada encontraram para substituir a interpretação original da civilização brasileira dos autores de Casa Grande & Senzala e O Povo Brasileiro.

Seu último lampejo de criatividade e amor ao Brasil foi esse livro-roteiro sobre os 200 anos da independência da nossa Pátria, epopeia tema de longas conversas acompanhadas por uma boa aguardente e taças de vinho.

Já que fomos impotentes para conservar Severo vivo entre nós, que sejamos esforçados para proteger suas ideias e sua memória.

São Paulo, agosto de 2022, do Bicentenário da Independência do Brasil.

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Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.

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1 COMENTÁRIO

  1. Maravilha! Belo texto que sintetiza esse homem tão importante para a memória do Cone Sul . Severo não será esquecido.!

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