Divulgado no último dia 27 de junho, o Comunicado conjunto do Brics, elaborado durante reunião informal de seus líderes ocorrida à margem da Cúpula do G20 em Osaka (Japão), trouxe algumas considerações sobre as incertezas que rondam o crescimento mundial, com o aumento das tensões comerciais e geopolíticas, volatilidade dos preços das commodities e condições financeiras mais rígidas que incrementam os riscos. Diante desses desequilíbrios, o texto ressalta a satisfação do grupo com os papéis a serem desempenhados pelo Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, sigla em inglês) e pelo Arranjo Contingente de Reserva (CRA, sigla em inglês),[1] ambos anunciados e estabelecidos pelos cinco países entre 2014 e 2015.
Para o NDB, salientou-se a importância do esforço concentrado para enfrentar o atraso na realização de investimentos em infraestrutura crítica nos países membros, e para o CRA, a necessidade de assegurar sua prontidão operacional para responder a uma solicitação de recursos diante da iminência de pressões de curto prazo sobre o balanço de pagamentos de qualquer país-membro. Em um contexto no qual muitos analistas têm apontado para um quadro de desaceleração da economia global com uma possível crise financeira em 2020-2021, essas considerações parecem fazer sentido.[2]
A crise financeira internacional eclodida em setembro de 2008 com a quebra do banco de investimento americano Lehman Brothers mostrou sua dimensão sistêmica pelos graves efeitos que poderia ter sobre as transações internacionais e o nível de emprego e renda global. Dessa vez, a crise teve como epicentro os países do Grupo dos Sete (G7) e não as economias em desenvolvimento e em transição como observado em períodos anteriores.[3] O mundo havia mudando. O peso das economias emergentes e dos países em desenvolvimento no produto global havia saído de um quinto em 1990 para um terço em 2008, chegando a quase 40% em 2014, e essas economias acumularam imensos volumes de reservas internacionais nesse período.
Sob a coordenação do Grupo dos Vinte (G20) – cuja composição já incluía todos os países com igualdade de participação – foi realizada em novembro de 2008, em Washington, a primeira reunião para debater a crise e fazer recomendações de políticas para estabilização e recuperação da economia mundial. O diagnóstico partiu da leitura de que o período de crescimento global (2003-2007), com fluxos de capitais crescentes e estabilidade econômica, havia levado os mercados a buscarem retornos mais elevados para os seus negócios sem a adequada avaliação dos riscos, e que as instituições reguladoras não estiveram atentas ao ritmo das inovações financeiras e ao nível de desregulamentação dos mercados. Resultado da crise: aversão ao risco por parte dos agentes econômicos, com racionamento da oferta do crédito na Europa e Estados Unidos, elevação dos juros, volatilidade dos mercados monetários internacionais, causando uma forte diminuição do comércio e investimento internacional.[4]
Entre as recomendações feitas pelo G20 estavam a adoção de medidas anticíclicas, o fortalecimento da regulação sobre as práticas financeiras e a introdução de reformas em instituições como o FMI e o Banco Mundial no que se refere ao modus operandi e estrutura decisória assimétrica. Nesse último ponto, houve avanços, mas assim que a crise refluiu nas economias desenvolvidas, a segunda fase das reformas não se concretizou.
Foi nesse contexto que o Brics decidiu criar os dois mecanismos financeiros de cooperação: o CRA e o NBD. O CRA foi estabelecido como uma plataforma de apoio mútuo entre os países do grupo, por meio da utilização de instrumentos preventivos e de liquidez, em resposta a pressões de curto prazo (reais ou potenciais) sobre o balanço de pagamentos. Com uma reserva virtual de US$ 100 bilhões, os recursos comprometidos pelos cinco países podem ser acionados em caso de necessidade, por meio de um swap cambial, complementando, assim, a rede de segurança financeira global.
No que se refere ao NDB, este foi dotado de um capital também de US$ 100 bilhões, como a missão de ser um banco voltado para o financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável e operar em âmbito global. A notícia de sua criação foi recebida – juntamente com a iniciativa chinesa de criar o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB, sigla em inglês) – como necessária e oportuna,[5] tanto por refletir mudanças no poder econômico mundial, como por seu papel potencial em direcionar recursos aplicados na esfera financeira para o crédito de longo prazo em infraestrutura, cuja carência nos países em desenvolvimento alcança cifra considerável (ver tabela).[6]
Necessidade de investimento em infraestrutura (anual)
Investimento Global | US$ 5 a 7 trilhões |
Invest. Países em Desenv. | US$ 1 a 1,5 trilhão |
Invest. Ásia | US$ 620 bilhões |
Invest. América Latina e Caribe | US$ 300 bilhões |
Fonte: Unctad (2016)
Observe-se que o estoque de ativos financeiros mundiais somou em 2015 um total de US$ 325 trilhões,[7] e a poupança global anual (como soma das poupanças domésticas) contabilizou US$ 19,5 trilhões.[8] Logo, pode-se considerar que não se trata de um problema de escassez de recursos para investimentos de longo prazo, mas de que a maior parte desses ativos está concentrada em ativos nos países desenvolvidos que oferecem baixo retorno a seus detentores.[9]
Embora a necessidade de aumentar investimentos para projetos de desenvolvimento sustentável seja relativamente recente, o papel dos bancos de desenvolvimento no financiamento da infraestrutura não é novo. Por razões como divergências entre retornos privados e sociais, escala de capital, riscos (técnicos, financeiros e regulatórios) associados ao tempo envolvido na maturação dos projetos, o setor privado tem dificuldade em oferecer recursos em nível ótimo para investimento em infraestrutura. Desse modo, essa tarefa tem sido historicamente delegada aos governos e bancos de desenvolvimento (nacionais, regionais e internacionais), devido aos riscos que os bancos privados usualmente não querem tomar. Registre-se que muitos dos maiores bancos multilaterais de desenvolvimento hoje atuantes foram, em maior ou menor extensão, estabelecidos para cumprir essa função.[10]
Recentemente, foi com a crise financeira de 2008 que o papel dos bancos de desenvolvimento voltou ao debate, como agentes fundamentais para exercer tarefas como: i) promover a transformação econômica, reduzindo os gargalos à produção de bens e serviços; ii) apoiar estratégias mais autônomas de desenvolvimento, devido à fragilidade da reconversão econômica mundial e à incerteza sobre os países desenvolvidos como fonte de demanda e de capital para os países em desenvolvimento; e iii) exercer papel anticíclico (em ambiente de incerteza em que os agentes econômicos mostram comportamentos de preferência pela liquidez e maior aversão ao risco, dificultando a realização de investimentos).
Nessa direção, a revista The Economist dedicou um encarte especial em 2010 aos bancos e chamou a atenção para o crescimento dos países emergentes e o fortalecimento de suas instituições, como os bancos comerciais e de desenvolvimento. Ressaltou que, enquanto a crise no setor bancário ocidental ainda estava reverberando, na maioria dos mercados emergentes os bancos eram vistos como motores do desenvolvimento, em vez de rentistas, de modo que o fortalecimento da musculatura desses bancos seria cada vez mais necessário internamente para sustentar o rápido crescimento do crédito que sua população demandava (particularmente nos casos do Brasil, Índia e Rússia).
Nos dias atuais, ao se confirmar o cenário de baixo crescimento econômico
e de crise financeira no próximo biênio, é provável que os bancos de
desenvolvimento (nacionais, regionais ou internacionais), hoje desprestigiados
em muitos países, voltem ao centro das discussões para cumprir novamente o
papel que historicamente sempre lhes foi delegado.
[1] Reunião informal de líderes do Brics à margem da Cúpula do G20 – Comunicado conjunto de imprensa – Osaka, 2019. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/20556-reuniao-informal-de-lideres-do-brics-a-margem-da-cupula-do-g20-comunicado-conjunto-de-imprensa-osaka-28-de-junho-de-2019.
[2]Nouriel Roubini. The Growing Risk of a 2020 Recession and Crisis. Project Syndicate. June 14, 2019. Disponível em: https://www.project-syndicate.org/commentary/trade-war-recession-crisis-2020-by-nouriel-roubini-2019-06
[3] Trata-se das crises de 1994 (crise mexicana), 1997 (crise asiática), 1998 (crise do rublo, Rússia), 1999 (crise brasileira) e 2001 (crises turca e argentina).
[4] CARVALHO, F. C. O G20 e a reforma do sistema financeiro: possibilidades e limitações. In: CINTRA, M. A. M.; GOMES, K. R. (Org.). As transformações no sistema financeiro internacional. Brasília: Ipea, 2012. v. 1.
[5] Entrevista de Stiglitz dada em 15 de julho de 2014 ao programa Democracy Now! In: STIGLITZ, J. E. Nobel economist Joseph Stiglitz hails New Brics Bank Challenging U.S. dominated World Bank & IMF.Disponível em: <https://neccint.wordpress.com/2016/03/13/nobel-economist-joseph-stiglitz-hails-new-brics-bank-challenging-u-s-dominated-world-bank-imf-2/>.
[6] UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development. The role of development banks in promoting growth and sustainable development in the South. Geneva: Unctad, 2016.
[7] Valores de estoque referentes ao total de ativos detidos pelas corporações financeiras.
[8] Fonte: Global Shadow Banking Monitoring Report 2017 e o World Bank Data.
[9] Posição defendida em documentos oficias de órgãos das Nações Unidas, como Monterrey Consensus of the International Conference on Financing for Development, 2002; Paris agrément, 2015; e The 2030 Agenda for Sustainable Development, 2014.
[10] GRIFFITH-JONES, S.; XIAOYUN, L.; SPRATT, S. The Asian infrastructure investment bank: what can it learn from, and perhaps teach to, the multilateral development banks? Evidence Report, n. 179, Mar. 2016.