Estatais

Estatais

Primeiramente, antes de falar das estatais, esse assunto que provoca sempre reações, queremos aqui parabenizar o Portal Bonifácio, na pessoa de seu fundador e líder entusiasta Aldo Rebelo, por se engajar ativamente, de corpo e alma, no projeto de dar foco e centralidade para a questão nacional, na tentativa de reposicionar nosso País numa trajetória de desenvolvimento socioeconômico.

Alessandro Octaviani e eu escrevemos a obra Estatais na percepção comum de que muitas de nossas pujantes empresas estatais, que se encontram atualmente em rota de privatização e entrega, possuem uma história que influenciou diretamente na transformação das estruturas sociais e econômicas de nosso País. As estatais compõem um extraordinário exercício de imaginação institucional, sendo, em muito, responsáveis por alterar para melhor a realidade do Brasil.

Quando o Brasil pôde interromper sua condição (“colonial” e “neocolonial”, não interrompida, portanto, na prática, pela Independência e também infelizmente não integralmente pela Proclamação da República, dado que a República Velha perpetuou a condição de submissão externa nas trocas internacionais) de mero fornecedor de commodities ou produtos primários para abastecer as necessidades do mercado estrangeiro, houve estadistas capazes de pensar e/ou mobilizar um sonho de construção de um projeto de autonomia para o nosso País, isto é, de desenvolvimento voltado a suprir as necessidades de seu povo, ocasião em que a criação de estatais e a profissionalização da Administração Pública estiveram presentes.

Não havia estruturas de mercado aptas a gerar essa transformação de um país agroexportador para um país industrializado. A crise do setor cafeeiro gestou as condições a superação desse estado de coisas e as estatais inicialmente se ocuparam em fornecer condições para o desenvolvimento da indústria de base, sendo depois direcionadas aos mais estratégicos setores, o que colaborou para darmos finalmente alguns passos rumo a uma soberania econômica do País.

Conforme exposto na obra, no sistema mundial, um país que não detém a capacidade para produzir um estágio mais avançado da técnica torna-se dependente de países que a detém, o que implica em subordinação: não apenas econômica, mas também política e cultural. Conforme levantamos, as empresas estatais são utilizadas no mundo todo como estratégias de internalização de centros decisórios econômicos, tentando gerar um reequilíbrio da realidade assimétrica de polos geoeconômicos da economia capitalista.

Empresas como: a Petrobrás (no setor de petróleo), a Eletrobrás (de energia elétrica), a CSN (siderurgia), o BNDE (que financiou nossa industrialização) ou o IRB (resseguro), engendraram um ecossistema cuja missão foi viabilizar o processo de produção econômica, superando bloqueios como a baixa capacidade econômica e técnica então existentes.

Na obra Estatais, fazemos uma incursão sobre a história e a missão das mais importantes estatais nacionais, a exemplo do BNDES. Este é um banco público relevante para que haja o desenvolvimento e também para que o País tenha instrumentos de autonomia para enfrentar os ciclos econômicos recessivos e ultrapassar as circunstâncias mais imediatistas do mercado, mobilizando um aparato de concessão de crédito capaz de compensar as desacelerações econômicas. Trata-se de um banco que, não obstante ter tido sua missão de planejamento ao longo de sua história descontinuada, ainda exerce relevante papel de fomento, estimulando a inovação e o reequilíbrio regional, bem como o desenvolvimento socioambiental.

Outra estatal que acompanha a história do Brasil e, mais ainda, do povo brasileiro: é empresa pública Caixa Econômica Federal. Quem pesquisa a história da Caixa e gosta do Brasil e dos brasileiros (pois há aqueles que gostam do Brasil para os estrangeiros, não exatamente para os brasileiros…), não tem como não se emocionar…

É uma instituição presente no Brasil desde a Monarquia, tendo sido originariamente voltada a conceder empréstimo à população menos abastada e estimular o hábito de poupar. Dessa iniciativa transformou-se num dos maiores bancos públicos da América Latina.

Trata-se de um banco construído pela poupança de homens e mulheres de baixa renda, submetidos a trabalhos braçais, pequenos comerciantes que buscavam fugir da agiotagem, e, ainda, negros que poupavam para adquirir as sonhadas “cartas de alforria”. Também depois de alforriados, os negros conseguiram, pela Caixa, garantir alguma liberdade para ter uma economia própria e, portanto, não ter de se (re)submeter aos mandos e desmandos de seus ex-senhores. Quantas pessoas, ao longo do século XX mesmo, não teriam acesso a uma instituição bancária, que demandava muitos requisitos, e viram na Caixa a única oportunidade de poupar e garantir um futuro que certamente lhes foi menos penoso…

A partir da década de 30, a Caixa começa a se voltar a conceder crédito imobiliário, depois, em 1931, assumiu com exclusividade o empréstimo sob penhor, o que gerou a extinção das chamadas “casas de prego” (daí que vem a expressão “por no prego”, pois nas casas de penhor as peças eram penduradas no prego, caso o proprietário não conseguisse reaver o bem empenhado, para exposição aos interessados em adquiri-los).

Em 1962, a Caixa assume a gestão de Loterias Federais, angariando fundos para implementação de políticas sociais, destinando verbas para o esporte, a seguridade social, o financiamento estudantil, a cultura, o fundo penitenciário, a segurança pública e o financiamento da saúde. A partir de 1986, a Caixa passa a ser o maior agente nacional financiador da casa própria, tendo sucedido ao BNH (Banco Nacional da Habitação). Assim, é inenarrável o quanto esta instituição promoveu de bem-estar ao povo brasileiro, gerando melhores condições de vida a todos.

Além de ser a instituição oficial que disponibiliza crédito imobiliário, ela administrou fundos, como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e programas sociais, como o FIES e os de acesso a medicamentos para a população. Ela também apoia o saneamento básico, a gestão ambiental e o incremento da qualidade de vida da população.

Ressalte-se que, em países, como Portugal, em que há tipificação de corrupção na área privada, sendo que, por enquanto, no Brasil fala-se apenas em corrupção quando há o envolvimento público, há estudos que apontam que corrupção privada é maior do que a pública. Não obstante, o discurso de combate à corrupção, que é válido e importante (afinal, um país em desenvolvimento também deve dar passos nesse sentido), é frequentemente utilizado como justificativa para se desprezar como um todo tudo o que é público. Assim, também a obra Estatal problematiza essa questão, pois não é porque já houve desvios em estatais, seja nos governos militares, seja nos governos democráticos, que isso significa que devemos “entregar as galinhas a preço de banana” para outros interesses, para que não tenhamos mais desvios de ovos por gestores do galinheiro…

Procuramos enfatizar a função estratégica das estatais ao desenvolvimento nacional, sendo que, diante de desvios, o mais adequado é a correção das distorções, pois se há uma sujeira a ser lavada, com as novas regras de governança presentes na Lei nº 13.303/2016, é para jogar a água suja da banheira sem jogar o bebê junto, isto é, aquilo que é precioso deve ser preservado (don´t throw the baby out with the water).

No entanto, há muitos mitos que são disseminados acerca das estatais. O primeiro deles é que o conjunto de estatais presente dá prejuízo. Já começa assim: se dá prejuízo, por que há tanta mobilização de interesses em comprar? Trata-se de uma inverdade que dê prejuízo, pois os dados de 2018 apontam um faturamento recorde dos principais conjuntos de estatais: foi o lucro mais alto registrado! Só dos cinco maiores grupos conglomerados de estatais, houve um lucro de 70 bilhões, sendo que o governo anunciava vender TODAS as estatais por aproximadamente um ano de faturamento delas, como bem enfatizou o Alessandro Octaviani em entrevista ao saudoso Paulo Henrique Amorim…  

Agora, não se trata só de lucrar com a venda, pois esse dinheiro logo será dissipado (as contas do último grande movimento de privatização no Brasil, que vendeu ‘mal’ as estatais, pois pelo custo de metade do faturamento de um ano delas, não provocou, na prática, uma diminuição da dívida, conforme era anunciado, uma vez que a dívida líquida do setor público no Brasil em 1991 era de 144 bilhões de dólares e, em 2002, depois das vendas, a dívida estava em 300 bilhões de dólares), mas de se desfazer de capacidade técnica de Estado em investir no desenvolvimento, na inovação etc. Então, veja o caso da Embrapa: não adianta falar que a Embrapa não dá lucro, pois a Embrapa não foi feita para vender “laranja” ou “gado”… A Embrapa é uma empresa que investe em inovação tecnológica, que tem por atribuição gerar conhecimento e tecnologia para o desenvolvimento da agropecuária nacional.

A Embrapa é uma grande e articulada rede que abastece a agricultura brasileira com tecnologia. Em articulação com universidades e institutos de pesquisa, a Embrapa enviou pesquisadores para o exterior, trouxe outros pesquisadores, e buscou estudar as potencialidades comparativas de uma “agricultura tropical” em relação aos demais países do mundo. Se hoje o Brasil é destaque em agricultura e pecuária no mundo, estando lado a lado com Estados Unidos e China, por exemplo, na produção de soja, isto se deve muito aos melhoramentos e à pesquisa estimulada pela empresa.

A Embrapa preocupou-se não só com o desenvolvimento da pesquisa, em laboratórios, mas também com desenvolver políticas de extensão rural, para que os agricultores tivessem acesso às novas formas de produção e deixassem de lado práticas arcaicas e, em grande parte, prejudiciais ao meio ambiente. Ela foi responsável pelo incremento da agricultura nos cerrados, na região Nordeste e no semiárido, incorporando na pauta de suas pesquisas questões ambientais e sociais, como o estímulo à agricultura familiar e meios de se combater a evasão do campo.

É falta completa de visão querer analisar o que a Embrapa produziu a partir do seu faturamento, como se fosse uma empresa voltada a dar lucro (como se fosse uma empresa privada), sem analisar o que a Embrapa fez o país produzir melhor, com tecnologia, e, ainda, gerando divisas em nossas exportações. Mas ela é estatal, cujo objetivo principal não é o lucrativo, quem lucra com suas atividades é a sociedade, é o Brasil, são os produtores agrícolas que auferem os benefícios das pesquisas que são com eles compartilhadas… Não é o capital social de cerca de 2 bilhões da Embrapa, subscrito pela União, que é capaz de expressar a importância desta empresa, mas é o fato de que nos quase cinquenta anos de sua existência o País deu um salto qualitativo em sua produção agropecuária, desenvolvendo pesquisas próprias para a produção de uma “agricultura tropical”, pois em muitos pontos o Brasil possui características climáticas próprias que apontam para vantagens na produção de determinados tipos de produtos.

Ainda, há o capital humano das estatais: no caso da Embrapa, ela alcançou tamanho sucesso devido à antiga política de recursos humanos, pois, nas suas primeiras décadas de existência, os planos de carreira eram muito atraentes, com salários adequados, planos de saúde bons, aposentadorias co-financiadas e grandes incentivos à progressão, com inúmeras oportunidades de capacitação contínua. Milhares de profissionais foram inseridos em cursos de mestrado e de doutorado no Brasil e no mundo, com estímulos diretos e indiretos (pelas parcerias) da Embrapa. Se uma empresa não oferece condições dignas de construir uma vida produtiva, como que ela irá atrair uma mão de obra qualificada? As pessoas desejam o sucateamento estatal e simultaneamente que o Estado renda mais? Essa equação insustentável simplesmente não bate…

Em síntese, a obra Estatais é voltada a desmistificar alguns equívocos que são dolosamente disseminados, dentro do adágio de que “quem desdenha quer comprar”… Assim, em primeiro lugar, procuramos mostrar que, no mundo, as estatais não são vistas como “coisas do passado”. Depois, que elas não são próprias de países subdesenvolvidos, muito pelo contrário, na Alemanha, por exemplo, há 15.000 estatais, sendo que muitos países de economia central estão reestatizando algumas atividades em que as concessões acabaram encarecendo os serviços prestados e que não têm apresentando resultados tão bons, do ponto de vista qualitativo também, sendo, ainda, dito, mentirosamente, que elas dão prejuízo… O que é um absurdo, conforme dados oficiais divulgados em 2018.

E talvez a pior das mentiras: que vender as estatais resolverá o problema fiscal do País… Seria similar a dizer: – “eu sou taxista” e “quero vender meu veículo” para resolver meu problema fiscal, pois estou devendo… A  venda de muitas de nossas estatais irá, infelizmente, interromper a capacidade de explorar algumas poucas vantagens construídas nas trocas econômicas internacionais. Irá retirar a capacidade estatal de investir em tecnologia, abrir mão de nossa capacidade de promoção de crédito, de desenvolvimento, e, ainda, o fim de inúmeras formas de se financiar políticas econômicas e sociais…

Assim, nossa obra Estatais vai na contramão do que se fala, na contracorrente do que se agita para o País, mas está acompanhando a vanguarda de inúmeros países centrais, talvez não tanto no que “eles dizem”, mas na observação empírica do que “eles fazem”… Ela procurou enfrentar com dados e pesquisa o discurso envisado (e interessado…) da “desimportância” ou da “ineficiência” das estatais, discurso este que, ao lado do sucateamento, procura liquidá-las aos interessados a preços baixos…

Então, convidamos os leitores do Portal Bonifácio, local que agrega pessoas que se importam com a questão do desenvolvimento nacional, a conhecer um pouco mais do papel das estatais no cenário dos países Capitalistas Contemporâneos, e refletir em conjunto sobre essa relevante temática!

Irene Patricia Nohara
Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP, Doutora em Direito do Estado. Pesquisadora do Programa em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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