Brasil: uma diplomacia em ruína

A nau dos insensatos, pintura de Hieronymus Bosch (Países baixos, 1450-1516)

A reputação da diplomacia brasileira está em frangalhos aos olhos do mundo após colher uma sucessão de vexames e fracassos e tornar o Brasil menor em episódios que costumavam confirmar a eficiência, o profissionalismo e a competência do serviço do Itamaraty.

O atual presidente da República acusou em sua campanha os governos anteriores de adotar um viés ideológico em política externa. E o que fez ao tomar posse? Aloja no Ministério das Relações Exteriores o grupo ideológico mais sectário dentre seus apoiadores. O resultado não poderia ser pior: o edifício que sustentava a credibilidade de nossa diplomacia veio abaixo e pela primeira vez na história o Itamaraty deixou de ser parte da solução para se tornar parte do problema nas dificuldades enfrentadas pela política externa do Brasil.

O episódio mais recente que exigiu o afastamento do Itamaraty foi a negociação com o governo chinês para a aquisição de vacinas e insumos necessários ao enfrentamento da pandemia da Covid-19 entre nós. As agressões do ministro Ernesto Araújo à China inviabilizaram seu papel nas negociações.

O presidente Getúlio Vargas e seu chanceler, Oswaldo Aranha, lideraram a política externa do Brasil nos anos conflagrados pela Segunda Guerra Mundial.

Para proteger a fidelidade ideológica do presidente brasileiro e de seu chanceler ao ex-presidente Donald Trump, criou-se o mal-estar com os Estados Unidos e o atual presidente Joe Biden e hoje a relação entre os dois países é cercada por uma atmosfera de desconfiança e animosidade.

A situação mais inesperada veio com a posição brasileira de se aliar aos Estados Unidos contra a Índia, a África do Sul e um grande número de países proponentes da quebra de patentes para vacinas. O fato mereceu o repúdio de instituições e personalidades indianas quando o Brasil se propôs a comprar vacinas daquele país contra a Covid-19.

A América do Sul, entorno estratégico de nossa diplomacia e política de defesa, foi transformada em arena de embate ideológico e abandonada a política externa pragmática, baseada em relações de Estado voltadas para o interesse nacional seguida pelo Brasil desde o final da Guerra do Paraguai. A orientação “ideológica” do atual governo teve como efeito a paralisação do esforço de integração em infraestrutura, energia e comunicações com os nossos vizinhos.

A atuação desorientada colocou o Brasil, detentor da mais rigorosa legislação ambiental do planeta, no banco dos réus na condição de vilão do meio ambiente. E o País que mais protegeu florestas tropicais no mundo é acusado injustamente nas redes sociais pelos mais nefandos crimes contra a natureza.

O presidente Ernesto Geisel e seu ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, conduziram a diplomacia vitoriosa do Brasil no reconhecimento da independência dos países africanos de língua portuguesa.

A diplomacia nacional conheceu momentos de glória no reconhecimento da Independência, na solução dos explosivos conflitos do Prata, na negociação dos litígios de fronteira, na consolidação da República, nos acordos para nossa participação na Segunda Guerra Mundial, no reconhecimento da independência dos países africanos de língua portuguesa. A diplomacia de José Bonifácio, do Visconde do Uruguai, do Visconde do Rio Branco, do Marechal Floriano Peixoto, do Barão do Rio Branco, de Ruy Barbosa, Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, Góes Monteiro, Araújo Castro, San Tiago Dantas, Azeredo da Silveira, Ernesto Geisel e Saraiva Guerreiro tem hoje a reputação profundamente manchada pelos governantes do dia.

Os interesses legítimos do Brasil estão desprotegidos com a atual política externa. É certo que ela passará, mas deixará um rastro de descrédito e desconfiança cujo preço pagamos hoje e pagaremos no futuro.

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Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.

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6 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo. Naquela clareza que entorpece pela frieza da verdade. Mas o estrago vai além, pois jovens diplomatas de hoje se contagiam com a falácia de que possa existir a visão ideológica de um partidarismo nas relações exteriores. Nesse campo não existem amigos eternos ou inimigos irreconciliáveis: todos são companheiros de viagem que se sentam mais próximos ou afastados dependendo de cada caso.

  2. Parabéns palestrino camarada Aldo Rebelo,
    Por sua qualificação, competência e histórica trajetória de lutas não se pode esperar melhor síntese que esta. Está excelente!

    Infelizmente o Estado Brasileiro e Nação está à mercê do obscurantismo provocado por um grupo de indivíduos que unidos possuem força tamanha capaz de piorar ainda mais o que já conseguiram estragar.

  3. Parabéns pelo artigo: Uma espada Abrindo ao meio, um profundo Buraco no Coração do Desgoverno Brasileiro.O instituto Rio Branco está sendo cruelmente Violentado: Nossa Diplomacia se aliando ao cangaço, Nossos novos diplomatas sendo condenados aos quintais da estupidez, Limpando com enxadas , jogando no mato canetas e computadores.pensando bem, jogando no lixo inteligência e Racionalidade.

  4. Mais um negacionismo. Uma correta tradição que tantos resultados nos trouxe por todos os governos anteriores é jogada na lama em dois anos de (des) governo Bolsonaro ideologizando as relações internacionais numa obsoleta visão que mais se aproxima do nazifascismo. Está aí o resultado nefasto da vacina antivírus Covid-19 cujos insumos procedem da China e da Índia e o clã irresponsavelmente confronta. O pior de tudo é ver o Ministro das Relações Exteriores rasgando esta correta tradição de multilateralidade a favor da irracionalidade governamental e fazendo lavagem cerebral nos novos diplpmatas formados por nosso glorioso Instituto Rio Branco – uma vergonha internacional…

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