A desorientação refletida nas ruas

Brasil, Estados Unidos, Israel: um governo perdido entre lealdades nacionais.

O Brasil vive uma encruzilhada histórica. Com uma economia cambaleante, a exposição de profundas fraturas em seu tecido social e a crescente instabilidade política, o país já vivia momentos difíceis nos últimos tempos.

Agora, tornamo-nos nada menos que o epicentro mundial da pandemia, e, paralelamente, as movimentações presidenciais seguem fomentando e agudizando crises político-institucionais, prenunciando a irrupção de turbulências que de forma alguma poderiam caminhar junto da difícil e tortuosa batalha contra a disseminação do coronavírus.

Nesse contexto, manifestações sociais a favor e contra o presidente começaram a ser esboçadas nas ruas das principais capitais do País, exibindo importantes sintomas da desorientação estratégica que toma hoje não apenas setores preponderantes do governo, mas da própria oposição.

De um lado, pseudopatriotas desfilam com bandeiras brasileiras ao lado das de Israel e dos Estados Unidos da América. Chegam ao ponto de reivindicar o fim de uma suposta intervenção política da China nos assuntos internos do país, ao tempo em que, ironicamente, seus mentores se afirmam defensores da agricultura e dos setores produtivos nacionais. Parecem ignorar que a estabilidade da agenda bilateral de Brasil e China independeu, nas últimas décadas, do perfil ideológico dos governos brasileiros, e que a China representa nada menos do que o principal destino das exportações do País (no ano passado foi destino de 27,8% de nossas exportações) e grandiosa parte de nosso superávit comercial (apenas no âmbito bilateral o Brasil somou, entre janeiro e outubro do ano passado, US$ 34,9 bilhões de superávit). 

A oposição, desorientada, voltada para a agenda ditada pelo governo nas esferas do comportamento e dos costumes.

Em meio à guerra comercial que protagoniza contra a China, não é trivial que Donald Trump tenha tangenciado, dentre os pontos de possível acordo, a ampliação das compras de produtos agrícolas estadunidenses por parte dos chineses, em detrimento de terceiros mercados, como o do Brasil. Consequentemente, também não surpreende que os mesmos “patriotas” ataquem as prósperas relações do Brasil com seu principal parceiro comercial: servem aos interesses estrangeiros, e não às causas nacionais.

Do outro lado, as manifestações contra o governo de Jair Bolsonaro são conduzidas por uma frente de liberais e esquerdistas, emulando a estética e a agenda dos movimentos cosmopolitas derrubadores de estátuas, em voga no atual contexto social das potências norte-atlânticas.

Os identitários de “direita” europeus cultivam o nacionalismo excludente e contra os imigrantes.

A centralidade de suas agendas orbita, assim como nos movimentos bolsonaristas, as questões comportamentais. Nessa esteira, potencializam concepções niilistas e fragmentárias que remontam às influências do longínquo maio de 1968 e se entrelaçam com as doutrinas racialistas estadunidenses, há décadas semeadas em nossas universidades pelas mãos de fundações estrangeiras sempre prontas a municiar e financiar ideólogos carreiristas à procura de uma agenda “militante”.

No mesmo sentido, buscam cimentar um muro que afiance a divisão da sociedade brasileira entre bons e maus, avançados e atrasados, conservadores e liberais, racistas e antirrascistas, machistas e feministas, direitistas e esquerdistas, fascistas e progressistas. Tudo sob a égide da agenda do entretenimento, igualmente importada, e presente diariamente nas telas das séries do Netflix, nos ensinamentos políticos de youtubers revolucionários, nas lições moralistas das influencers e atrizes globais, quando não nas disputas identitárias do Big Brother Brasil.

Estátua de Colombo vandalizada nos Estados Unidos. O navegador europeu no alvo dos identitários de “esquerda”.

Uma agenda de recorte cosmopolita, dirigida desde fora, e que, assim como aquela que tomou as ruas em 2013, pode facilmente se voltar para ataques aos setores produtivos nacionais – rurais ou urbanos -, para a defesa da internacionalização ou autonomia relativa de territórios que supostamente não sabemos gerir, e, invariavelmente, para atentados alienantes à memória e história do Brasil.

Num momento extremamente delicado, no qual passamos a marca das 50.000 vítimas brasileiras da pandemia, as ruas refletem, ainda que em pequena escala, a desorientação política imperante no País. Em lugar da necessária defesa da soberania e do desenvolvimento da Nação, são as questões de costumes e identidades que tomam protagonismo no debate ideológico, consolidando uma cortina de fumaça que oblitera os interesses profundos por detrás de suas aparências, bem como os grandes desafios que precisamos superar. 

Restará aos patriotas manter a perseverança e a sobriedade, e permitir que estas confluam, a partir do diálogo entre forças heterogêneas, para uma urgente unidade de ação. Só assim viabilizaremos que, dos escombros da desorientação, construa-se um caminho que permita ao Brasil retomar o papel protagonista, altivo e soberano que tantas vezes já cumpriu, e que o futuro lhe reservará outra vez.

Tiago Soares Nogara
Tiago Soares Nogara: Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), da Universidade de Brasília (UnB), e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (GEPSI)

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