Resenha do livro de Synesio Sampaio Goes Filho: Alexandre de Gusmão (1695-1753) – o estadista que desenhou o mapa do Brasil, Rio de Janeiro- São Paulo, Editora Record, 2021, 2ª edição.
Para explicar o “mito” em que Alexandre de Gusmão se transformou, o embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, autor de “Alexandre de Gusmão (1695-1753) – o estadista que desenhou o mapa do Brasil”, brinda os leitores com encantadores casos, comparações e histórias de diferentes tipos de mitos. Informa, porém, que se limita inicialmente, na obra, “a uma de suas acepções: construção mental de algo idealizado, sem comprovação prática (Dicionário Houaiss)”.[1]
Só que faz exatamente o contrário ao elaborar a biografia do nosso herói. Parte de documentos existentes, escritos pelo próprio ou sobre o secretário do rei D. João V, para descartar os elementos vagos e duvidosos e destacar o que lhe parece mais razoável ou verossímil, numa construção da realidade factual possível da vida e obra de Alexandre de Gusmão.
Veja-se, por exemplo, o capítulo V do livro, em que o autor analisa as diferentes opiniões sobre as funções de Gusmão na corte de D. João V. O embaixador Synesio consegue provar que o biografado se incumbia, de fato, das tarefas próprias de um primeiro-ministro, em que pese nunca ter sido promovido do cargo de “secretário d´el-rei”. Agia, aliás, como se fosse um primeiro-ministro, na medida em que não media palavras para repreender altos mandatários do Reino em seus escritos do período, a maioria em nome do monarca.
Essa língua mordaz e ferina, tanto quanto a influência que exercia sobre o pensamento e a ação de D. João V, poderiam ter motivado grande parte das antipatias ou inveja que Gusmão angariou no período. Poderiam ter sido a causa de sua não promoção. Mas Synesio levanta outras hipóteses, como, por exemplo, a desconfiança quanto a eventuais – ou quase certas – origens judaicas do biografado, avivadas que o foram pelo escândalo da conversão ao judaísmo de seu irmão, Bartolomeu de Gusmão, conhecido como “o padre voador”.
Seja como for, estes e outros eventos e/ou atributos citados a respeito do personagem principal da obra servem para explicar – mas não justificam– os percalços que o privaram de um final de vida mais condizente com o trabalho efetuado, nem a amargura que se sente na representação que elevou a D. João V e transcrita como apêndice ao texto. Nela, Gusmão relata seus inúmeros feitos e merecimentos e lamenta que se encontravam sem contrapartida até então. E sem compensação pecuniária permaneceram até após a sua morte, quando o espólio legado não teria coberto nem metade das dívidas que deixou.
O embaixador Synesio se vale, sobretudo, da história do Brasil e de Portugal à época para tornar ainda mais vívida e concreta a imagem que passa, ao leitor, dos profundos conhecimentos de Alexandre de Gusmão. Foi com base em sua vastidão, aliás, que nosso personagem principal pôde negociar o Tratado de Madri, “a maior de todas as vitórias da diplomacia luso-brasileira na consolidação da expansão territorial do Brasil”. [2]
O autor intercala as descrições do Brasil e de Portugal com as fases conhecidas da vida de Alexandre de Gusmão para chegar às negociações que culminaram na assinatura do Tratado de 1750 e à importância deste instrumento para as tratativas posteriores, que implicaram a fixação definitiva das fronteiras do Brasil já no início do século passado. Analisa, também, os monarcas e demais personagens envolvidos nas negociações – “as camadas mais elevadas da aristocracia” – para constatar que se percebe “a dificuldade que teria para se impor uma pessoa como Alexandre de Gusmão, de modesto estrato colonial, odiado por uns pela agudeza em advertir, malfalado por outros pelo suposto criptojudaísmo e invejado por todos os medíocres. Mas, ao estudar a concepção, negociação e redação do Tratado de Madri, não ficam dúvidas sobre o papel diversificado, imaginoso e decisivo do secretário do rei”.[3]
Foram os seguintes os princípios concebidos por Gusmão e defendidos, com êxito, pela parte portuguesa em Madri:
- Rios e montanhas como divisas, ou o conceito de fronteiras naturais, que só seria elaborado bem mais tarde, durante discussões de parlamentares à época da Revolução Francesa;
- A ideia de posse entendida como base para a soberania, ou o princípio do uti possidetis, segundo o qual “cada parte há de ficar com o que atualmente possui”, dando respaldo, portanto, à soberania portuguesa sobre o território a oeste do meridiano de Tordesilhas efetivamente ocupado por missões religiosas portuguesas e, sobretudo, por bandeirantes luso-brasileiros em busca de escravos e minérios.
Com vistas às negociações para o acordo, Gusmão elaborou ainda o Mapa das Cortes, objeto de todo um capítulo do livro. Embora o Brasil tenha visto seu território ampliado em dois terços pelo Tratado de Madri, Synesio admite que, no Mapa das Cortes, o território brasileiro teria apenas duplicado. Contudo, para o embaixador: “cinturado no centro, com erros de longitude, com o Rio Amazonas comprimido, tudo é verdade; mas ninguém ao olhar para ele deixará de reconhecer nosso território. É o primeiro mapa em que o Brasil aparece do jeito que tem agora, e quem o organizou foi Alexandre de Gusmão.” [4]
O autor do livro rejeita que o biografado tenha ludibriado os negociadores espanhóis, hipótese levantada por autores hispano-americanos que lhe parece tão inaceitável quanto taxar o negociador espanhol de incompetente ou de traidora, a rainha da Espanha, D. Bárbara de Bragança, filha de D. João V. Synesio reconhece apenas que Dona Bárbara queria um acordo de fronteiras na América destinado a criar um bom ambiente entre as Cortes. Ressalta, porém, que o que realmente almejavam os espanhóis era a Colônia de Sacramento e seu controvertido território, o que foi alcançado. Para os espanhóis, entende o embaixador, “o resto da fronteira, por enorme que fosse, era resto.” [5]
Alexandre de Gusmão, por sua vez, tinha boa ideia da relevância do território ocupado pelos luso-brasileiros, como se extrai de seus numerosos despachos ao negociador português em Madri, Tomás Teles da Silva, visconde de Vila Nova de Cerveira. Sem deixar de lado o território conflituoso do Prata e, nela, a região dos Sete Povos da Missão, de maior interesse para o Brasil, Synesio cita, por exemplo, a tese de Gusmão de que, se os espanhóis ficassem com o domínio absoluto do Prata, era mais que justo que a bacia amazônica se integrasse ao Brasil. Para o nosso personagem, era preciso haver um equilíbrio entre as bacias dos dois grandes rios do continente. E religiosos lusos, de todo modo, especialmente jesuítas e carmelitas, já haviam fundado missões às margens do Amazonas e do Solimões.
Gusmão entendia, também, que as minas de Goiás, de Cuiabá e de Mato Grosso teriam que ficar sob a soberania lusa. “Haviam sido descobertas e ocupadas pacificamente por luso-brasileiros, que as frequentavam (…). A ligação entre os rios Paraguai e Guaporé era o fecho da linha de limites fluviais. Fundamental, diz Alexandre, `para arredondar e segurar o país´” [6]
Embora o Tratado de Madri e os atos dele decorrentes tenham sido “cancelados, cassados e anulados como se nunca houvessem existido, nem houvessem sido executados” [7] apenas onze anos depois pelo Tratado de El Pardo, o cenário no sul do país – quando da ocupação da ilha de Santa Catarina e de parte do Rio Grande do Sul pelo governador de Buenos Aires – demandou novos ajustes e a necessidade de novo acordo de limites. A Espanha, em situação de poder, impôs, em 1977, um Tratado Preliminar de Limites, conhecido como de Santo Ildefonso, pelo qual Portugal teve que ceder os Sete Povos da Missão (e praticamente metade do atual estado do Rio Grande do Sul), mas logrou conservar para o Brasil as fronteiras a oeste e ao norte tal como negociadas em Madri. Já a paz de Badajoz de 1801 assegurou ao estado meridional praticamente as mesmas fronteiras que o Tratado de Madri. Segundo o embaixador Synesio, “a obra de Gusmão, que parecia ter tido uma morte precoce, na verdade está tendo uma próspera vida”. [8]
Longa vida também porque o princípio do uti possidetis então adotado teve grande futuro na diplomacia territorial do Brasil, consistindo na base das negociações bilaterais com os vizinhos do Império e constituindo, na República, o eixo sobre o qual o Barão do Rio Branco construiu sua extensa obra de delimitação do Brasil. Synesio se espanta com a vitalidade do princípio que Alexandre de Gusmão introduziu no direito público ibero-americano e afirma que nosso herói tampouco poderia imaginar que o mapa então preparado, por já conter as ocupações e suas linhas limítrofes demarcadas por rios e montanhas, “se tornaria um ícone da cartografia brasileira”. [9]
A importância de Alexandre de Gusmão para a diplomacia brasileira foi reconhecida, no início do século passado, pelo próprio Barão do Rio Branco e pelo historiador Oliveira Lima, que o considerou o “maior brasileiro do século XVIII” [10]. Mas foi o historiador português Jaime Cortesão quem revelou, em nove volumes, em 1950, a genialidade por trás das negociações que resultaram no Tratado de Madri, cuja originalidade e relevância para a formação territorial do Brasil o embaixador Synesio logra tornar acessível ao leitor nesta sua pequena obra de 223 páginas. Mas não sem antes anunciar, ainda na Introdução, o caráter fabuloso do biografado:
“No Itamaraty de Brasília, há apenas três bustos a demarcar a Sala dos Tratados, a mais nobre do palácio. Um deles é o de Gusmão. Bela viagem para um pobre menino, de um pequeno porto, de uma secundária província da colônia. Maquiavel dizia, com razão, que sem virtù i fortuna não se chega lá. Ao estudar a vida de Alexandre, o que mais se vê, entretanto, é que as conquistas vieram do trabalho intenso e da superação dos maiores preconceitos. Não é, pois, sem razão que agora é um mito”. [11]
É possível encontrar, em qualquer pesquisa no Google, a definição de mito que se segue e que também serve para ilustrar o significado da figura de Alexandre de Gusmão para a política externa brasileira:
“Entende-se por `mitos´ as descrições religiosas antigas, que expressam os modelos, os arquétipos da ação humana através dos atos originários dos `deuses´ nos diversos campos. Nesse sentido, os mitos são narrações sagradas primitivas, dotadas de grande autoridade e normatividade para a vida humana”. [12]
Nesta acepção, Alexandre de Gusmão teria constituído o arquétipo, o modelo do servidor que o Itamaraty pretende seja o seu – ou qualquer diplomata gostaria de encarnar: trabalhador incansável, negociador arguto, escritor talentoso, “dotado de uma grande memória, de uma eloquência natural e sobretudo de uma clareza pouco comum em tudo que queria explicar” [13], como descrito na obra.
Se o presente livro já se presta para demonstrar o amor do embaixador Synesio Sampaio Goes Filho ao trabalho criterioso, bem como a almejada “linguagem límpida, objetiva (e) expressiva na sóbria elegância” [14], conforme o protótipo Alexandre de Gusmão, é no autor do Prefácio do livro que vamos encontrar uma de suas mais famosas réplicas. Trata-se do autor de obras históricas de vulto, entre as quais o livro “A Diplomacia na Construção do Brasil (1750-2016)” antigo professor de História da Diplomacia do curso de preparação à carreira diplomática, embaixador Rubens Ricupero. Respeitado pelos colegas, querido pelos ex-alunos e admirado por quem o conhece, nosso ex-embaixador em Washington e em Roma, é um dos “grandes” ainda viventes da casa do Rio Branco.
Neste prefácio, o embaixador Ricupero ressalta a “originalidade múltipla” do Tratado de Madri. Realizado em tempo de paz, em que as partes tinham por objetivo comum evitar conflitos futuros, o instrumento distinguia-se dos demais acordos de limites da época, posto que quase todos resultavam de guerras e da correlação de forças em campos de batalha. Outra originalidade apontada por Ricupero consistiu no fato de o Tratado ter virtualmente completado a formação territorial brasileira ainda no período colonial, contrariamente ao expansionismo verificado em outros países das Américas que se tornaram independentes à época. Em suas opções, Alexandre de Gusmão preconizava, portanto, a opção pelo “soft power, que caracterizaria a política externa brasileira.
Vinculada ao Itamaraty, existe a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), que se destina a preservar a memória diplomática do Brasil e edita livros sobre história diplomática, política externa e temas de relações internacionais de relevo para o país. O livro do embaixador Synesio, aprovado inicialmente pelo conselho editorial da FUNAG, foi recusado mais tarde, quando apresentado com o prefácio do embaixador Ricupero, um dos maiores críticos da política externa liderada pelo então Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Ao tratar da relevância do livro sobre Alexandre de Gusmão e da dimensão de atualidade do Tratado de Madri, na medida em que este inaugura as realizações da política externa brasileira e o “soft power” como método em negociações internacionais, o Professor Celso Lafer lamenta a não publicação, pela FUNAG, do livro do embaixador Synesio. Em resenha intitulada “As fronteiras e seu significado” e publicada pelo jornal O Estado de São Paulo em março de 2021, o ex-Ministro das Relações Exteriores do governo Fernando Henrique Cardoso afirma que é “esse capital simbólico – que permite a adequada orientação no mundo – que a diplomacia do governo Bolsonaro se dedica cotidianamente a dilapidar”.
Resta esperar que mandatos como os de Jair Messias Bolsonaro na Presidência de República ou de Ernesto Araújo nas Relações Exteriores constituam exceções – pontos fora da curva – não só no que respeita à política externa brasileira, mas em todos os campos em que a destruição, o aniquilamento, a devastação ou o negativismo foram as marcas de suas gestões. Que prevaleçam apenas os verdadeiros mitos – ou as “narrações dotadas de grande autoridade e normatividade para a vida humana”, como a do livro do embaixador Synesio.
[1] Sampaio Goes Filho, Synesio. Alexandre de Gusmão (1695-1753) – o estadista que desenhou o mapa do Brasil, Editora Record, 2021, 2ª edição, p. 177.
[2] Constatação do embaixador Rubens Ricupero no Prefácio do livro do embaixador Synesio, p. 9.
[3][3] Op. cit., p. 131.
[4] Op. cit., p. 146.
[5] Op. cit., p. 151.
[6] Op. cit., p.133, que remete a José Manuel Teixeira de Carvalho, Coleção de vários escritos inéditos, políticos e literários de Alexandre de Gusmão, p. 132.
[7] Conforme o Tratado de El Pardo, de 1761, citado por Sampaio Goes Filho, Synesio, op.cit., p. 159.
[8] Op. Cit, p. 163.
[9] Op. cit., p 145.
[10] OLIVEIRA LIMA, Manuel. O secretário d´el rei. Rio de Janeiro. Guarnier, 1904. Citado pelo Embaixador Synesio, p. 20.
[11] Sampaio Goes Filho, Synesio, op. cit. P. 20 e 21.
[12] Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, [s.d. p.]
[13] Trecho de apreciação feita pelo embaixador francês em Lisboa, Conde de Baschi, por ocasião da morte de Alexandre de Gusmão, citado no livro pelo Embaixador Synesio, p. 171, que o extraiu da obra de Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, v.II, p. 443.
[14] Embaixador Rubens Ricupero, no Prefácio do livro do embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, op. cit., p. 8.