Esperança e reconstrução: retomando as “Cartas da Economia Nacional contra o Livre Comércio”

Livro: Cartas da Economia Nacional contra o Livre Comércio Resenha publicada na revista Resenha Estratégica - Vol. 17 | nº 19 | 19 de maio de 2020.

Livro: Cartas da Economia Nacional contra o Livre Comércio
Resenha publicada na revista Resenha Estratégica – Vol. 17 | nº 19 | 19 de maio de 2020

Neste ano de 2020, a simultaneidade de um colapso financeiro mundial com a pandemia da covid-19 gerou um quadro internacional de instabilidade, absolutamente imprevisto nas proporções que tomou.

O arruinamento econômico, sanitário e psicossocial dos países não é um simples acidente de percurso, mas a prova cabal da inviabilidade do liberalismo enquanto diretriz organizativa das nações.

O liberalismo demonstrou, mais uma vez, a sua incapacidade para promover a ordem e o progresso: o súbito derretimento das Bolsas de Valores descapitalizou grandes empresas industriais e arrasou os empregos e o patrimônio de milhões de pessoas em todo o mundo, ao mesmo tempo em que a saturação dos sistemas públicos de saúde, mesmo nos países mais desenvolvidos do Atlântico Norte, mostrou as consequências funestas das políticas de austeridade sobre a seguridade social nas últimas décadas. O coronavírus, longe de ser o responsável pelo caos, demonstrou a fragilidade e a desorganização de vários países em decorrência das políticas liberais adotadas nas últimas décadas.

O economista Henry Carey (1793-1869) foi assessor econômico do presidente Lincoln e defendeu o direito dos Estados Unidos à industrialização e soberania econômica contra a orientação do livre comércio adotado pela Inglaterra.

A paralisação de países inteiros, com o intuito de estancar a propagação do vírus, completou o cenário de colapso total das economias nacionais, em marcha desde o fim do Sistema de Bretton Woods em 1971, quando os interesses do eixo Wall Street-City de Londres, com o respaldo do FMI e do Banco Mundial, impuseram a desregulamentação financeira e comercial, as privatizações e o endividamento público como cartilha única em todo o hemisfério ocidental, em benefício apenas de uma plutocracia argentária e apátrida, alheia às necessidades coletivas de todos os países, sobretudo os periféricos.

Não há, portanto, futuro para as sociedades dentro do modelo liberal. O livre-mercado e o seu correlato ao nível mundial, a globalização, ao estabelecerem a busca desenfreada pelo lucro pecuniário como imperativo de sobrevivência, promovem um verdadeiro darwinismo social e econômico, cujos únicos vencedores são as grandes corporações financeiras. Impedem, assim, a consecução de projetos e estratégias de longo-prazo no âmbito das nações, cujo arcabouço político, social e cultural é irredutível ao “mamonismo”.

A reconstrução dos países, tendo como eixo o desenvolvimento das suas respectivas capacidades produtivas e a melhoria do padrão material de subsistência das suas populações, passa necessariamente pelo abandono do individualismo, do globalismo e do laissez-faire e a retomada do Estado como coordenador e planejador estratégico da economia, colocando-a a serviço da Nação como um todo e não mais de uma oligarquia financeira.

Por isso, hoje mais do que nunca, é fundamental rememorar o Sistema Americano de Economia Política, como foi chamado o modo específico de organização econômica adotada pelos EUA após a sua Independência, para torná-la uma realidade econômica e militar, não apenas formal.

O livro Cartas da Economia Nacional contra o Livre Comércio (Capax Dei, 2009) apresenta os textos essenciais a respeito do assunto, escritos pelos principais idealizadores desse sistema. Compõem a obra o Relatório Sobre as Manufaturas, de Alexander Hamilton (1755-1804), um dos Pais Fundadores e 1º Secretário de Tesouro dos EUA; doze cartas, reunidas no volume sob o título geral de Esboço de Economia Política Americana, escritas por Friedrich List (1779-1846), economista alemão que elaborou seu pensamento ao observar, in loco, a experiência do país norte-americano; oito cartas em resposta ao London Times escritas por Henry Carey (1793-1809), importante empresário desse país e assessor econômico de Abraham Lincoln.

Há, ainda, uma seção de apêndices, na qual constam os dados biográficos dos três autores, um artigo sobre a influência do Sistema Americano no Brasil, e um pequeno texto do filósofo G. W. Leibniz, mais conhecido pela sua teoria das mônadas, chamado  “Sociedade e Economia”, que sintetiza as ideias centrais que mais tarde viriam a ser elaboradas pelos três principais autores do livro.

O advogado baiano Ruy Barbosa, ministro da Fazenda do Presidente Deodoro da Fonseca, imaginou um Brasil industrializado e próspero, mas foi sabotado pelas forças contrárias ao desenvolvimento autônomo do País.

Hamilton, List e Carey foram homens práticos e atentos às singularidades nacionais. Imersos nas circunstâncias e nas urgências dos EUA, elaboraram um pensamento econômico de caráter indutivo, incorporando aspectos históricos, políticos e sociais de modo a compatibilizar suas propostas com a realidade concreta e específica desse país. Recém-saído da condição de colônia e, portanto, bastante atrasado em relação à antiga metrópole, a Grã-Bretanha, não convinha aos EUA adotar o receituário que ela impunha. A semelhança dos EUA à época em relação a outros países subjugados econômica e/ou militarmente pela Grã-Bretanha, ou mesmo pelos próprios EUA mais de um século depois, torna o Sistema Americano aplicável, em essência, a esses países, formadores da periferia mundial.

Esses três autores compreenderam, muito perspicazmente, que a universalidade do livre-cambismo e da ênfase ao comércio exterior, preconizada pela Grã-Bretanha, não passava de um ardil colonialista para impedir a industrialização e o aumento populacional dos demais países e manter o resto do mundo como mero fornecedor de matérias-primas a preços vis para a indústria britânica.

Atentos à história, entenderam que a arrancada industrial britânica não se deu em regime de livre-comércio, mas, ao contrário, de forte protecionismo e atuação estatal, e que, uma vez tomado a dianteira industrialista, esse país se esforçava para “chutar a escada” dos demais e assim dominá-los. O que era bom para a Grã-Bretanha no século XIX, devido ao estágio mais avançado da sua indústria e ao maior valor agregado das suas exportações, não o era para os demais países, que permaneceriam na pobreza e no atraso caso mantivessem sua especialização na exportação de artigos primários e na importação de bens manufaturados.

Hamilton, List e Carey defenderam, então, o papel estratégico do Estado no fomento de uma base industrial autóctone para elevar a produtividade e a inventividade da economia nacional, pari passu com um aumento populacional sustentado. O Estado seria parceiro e indutor do empresariado nacional no processo de desenvolvimento, não o seu rival ou concorrente. Caberia ao Estado, enquanto representante e organizador político da Nação, regular e direcionar os interesses privados de modo a se compatibilizarem com os interesses nacionais, em um jogo de soma positiva onde o crescimento do bolo possibilitava uma maior fatia para todos.

Os instrumentos para tanto seriam: a proteção governamental, por subsídios, tarifas alfandegárias e prêmios, à indústria infante autóctone; a integração territorial e a expansão do comércio interno por meio de obras de infraestrutura, para as quais haveria o auxílio e a iniciativa do poder público; e a constituição de um sistema financeiro propriamente nacional, voltado ao financiamento das atividades produtivas internas.

O presidente Getúlio Vargas deu início ao processo de industrialização que em 50 anos colocou o Brasil entre as maiores economias do mundo.

Desse modo, estariam assegurados: a autossuficiência nacional em artigos tanto industriais quanto agrícolas, um amplo e progressivo mercado interno e o fortalecimento da capacidade militar do país.  À medida que os EUA se tornassem mais aptos a se abastecer e se armar com sua própria produção, seriam, também, mais independentes do comércio exterior e menos suscetíveis às urdiduras estrangeiras, conferindo base sólida ao patrimônio construído pelo trabalho nativo.  A riqueza e o poder do país eram, assim, entendidos como indissociáveis e interdependentes.

O Sistema Americano, cujo êxito foi comprovado pelo vertiginoso desenvolvimento dos EUA no século XIX, tornou-se a principal alternativa ao liberalismo nesse período. Fundamentalmente, propôs uma economia de abundância e cooperação dentro do máximo aproveitamento endógeno dos recursos de cada Nação, em contraste com a economia de escassez e competição voltada para legitimar o colonialismo britânico.

Desde então, o Sistema Americano inspirou a adoção de políticas semelhantes em países como Alemanha, Rússia e Japão, que também lograram alcançar altas taxas de crescimento e industrialização, rompendo o monopólio industrial até então exercido pela Grã-Bretanha. Após a II Guerra Mundial, durante os chamados “trinta anos gloriosos”, os princípios desse sistema foram implementados em vários países da Europa Ocidental e do sudeste asiático, propiciando diversos “milagres” (alemão, italiano, japonês), bem como os welfare states do setentrião europeu e o rápido desenvolvimento dos chamados tigres asiáticos.

No Brasil, propostas afins as do Sistema Americano foram defendidas pelos inconfidentes mineiros, por José Bonifácio de Andrada e Silva, pelo Visconde de Mauá e por Rui Barbosa, entre vários outros de menor vulto, como Borja Castro que, em meados do século XIX, citava o exemplo dos EUA para defender a necessidade do protecionismo e da industrialização no Brasil.

Apesar de tentativas francas de adotar o Sistema Americano no Brasil, como a adoção da Tarifa Alves Branco, em 1844, a passagem de Rui Barbosa pelo Ministério da Fazenda, entre 1889 e 1891, e o governo de Floriano Peixoto, a industrialização só se tornou um processo dinâmico e contínuo entre 1930 e 1980, quando o Brasil adotou medidas semelhantes às propugnadas por Hamilton, List e Carey. Os três subscreveriam o esforço governamental, ocorrido em quase todo esse período, de constituir as indústrias de base e o crédito público à indústria e à agricultura, em fomentar a ciência e a tecnologia com a fundação de universidades, centros de pesquisa e institutos tecnológicos, em promover a integração nacional via grandes obras de infraestrutura e em ampliar o mercado interno pela criação de direitos trabalhistas.

Edição da revista The Economist (maio 2020) revela a preocupação da publicação, porta-voz da globalização financeira, com os destinos da economia mundial diante do fracasso do mercado em conter o empobrecimento da sociedade e a concentração da riqueza.

O soerguimento do Brasil e dos demais países após a crise pandêmico-financeira não será possível sem o retorno aos princípios básicos da economia nacional tais como delineados pelos autores do livro Cartas da Economia Nacional Contra o Livre Comércio. O liberalismo e o globalismo já provaram sua inadequação ao atendimento das necessidades e demandas substantivas das nações. Nesse cenário turbulento, apenas as ideias construtivas, como as Hamilton, List e Carey, proporcionam aos seres humanos e às sociedades o que, segundo Carey em seu livro A Harmonia de Interesses, confere poder a eles: a esperança.

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Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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