Ultradireita vence eleições para Constituinte no Chile, mas não é o que parece

Depois de ter rejeitado, em setembro de 2022, o texto proposto para uma nova Constituição, escrita para substituir a atual, herdada do regime militar do ex-ditador Augusto Pinochet, o eleitorado chileno foi às urnas, neste mês de maio, para eleger uma comissão cuja missão é dar a redação final a uma nova Carta, cujo texto está sendo preparado por um grupo de juristas.

O Partido Republicano, chefiado por José Antonio Kast, o mais destacado líder da ultradireita chilena e defensor da Carta atual, elegeu 23 membros para a comissão, fazendo maioria. A chapa Chile Seguro, representando a direita tradicional, elegeu outros 11 e a Chapa Unidad para Chile, da esquerda governista, elegeu apenas 16 membros, restando um representante indígena.

Tal resultado poderia levar a crer que a maioria da população está satisfeita com a Carta atual herdada da ditatura pinochetista. Não é o caso. Na verdade, existe no Chile um amplo consenso de que o país necessita de uma nova constituição. Há dez anos se discute o assunto e a Carta rejeitada nas eleições do ano passado, já no governo de Gabriel Boric, é a segunda não aprovada pelo eleitorado chileno. A primeira rejeição ocorreu no governo de Sebastian Piñera.

Também o fato de a extrema-direita ter elegido a maioria da comissão não quer dizer que os eleitores chilenos querem uma nova Carta de direita ou que permaneça a carta atual. O que ocorreu de fato é que os eleitores foram às urnas votar em uma coisa, motivados e pensando em outra. Ou seja, votaram nos candidatos da direita e da ultradireita porque não estão satisfeitos com o governo de esquerda de Gabriel Boric. Como é nas urnas que os eleitores têm a oportunidade de mostrar sua satisfação ou insatisfação com o governo, os eleitores simplesmente votaram contra o governo de Boric porque estão insatisfeitos. Além da economia – a inflação no Chile está em 10% – duas outras questões que são um prato cheio para a direita chilena – segurança e imigração – dominaram o debate.

Como afirmou para o jornal Valor Econômico o sociólogo chileno Tomás Undurraga em entrevista em 16/05, “A questão da segurança tem a ver com a dificuldade da polícia em impor ordem e o temor de que o narcotráfico avance. E há também a situação do conflito entre o Estado chileno e grupos mapuches, numa disputa histórica pela terra. Ambos os casos se manifestaram em cenas de violência e produziram uma percepção na esfera pública de maior insegurança. Os dados objetivos com relação à segurança não mudaram muito. Comparado com outros países da América Latina, o Chile continua sendo um país relativamente seguro. Mas a percepção de insegurança se transformou num tema público. O outro ponto, que está muito ligado a esse, é a percepção de que a imigração está descontrolada, em particular que a fronteira norte permitiu uma entrada massiva de imigrantes da Venezuela, da Colômbia e do Peru”.

Como afirmou o sociólogo, o debate sobre temas essenciais para a nova Carta, tais como se na área de saúde é necessário aprofundar a privatização ou se é preciso reverter essa situação, ou se o sistema de aposentadoria que é 100% privado deveria ter um componente redistributivo anterior ou não, ficaram totalmente ausentes do debate. Outro fator que também afetou o resultado, segundo Undurraga, foi o fato de que os constituintes que participaram do processo anterior não puderam participar do atual. E todos os que se apresentaram neste processo não podem disputar cargos eletivos nos próximos dois anos. O que significa que os quadros mais importantes dos partidos não se apresentaram. Enquanto o Partido Republicano, que tinha uma representação muito menor, colocou todos os seus quadros.

Diante dessas circunstâncias, talvez a pergunta mais relevante a ser feita não é por que a ultradireita venceu a atual eleição, mas por que a Carta proposta na eleição de setembro de 2022 foi rejeitada. Embora a proposta abordasse questões cuja mudança era mais ou menos consensual na sociedade chilena, como mudanças na saúde pública e na Previdência, entre  os fatores que acabaram por levar o eleitor mediano do Chile a votar pela sua rejeição, é possível identificar, entre outros, sua excessiva ênfase em temas que mais dividiam do que uniam a população chilena relacionados à agenda de costumes, cara a alguns setores de esquerda, e a questão nacional, uma vez que a proposta rejeitada pretendia transformar o Chile em um estado plurinacional para acomodar os conflitos entre o estado chileno e os grupos mapuches.

Tal resultado, se de um lado mostra a força das ideias conservadoras no Chile e, de resto, em toda a América Latina, também revela que a esquerda, ao se apegar a pautas que dialogam mais com setores da classe média intelectualizada, acaba se distanciando desse eleitor mediano, em geral conservador, para quem certos valores tradicionais, sobretudo aqueles ligados à família e à religião, são muito importantes.

Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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