A operação do capital financeiro para aniquilar a CBF e conquistar o futebol brasileiro

PELE - 04.03.1970 - Bresil / Argentine - Match amical Photo : Aldo Liverani / Icon Sport

*Samuel Machado

Esse texto é uma homenagem a Nelson Rodrigues, que escreveu que clube não é boteco e sabia que ídolo não é ativo financeiro. Saiba mais em: https://bonifacio.net.br/clube-nao-e-boteco/

Defender um país é defender sua soberania – principalmente naquilo onde reside o seu coração.

Está em curso uma ofensiva do grande capital para converter o futebol brasileiro em um ativo financeiro divorciado de sua função cultural, social e de fator de unidade e identidade nacional. O futebol brasileiro é um Brasil que deu certo é o soft power brasileiro que engrandece o país toda vez que o adversário vê, dentro da armadura amarela, um menino que pode ser o próximo Pelé ou Ronaldo. O futebol é o Brasil que ganha, domina e não se curva para ninguém. Esse Brasil não pode ser dominado.

É com essa premissa que um novo conflito se levanta. A partida geopolítica para enfraquecer, fragmentar e, por fim, conquistar o futebol nacional. O mercado constrói, o mercado destrói.

Esse ouroboros materialista tem agora o apetite de engolir ainda mais da identidade nacional. Nessa disputa, a geopolítica se dá da mesma forma que se apresenta nas mais variadas frentes do presente: o mercado americano versus os mercados que buscam seu direito ao domínio.

Foi esse o real conflito na FIFA que, após três Copas do Mundo seguidas em países do BRICS (África do Sul, Brasil e Rússia) e uma no Qatar, provocou a cruzada do FBI e do governo americano – agindo como uma polícia internacional – contra Joseph Blatter e, por fim, deu a Copa de 2026 aos americanos.

Dinheiro, política, poder de influência, prestígio social, patrocínios, publicidade… todos esses jogadores também estão dentro das quatro linhas. Futebol é poder. Isso já era sabido por João Havelange, quando usou amistosos do Pelé como contrapartida para angariar votos de países africanos no pleito contra os europeus, criar a Confederação das Associações de Futebol da América do Norte, Central e Caribe (Concacaf) com autonomia de países caribenhos e fazer da Copa o evento mais importante do planeta.

A FIFA tem mais países-membros que a ONU (Organização das Nações Unidas), a maior entidade internacional do mundo. Ao todo, a Federação Internacional de Futebol Association reúne 211 nações, enquanto a ONU tem 193. O futebol ali é o meio para muitos fins. Esse conflito político não excluiria o país do futebol. Aqui a coisa é coisa séria, é um elo familiar de tradição passada de pai para filho, é o orgulho e a autoestima de um povo que viu a seleção colocar o Brasil no topo do mundo cinco vezes e é, para milhões de meninos, a melhor chance de ascensão social.

Uma bola nos pés é a chance de mudar a vida da família, servir ao país e a chance de, no espírito mais masculino e visceral, ser ovacionado pela verve das massas como um gladiador numa arena. O futebol é importante. Como a conquista carece de fragmentação, já em meados de 2013 o futebol virou o maior elemento da guerra híbrida de desestabilização do governo Dilma. Nas manifestações do “Não vai ter Copa”, encampadas pela grande mídia nacional e por grupos com fortes relações com ONG’s financiadas por fundações internacionais, era também gestado um Cavalo de Tróia por aqueles que querem nos dominar.

A tentativa de colocar o brasileiro contra o futebol era a de fazer o brasileiro agredir a sua própria identidade e o elo com milhares de outros brasileiros. De lá para cá, frequentes ataques foram produzidos contra o futebol no país. Primeiramente pela inquisição americana, para punir a direção da FIFA que ousou fazer quatro copas fora da Europa e dos Estados Unidos, e que condenou Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero; após isso, com os ataques sistemáticos à CBF e à organização do nosso futebol. Dívidas de clube, questionamentos sobre a construção de estádios, ataques às relações políticas de dirigentes esportivos e até o ataque à vida pessoal dos maiores jogadores pautaram o debate futebolístico. Programas de mesa redonda deixaram de discutir pênaltis e cartões vermelhos e passaram a discutir adultérios de jogadores, diferença salarial das jogadoras e até cantos homofóbicos da torcida.

O futebol se tornou réu e seus algozes tinham o dinheiro e o microfone. Para esses, a solução do futebol era justamente a sua antítese. Trocar o estádio por arenas, um clube por Sociedade Anônima de Futebol (SAF), um presidente por CEO, a arquibancada popular por uma cota de streaming, a identidade por naming rights, o menino comum com uma bola por um militante com agenda progressista e, por fim, a Confederação Brasileira de Futebol por um fundo estrangeiro de investimentos.

Nos anos 90 fomos enfraquecidos financeiramente e perdemos a capacidade de reter nossos maiores jogadores. Em 2013 começamos a ser divididos pela desestabilização externa e, nesse momento, estamos na trincheira que pode nos conquistar. Nessa disputa para o passo final de domínio do nosso futebol, dois grupos se apresentaram. A XP, intermediando os interesses da Life Capital Partners (LCP) e do fundo americano Serengeti Asset; e o BTG, que representa os interesses do fundo de investimentos Mubadala Capital para a Libra, braço do fundo soberano de Abu Dhabi. Esses dois grupos propõem que o futebol não mais seja administrado pela confederação nacional mais eficiente desse esporte. A confederação que formou o maior número de jogadores de destaque no mundo – incluindo o maior, a seleção com mais Copas do Mundo e das Confederações. Nessa atual disputa entre dois fundos, várias divergências se apresentam, mas o inimigo é o mesmo.

Para comprar o futebol e seus direitos econômicos, é preciso antes atacar aqueles que hoje detém o futebol: a CBF e os clubes. A maior carência do futebol enfraquecido, e de valores cada vez mais inflacionados, era a necessidade frequente dos presidentes de clube em contrair empréstimos para montar times competitivos durante a gestão. Com gastos cada vez maiores, os juros se acumularam e os clubes, embora máquinas com capilaridade econômica e engajamento de seus fanáticos torcedores, tornaram-se reféns dos juros bancários.

O Atlético Mineiro, clube mais endividado do país, projeta pagar 150 milhões de reais de juros bancários apenas em 2024, por exemplo. As dívidas dos principais clubes do futebol brasileiro cresceram R$ 900 milhões apenas de 2021 para 2022, ultrapassando a soma de R$11 bilhões, segundo a Ernst & Young (EY). Nesse cenário em que a usura financeira fez os clubes pagarem em juros mensais quase a quantia da folha salarial do plantel, a necessidade de acesso a crédito não é mais uma possibilidade.

Necessitando de capital para continuarem competitivos, num futebol inflacionado, dois caminhos são oferecidos aos clubes: a cruz ou a espada. Ou agredir a CBF, vender os direitos de transmissão, comercialização e gestão do futebol e pedir o adiantamento da verba dos próximos 50 anos, pagos em deságio pelos bancos; ou virarem SAF e serem vendidos para fundos que serão apresentados por esses mesmos bancos, que representam os interesses dos investidores que querem a CBF.

A proposta da Liga do Futebol Brasileiro (Libra), representada pelo BTG, é R$ 4,75 bilhões do Mubadala Capital, braço do fundo soberano do governo de Abu Dhabi, por uma fatia de 20% da liga a ser criada com um prazo de meio século. Nos mesmos termos, mas com a promessa de um aporte de R$ 4,85 bilhões, a Liga Forte Futebol (LFF), assessorada pela XP, representando o fundo americano Serengeti Asset Management também quer 20% pelos mesmos 50 anos. Ou seja, nessa estrutura os clubes vendem 20% de seus direitos de 50 anos por um valor pré-fixado de quase 5 bilhões. Esse valor é justo? Não se sabe – mas também não parece interessar. Já é difícil calcular quanto as cotas de patrocínio e publicidade vão valer em cinco anos, é impossível prever a infinitude de possibilidades de transmissão e comercialização que podem ser criadas nas próximas cinco décadas.

Há 50 anos, não existiam streamings, a televisão transmitia menos jogos e o futebol tinha menos dinheiro. O que eles querem é comprar os direitos infinitos do futuro para saciar o desespero do presente. É isso ou virar SAF. E, em caso de SAF, os clubes precisam de investidores que consigam assumir a dívida, os juros e garantir ao torcedor a capacidade de investimentos – e para isso precisam de bancos e fundos de investidores.

O Cruzeiro, por exemplo, foi vendido por intermédio da XP, a mesma que quer vender o futebol para os americanos da Serengeti Asset, para Ronaldo; ou, de forma ainda mais direta, o clube é vendido aos próprios banqueiros, como o Atlético-MG, vendido a Rubens Menin (Banco Inter), Ricardo Guimarães (Banco BMG) e Daniel Vorcaro (Banco Master). De novo, é a cruz ou a espada. Para sair dessa dicotomia covarde, é necessário a defesa da soberania da CBF na organização do futebol e, acima de tudo, uma solução para o grande problema de todo o desenvolvimento nacional: os juros. Quando a taxa de juros se tornar uma barreira que só o investidor internacional pode vencer, não perdemos só a possibilidade do crescimento, também perdemos a capacidade de manter o que temos. Uma saída financeira articulada para os clubes deve ser feita para que a gestão do nosso futebol continue sendo nossa.

*Mineiro, economista, publicitário, sócio da Agência Passus e consultor de marketing político e digital.

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