Três impressões de um torcedor (comentário a respeito do documentário do netflix sobre o rei do futebol)

Vou dividir minha ‘’análise’’ do filme em questão em três impressões, amigo leitor:

1.É impossível homenagear Pelé.

2.Pouca magia, carência estética e uma dose de ignorância sobre a importância cultural de Vossa Majestade.

3.Ênfase em um mal fundamentado paralelo entre Pelé e o regime civil-militar (Síndrome De Vaney?).

É impossível homenagear Pelé

Não sou crítico de cinema. Excetuando o Canal 100, Glauber Rocha, Anselmo Duarte e Carlos Imperial, o cinema é um universo desconhecido para mim. Sobre a qualidade técnica do filme, eu poderia aproveitar a ocasião e exibir os clichês habituais – excelente fotografia! E o uso do efeito kuleshov? Eu não entendo nada sobre esse tal efeito e, de uma maneira geral, o único efeito que conheço é o chute com efeito. Confesso: sou um analfabeto em matéria de sétima arte. Não conheço nenhum João Kuleshov. Conheço apenas a folha seca de Didi. Com sinceridade, amigos, apresento minhas credenciais. Falarei como um torcedor apaixonado e, por conseguinte, de forma totalmente parcial e passional.

Além de não entender nada de cinema, sou um peladeiro das letras. O leitor percebe desde a primeira frase. É uma maneira indisfarçável de escrever: uma bola de trapos e palavras rolando nos campinhos de terra da retórica de torcedor apaixonado. O futebol é literatura, carnaval, teatro, anedota e narrativa popular. Em uma pelada, cada um de nós já foi craque, já vestiu as fantasias da imaginação e acreditou ser Ademir da Guia, Rivelino, Sócrates, Mauro Shampoo ou Super Ézio – o jogo nos faz transgredir a banalidade fenomênica do comum. O maior camisa 10 da literatura compreendeu a alma do jogo: a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Nelson Rodrigues tinha razão sobre o futebol. Se a paixão nacional é shakespeariana, amigo leitor, o futebol está além dos contos de fada da Disney – um bom sociólogo entenderia o aspecto obvio e ululante do aforismo rodrigueano.

Minha estreia na pelada das letras aconteceu por ocasião do aniversário de oitenta anos de Vossa Majestade. Na Monarquia Parlamentarista Futebolística do Brasil, o primeiro ministro da Copa das Copas, Aldo Rebelo, me escalou para uma importante partida – escrever uma homenagem para o Rei! Como súdito, cidadão e peladeiros das letras, eu tremia de pavor. Era como se eu sofresse de mal de Parkinson no contexto de um terremoto. Como qualquer garoto da base, tomado pelo nervosismo, entrei em campo e… joguei! Na ocasião, uma grande filósofa carioca me ajudou na revisão do texto. Tive de apelar para a sabedoria dos filósofos. Eu não poderia deixar de jogar aquela partida. Sou um fominha, um peladeiro incurável. O verdadeiro peladeiro só pode ser vencido pela vontade de jogar. O jogo atualiza a potência criadora do lúdico.

Nelson Rodrigues via o futebol com a riqueza dramática de uma peça de Shakespeare.

Errei alguns passes, fiz algumas boas jogadas e, no apito final do texto, ficou a sensação de uma partida mediana. Senti que meu elogio ao Rei não foi completo. Depois compreendi minha impotência: qualquer esforço para homenagear Pelé em sua plenitude e superioridade é impossível – foi o caso do filme em questão. Não é um demérito, pois é impossível homenagear a obra de Edson Arantes do Nascimento em sua completude. Homenagear toda a obra do Craque seria o mesmo que ler e comentar toda a obra de Santo Tomás de Aquino. Hércules realizou tarefas mais fáceis. Imagine o trabalho que Santos Dumont teve para inventar o avião? 

Como homenagear um homem que fez mais de mil gols? Qualquer sujeito precisaria escrever uma biblioteca de Alexandria para dar conta da obra. Edson Arantes do Nascimento merecia um Homero, um Gonçalves Dias, um Camões – e os livros deveriam ser ilustrados no mínimo por um Caravaggio. Recorri aos figurinos da retórica, ao pátio imagético das figuras de linguagem e, dois ou três parágrafos depois, os adjetivos, os dribles estilísticos e outros recursos lexicais de um peladeiro estavam em falta. Pelé é um homem que esgotaria os insumos textuais de qualquer grande escritor. De um peladeiro das frases, amigos, eu nem precisaria explicar. David Tryhorn e Ben Nicholas, os diretores do filme, devem ter sentido a mesma impotência! E eu os compreendo.

Repito: é impossível homenagear Pelé! Não é exatamente um demérito! Já sabíamos que o filme seria incompleto!

Pouca magia, carência estética e uma dose de ignorância sobre a importância cultural de Vossa Majestade

O futebol brasileiro nasceu com a vocação para a criação da beleza. Cada gesto, cada drible brasileiro é como um movimento de dança – um drible brasileiro tem mais exuberância estética que toda a School of American Ballet. A estrela é o jogador, o craque da cinesia dos gestos, o gênio da motricidade poética. No segundo plano está a plateia, o torcedor. No Brasil, como em poucos lugares do mundo, torcer é uma arte. Vou citar um único e miserável exemplo: as bandeiras no estádio. Uma paixão exige um estandarte tremulante, algo que faça bailar o sentimento através de cores e formas – o símbolo da paixão incontível precisa dançar com o vento. No país do futebol, a força das flâmulas dançantes tem o poder de evocar a erupção das multidões indefinidas. O torcedor brasileiro nasceu com a benção de Nossa Senhora das Alegorias. Dos símbolos transcendemos para o absoluto. Pelé é a encarnação do absoluto!

Além da arte dos craques e do povo, o brasileiro está acostumado com grandes textos sobre futebol – o Jornal dos Sports me alfabetizou. Contamos com uma notável tradição de cronista. Nelson Rodrigues, Mário Filho, José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade são alguns dos nossos cobras no jogo das letras. Contra o futebol, no Brasil, contamos com Graciliano Ramos e Lima Barreto. Mesmo o ‘’anti-futebol’’, no País Tropical, conta com um escrete formidável de escritores – o Brasil seria um país melhor se os mascarados de 2013 fossem cronistas e não sabotadores. Em qualquer boteco de subúrbio, um torcedor que tenha visto o Rei jogar, saberia narrar os feitos de Pelé com magia e paixão. E o filme sobre o Pelé? Os diretores pareciam ignorar as nossas tradições, nossa vocação estética, a capacidade inata dos brasileiros para contar estórias, nosso irrevogável destino de beleza e encantamento. Narciso acha feio o que não é Canal 100.

De belo, amigos, apenas o batuque do Rei em uma caixa de engraxates. Fui injusto, leitor: além da musicalidade de Vossa Majestade, os lances e gols do Craque conformam momentos de contemplação e beleza. É sempre bom ver um golaço, um lance genial. Mérito do Craque e não dos diretores. Repito: David Tryhorn e Ben Nicholas pareciam não entender a cultura do futebol brasileiro, a obra de Pelé e, em alguns momentos, os diretores pareciam dois ingleses sambando na quadra da Mangueira. O compasso descoordenado das cenas, a celeridade das imagens, a sobreposição de falas – em alguns momentos o filme mais parecia o trabalho de um youtuber. Fala e corte, fala e corte, fala e corte: escanteio cobrado, corte da defesa e novo escanteio…

Há cronistas que enxergam o futebol com a pobreza dramática de uma fábula da Disney.

O que o filme apresentou de belo? O encontro do Craque com os ex-companheiros de Santos e Seleção, os depoimentos de familiares, amigos e as falas de Gilberto Gil, Benedita da Silva e da própria Majestade. Gil e Benedita, ainda que com uma infinidade de cortes, ressaltaram o significado de Pelé para a cultura. Freud descobriu o complexo de Édipo; Pelé curou o complexo de vira-latas. Pelé representa o triunfo dos pobres, dos negros, dos humildes, dos morenos, dos imigrantes, dos injustiçados, dos peladeiros de todos os tipos, dos vaqueiros do sertão – o futebol realiza aquilo que precisamos construir em termos civilizatórios. Em suas falas, o Rei desvela toda a verdade: em 1958, o Brasil era um país desconhecido. Na Suécia, as Gretas do passado tocavam em Pelé com curiosidade – o mundo não conhecia a cor, a forma e a beleza brasileira. Pelé ensinou o Brasil para o mundo e, não seria nenhum exagero dizer, para os próprios brasileiros.

Me permito uma paráfrase-paródia: quem gosta de documentário é intelectual; o torcedor de um bom papo sobre futebol no boteco.

Ênfase em um mal fundamentado paralelo entre Pelé e o regime civil-militar (Síndrome De Vaney?)

O filme transcorria com os clichês e defeitos (compreensíveis) já mencionados. Alguns pontos, como também já aludi, foram positivos. Em um determinado momento, seguindo um paralelo entre a carreira de Pelé e a história do Brasil, o filme se torna problemático. O perigo do documentário reside na possibilidade de adulteração da obra do Gênio, numa espécie de refundação -ou recriação- da síndrome de De Vaney. Depois que Pelé se recusou a jogar a Copa de 1974, o jornalista De Vaney irritado com a negativa do Rei, resolveu adulterar a obra do Gênio.

No livro ‘’A verdade sobre Pelé: as fantasias, os exageros, o mito e a história de um desertor’’, o ‘’poeta da crônica esportiva’’ tentou falsificar Pelé. Como torcedor apaixonado e talvez tomado pelo sentimento histriônico da paixão futebolística, De Vaney datilografou contra o Rei – o conteúdo do livro ainda carece de uma justa e completa análise. Um aviso: não estou propondo qualquer cancelamento, qualquer linchamento moral ao cronista. Uma obra precisa ser compreendida dentro do contexto histórico em que foi produzida, no interior da complexidade e das contradições do seu tempo. De Vaney foi muito importante para a crônica esportiva brasileira. O que então seria a Síndrome de De Vaney? Uma tendência (voluntária ou involuntária) para supostamente ‘’desmistificar’’ a verdade dos mitos. Um gesto de ‘’desmistificação’’, de ‘’desconstrução’’ vulgar e ‘’protesto desorientado’’ que tem o potencial de gerar efeitos catastróficos – o leitor ainda lembra das cenas de protesto das jornadas de junho?

Nelson Rodrigues dizia que a perenidade de sua literatura estava fundada na ideia de que ele não trapaceava. Nelson não falsificava o homem. Eis o que eu quero dizer, leitor: o documentário sobre Pelé, em determinados momentos, quase rasurou a súmula das façanhas heroicas do Mito Brasileiro. Ainda que com ressalvas e nuances, o jornalista Juca Kifouri questionava a postura ‘’apolítica’’ ou a suposta ‘’neutralidade’’ de Pelé sobre a política – notadamente no contexto do regime civil-militar. Kifouri não foi o único. Repito: não quero ser injusto com o Juca e os jornalistas que faziam cobranças semelhantes, contudo, em determinados momentos, me pareceu que o Rei estava sendo retratado como um perna de pau moral, como um pereba ético – tomara que eu esteja enganado! Em resumo: um abismo ontológico separa o Camisa 10 do AI-5!

Se este possível engano sobre o documentário triunfasse como narrativa e o filme fosse exibido na sala de cinema da Associação dos Cretinos Fundamentais do Brazil, a película seria aplaudida de pé. A plateia, tomada pela hybris udenista, urraria: – Venceremos o Oscar e, finalmente, o Brazil será reconhecido mundialmente! A produção é estrangeira, mas, para os cosmopolitas e vira-latas de ambos os lados do espectro da polarização política, o fato seria comemorado como uma glória do Brasil – não sabem que uma Jules Rimet vale mais que uma miríade de ‘’Oscares’’. Certamente nossa imprensa esportiva não possui vínculo com a Associação dos Cretinos Fundamentais do Brazil. O perigo, contudo, parece ser o paralelo forçado de Pelé com a ditadura civil-militar. Repito: eu quero estar enganado! A pretensa ‘’desmistificação’’ da verdade mítica pode gerar efeitos catastróficos. Novamente e com mais ênfase: um abismo ontológico separa o Camisa 10 do AI-5!!!!!

Como um bom súdito-torcedor guardo do Rei as imagens do Canal 100 e os relatos dos torcedores que viram Pelé em ação. Fico com a verdade do cinema brasileiro e com a honestidade da memória popular. Se tivesse de fazer um paralelo entre Edson Arantes do Nascimento e a história, entre o Rei e a política ou a questão social, me limitaria a repetir as palavras de Benedita, Gil e do próprio Pelé. Ou mesmo as minhas que, mesmo inferiores, percorrem com esforço o caminho da sinceridade. Apesar de singelo, meu artigo sobre o significado de Pelé (Elogio de Pelé: 80 anos da Majestade Brasileira) propõe analogias mais verossímeis – Pelé foi um Bonifácio dos gramados, um criador do Brasil. Em resumo: Pelé é um patrimônio da cultura brasileira! Nossa condição humana nos impede de entender a grandiosidade da obra do Gênio! O Rei é infinito…

De resto e para que não sobre qualquer dúvida, termino citando as palavras da própria Majestade Brasileira, no momento da comemoração do seu milésimo gol: ‘’Pelo amor de Deus, olha o Natal das crianças, olha Natal das pessoas pobres, dos velhinhos cegos. Tem tantas instituições de caridade por aí. Pelo amor de Deus, vamos pensar nessas pessoas. Não vamos pensar só em festa. Ouça o que eu estou falando. É um apelo, pelo amor de Deus. Muito obrigado.’’ (Pelé).

Cronista, crítico e historiador esportivo.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo, como sempre, do grande trabalhista e tricolor – dois importantes tr-! – Teixeira Mendes. Que os “desmistificadores” anglofalantes sejam, eles próprios, desmistificados. Pelé não lhes pertence, eles não têm direito algum a diminuírem e poluírem a memória do Rei do Futebol, que, ao contrário deles, está acima de qualquer arenga politiqueira. Parabéns ao Teixeira Mendes pela coragem e clareza em explicar o óbvio em tempos tão tumultuados.

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