Castilho, o mais trágico dos heróis

*Texto dedicado ao melhor técnico da história do futebol mundial – meu pai!

Desde de que comecei a escrever sobre os heróis de chuteiras, eu tinha em mente apenas aquilo que é claro e evidente: extrair de cada personagem sua verdade mítica, a tragicidade épica e dramática dos imortais do futebol. Sou apaixonado por futebol desde criancinha.  Em minhas mais esquálidas, pálidas e remotas recordações constam detalhes de jogos dos anos 90, as reprises do Canal 100 e, notadamente, as estórias contadas pelos torcedores mais velhos. O Povo Brasileiro possui uma capacidade inata para contar estórias. Parte do pouco que sei sobre a Paixão Popular, amigo leitor, aprendi ouvindo.

Não sou exatamente um pesquisador. O sujeito que é um híbrido de canudo e método. E quem sou? Um torcedor, um peladeiro das letras e, como qualquer entusiasmado pelo futebol, tento transformar em texto o relato popular, as narrativas orais do Povo. É claro, leitor. Também sou leitor. Sou leitor dos grandes mestres da crônica. Ainda na infância, com oito ou nove anos, eu era do ‘’clube do jornal’’ da escola. O que era o ‘’clube do jornal’’? Um grupo de cinco ou seis meninos reunidos em torno do Jornal dos Sports. Um colega, não me recordo o nome, comprava o ‘’rosinha’ que, em seus últimos anos de circulação, de vez em quando, republicava crônicas antigas dos grandes e inesquecíveis mestres.

Eu gostava muito das crônicas pretéritas. A crônica é um gênero textual natimorto. Nasce e, no dia seguinte, segue para cumprir seu glorioso destino: forrar gaiola de passarinho. É um gênero efêmero, uma espécie de efemeróptero dos gêneros textuais. Além de tudo, como gênero, é algo entre o som e o silêncio – o jornalismo e a literatura. A crônica futebolística é ainda mais fugidia. O cronista precisa falar do instante, da breve duração fenomênica do lance e, muito dificilmente, uma crônica atinge a imortalidade. No futebol, amigo leitor, apenas o craque é imortal. Nas letras, esperamos por um Mário, um Zé Lins e um Drummond como autênticos Sebastianistas. Somos torcedores carentes de craques e cronistas imortais.

Castilho, no Fluminense campeão em 1951, um time que tinha Píndaro, Didi e Telê, entre outros craques.

Além da imortalidade dos craques, de raros cronistas, também é eterna a memória da Paixão Popular – a dimensão onírica das recordações de um torcedor. E evoco a memória, pois, no futebol, a verdade é pouco veritativa. Verdadeiro é tudo aquilo sobrevive ao afogamento nas águas turvas do esquecimento. Como já aludi, desde a infância, parte do pouco que sei sobre a bola e o jogo me foi transmitido oralmente. Já adulto, com dezenove ou vinte anos, eu mantinha o ‘’método’’. Depois do trabalho, o repositor de loja parava no bar e pedia uma gelada. Posicionado no balcão, eu olhava para o bar como quem iria fazer um passe de trinta metros. Meu olhar procurava um potencial contador de estórias de futebol.

Buscava especialmente aqueles de aparência mais velha. Nos botecos do Rio de Janeiro cada indivíduo é Homero. Qualquer sujeito tem uma epopeia na ponta da língua. Lembro-me em especial de um torcedor de balcão de bar. Seu Nicolau, o botafoguense mais assíduo do Bar do Russo, localizado na rua José Perigault. Meu amigo alvinegro narrava o passado futebolístico cheio de lirismo e paixão. Com Seu Nicolau conheci os detalhes dos dribles de Garrincha. Em casa, com meu pai, amigo leitor, aprendi sobre o mais trágico dos heróis do futebol brasileiro – Castilho. E como eu gosto de ouvir suas estórias lendárias. O futebol não é um jogo. Não. O futebol é uma epopeia de músculos e ossos que serve de paisagem para os feitos lendários dos grandes heróis.

Castilho é o maior goleiro da história Tricolor. Foi reserva de Barbosa em 1950, titular em 1954 e, novamente na reserva, Bicampeão Mundial em 1958 e 1962. É um dos poucos jogadores que participou de quatro Copas do Mundo. Como jogador do Fluminense, o arqueiro é o atleta que mais vestiu a camisa do Clube e, sua principal conquista, é o Mundial de Clubes de 1952. Também em 1952, como titular, Castilho foi Campeão Pan-americano com a Seleção. Antes de 1958, talvez, o título mais relevante da história da Seleção Brasileira. Na última rodada da competição, o Brasil bateu o Uruguai por 4 a 2 e, de um modo ou de outro, o triunfo serviu como revanche do Maracanazo.

Castilho é descendente da tradicional escola de guarda-metas do futebol brasileiro, a escola de Laranjeiras. Nossas traves foram defendidas por nomes como Marcos Carneiro de Mendonça, Félix, Veludo, Paulo Victor e outros grandes nomes.  Marcos é o fundador da tradição Tricolor. Foi o goleiro, a muralha do título Sulamericano de Seleções de 1919, a primeira grande conquistas do Futebol Brasileiro. Castilho possui nobre descendência. É o maior arqueiro Tricolor. Repito: não apenas o maior goleiro da história, mas, possivelmente, o maior ídolo da história Pó de Arroz. Não por acaso, o centro de treinamentos do Flu tem o seu nome.

E o que torna Castilho tão distinto, tão autêntico, sublime e augusto? Seu estilo! Um herói é seu estilo! E o estilo do herói manifesta o sentido de ser do herói: o princípio de diferenciação. Não topamos com um Aquiles, um Getúlio Vargas e um Garrincha todos os dias, amigos. Não. O herói é uma raridade, é uma possibilidade negativa de ser que, contudo, se realiza no horizonte fenomenológico do real. Castilho era filho e devoto de Nossa Senhora da Coragem e da Bravura. Cara a cara com o atacante, o goleiro saltava para a dividida, para o choque como o guerreiro que defende as muralharas da cidade. Além da bravura leonina, amigo leitor, Castilho era protegido por outra força extraterrena – a sorte.

E eu gostaria de chamar o mestre da crônica para falar da sorte, da Leiteria Metafísica: A leiteria! Vale a pena traçar aqui, sinteticamente, o seu resumo biográfico. Abriu as portas, pela primeira vez, em 51. De repente, os adversários começaram a perceber que o Fluminense não jogava somente com classe, somente com técnica. Castilho era bom, era ótimo, era formidável. Mas um arqueiro tem os limites da condição humana. Ora, Castilho fazia defesas sobrenaturais. E todo mundo começou, por trás do arqueiro, a ver a influência extraterrena da leiteria. Numa amargura medonha, o inimigo rosnava que Castilho era o leiteiro. O fato é que o Fluminense tornou-se gloriosamente o campeão de 51. ¹

Além da sorte e da coragem, Castilho era um goleiro de raro talento e aptidão. Estamos falando do tempo em que os equipamentos não eram sofisticados e o guarda-metas tentava conter o chumbo com as mãos nuas. Cada salto de Castilho era um pulo na busca pelo impossível. Contra um tiro mortal, fulminante, o arqueiro Tricolor bloqueava a investida como quem discorda da inexorabilidade do inevitável. Seus saltos tinham a plasticidade de um bailarino, de um Vaslav Nijinsky e sua envergadura emanava a presença indefinida da onipresença. Como todo herói, nosso Camisa Um, transcendia a condição humana sendo humano – o paradoxo do herói é o seu destino trágico. O herói transcende o tempo na direção dos calmos e generosos seios da memória.

Na época dos goleiros sem luvas, Carlos José Castilho, fraturou diversas vezes o dedo mínimo da mão esquerda. A bola era feita de um couro impiedoso, hostil e, quando molhada, alcançava a massa da pedra de Sísifo. O romântico nasce vocacionado para a ruina. Depois de tantas lesões, nosso paladino vestiu os trajes de seu destino trágico: em um treino da Seleção, após defender um chute de Pepe – o canhão da Vila –, nosso herói sofreu outra fratura no dedo mínimo da mão esquerda. Uma comissão médica pensou na melhor estratégia, a razão científica propôs de forma coerente a cura. O futebol, contudo, é uma desmedida, uma paixão. Castilho recusou a terapia.

A douta proposta dos respeitados hipocráticos apresentaria resultados demorados e, para antecipar seu retorno aos gramados, Castilho optou pela amputação parcial do dedo contundido. Dizem que o goleiro é o único ser esculpido pela solidão. Todos discordaram da decisão do Camisa Um e, novamente, Castilho era um solitário em sua fortuna. O homem dos saltos magistrais, das defesas impossíveis, da sorte mística e misteriosa assumia solitariamente o peso da responsabilidade das decisões dramáticas. Da esposa aos médicos, dos dirigentes aos amigos, reza a lenda que o Imortal Goleiro estava insulado em seu veredito. Castilho sacrificou a si mesmo por amor ao Fluminense.

Depois de encerrar sua passagem pelo Amado Clube de Laranjeiras, o Eterno Camisa Um concluiu sua carreira com o título de Campeão Paraense, pelo tradicionalíssimo Paysandu. Como treinador, nosso Gênio das Traves comandou a equipe onde terminou sua trajetória como jogador, o glorioso Santos e outras equipes do Brasil. Os últimos anos de sua vida são nebulosos. Nas conversas de bar e arquibancada muitas lendas e estórias foram criadas em torno dos últimos anos de sua biografia. Tudo o que sabemos é que Castilho deu um último salto. Em 1987, em Bonsucesso, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, nosso herói saltou da cobertura do prédio de sua ex-esposa. Foi o último salto do Lendário Goleiro. Castilho deixava a vida para viver no templo imperecível da memória.

– Viva Carlos José Castilho, o mais trágico dos heróis!

1.Nelson Rodrigues sobre Fluminense 1 x 0 América, 23/10/1958, no Maracanã. Texto retirado da coletânea ‘’As sombras das chuteiras imortais’’.

Cronista, crítico e historiador esportivo.

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4 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns ao portal por nos enriquecer historicamente que abre espaço para o futebol como parte importante da nossa cultura!

  2. Texto afinado em ponto certo. Heróico como o sujeito-objeto: Castilho. Elegância discreta nas linhas e suas palavras. Traço cinza que desenhava os movimentos de Carlos José. Personagem que entranhou o espírito do Fluminense para todos os tempos.

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