Alberto de Seixas Martins Torres (Itaboraí, 1865 – Rio de Janeiro, 1917), conhecido simplesmente como Alberto Torres, foi, no campo intelectual e, também, no político, um dos principais organizadores do nacionalismo brasileiro em sua época. Poucos pensadores fizeram, no plano intelectual, uma defesa tão explícita, consistente e programática do nacionalismo quanto ele.
Na defesa da soberania e dos interesses nacionais, ele uniu a teoria e a prática em uma das mais inspiradoras contribuições nas primeiras décadas da República. Autor de importantes livros como O Problema Nacional Brasileiro (1912)[1] e A Organização Nacional (1914)[2] – que denotam, já no título, a preocupação central com a Questão Nacional -, ele também se destacou enquanto ministro da Justiça e Negócios Interiores do Brasil, de 30 de agosto de 1896 a 7 de janeiro de 1897, presidente do estado do Rio de Janeiro, de 31 de dezembro de 1897 a 31 de dezembro de 1900, e ministro do Supremo Tribunal Federal de 18 de maio de 1901 a 18 de setembro de 1909.
O nacionalismo torreano era, mais do que uma linha programática, um modo de compreender o Brasil em suas múltiplas facetas. Sem a referência à Nação como um todo abrangente, seria impossível cotejar os diferentes aspectos e regiões constitutivos do País. Como muito bem disse o sociólogo Oliveira Vianna sobre Alberto Torres: “Mostrou que os problemas políticos, constitucionais, sociais, educacionais e econômicos deviam ser considerados tomando como ponto de partida a Nação – e não as suas unidades componentes”[3].
Segundo Torres, a Nação não se define pelos seus aspectos jurídicos e formais, pois constitui uma realidade viva e orgânica na qual os fatores materiais e espirituais se interpenetram de maneira singular. Elementos demográficos, geográfico-territoriais, políticos e morais formariam a Nação, existente na forma de Pátria. Não bastaria a um país consagrar valores e ideais, como soberania, igualdade e liberdade, na letra das leis, pois, para serem efetivos, deveriam estar, acima de tudo, presentes na composição concreta da vida nacional. As verdadeiras leis não seriam aquelas cuja existência não transcendesse o pedaço de papel em que estavam escritas, mas, sim, as que institucionalizassem, nesse plano formal, a realidade própria e autêntica do país, vivida e experimentada pelos seus cidadãos, ligados entre si no solo comum a eles e baixo a proteção do Estado que representa a política nacional.
A defesa da Nação, fundamental para um país jovem como o Brasil, seria, então, um trabalho não de fazimento e desfazimento de leis ao bel-prazer dos juristas, de proclamação solene de princípios abstratos, mas de organização nacional, isto é, de salvaguarda e de aperfeiçoamento das bases físicas e morais da Pátria pela ação dirigente e coordenadora de uma Política nacional e orgânica. Essa, profundamente vinculada à realidade social e natural do País e segundo os interesses da coletividade pátria, erigiria um sentido de conjunto e harmonia entre a administração pública, a economia e a sociedade. A organização nacional, das bases e estruturas da Nação, seria um empreendimento, acima de tudo, político.
A Política seria, então, “a função coordenadora por excelência da vida social prática” (ON, p. 237) e “a arte de dirigir a sociedade e, com ela, o homem, no seu processo de adaptação ao meio físico” (ON, p. 243). Dessa maneira, a verdadeira política seria necessariamente empírica e relativa, ajustada às condições específicas de cada nação, como a história, a gente, a cultura, o clima e o solo.
Não haveria, assim, preceitos políticos apriorísticos, tampouco uma métrica universal de classificação e avaliação. O que era bom para um país não necessariamente seria para outro, pois cada fórmula e cada prática encontravam sua autenticidade no enraizamento nos modos concretos e específicos de existência nacional. As respostas para as questões candentes do Brasil não deveriam, portanto, ser procurada em manuais e códigos estrangeiros, mas na realidade viva e pulsante do nosso País.
No Brasil, entretanto, a Política e a organização nacionais ainda estavam por ser feitas. A independência jurídica brasileira não era substancializada nas bases e estruturas internas, que permaneciam desarticuladas e orientadas para o atendimento de interesses e valores alienígenas. As imensas possibilidades e potencialidades do Brasil, das quais Torres nunca duvidou, não estariam sendo cumpridas, sequer valorizadas e conhecidas, com grave consequências para a coletividade nacional.
Em suas palavras: “Somos um país sem direção política e sem orientação social e econômica. Este é o espírito que cumpre criar. O patriotismo sem bússola, a ciência sem síntese, as letras sem ideal, a economia sem solidariedade, as finanças sem continuidade, a educação sem sistema, o trabalho e a produção sem harmonia e sem apoio, atuam como elementos contrários e desconexos, destroem-se reciprocamente, e os egoísmos e interesses ilegítimos florescem, sobre a ruína da vida comum. O Brasil é, entretanto, um dos países que apresentam mais sólidos elementos de prosperidade e mostram condições para um mais nobre e brilhante destino” (ON, p. 62).
Entre os problemas que compõem o triste cenário descrito por Torres, estão, segundo ele, a artificialidade das instituições brasileiras, a submissão do País aos interesses econômicos estrangeiros e o abismo social entre as oligarquias privilegiadas e a massa explorada. Pode-se dizer que o fio condutor da sua produção bibliográfica e da sua prática política e jurídica são a denúncia desses males – que ele via estando relacionados entre si – e a proposta de uma solução nacionalista, compatível com a realidade nacional e que atendesse aos reclamos específicos do País.
Defensor do republicanismo, Torres entendia que a transição da Monarquia para a República, evento marcante em sua época, havia significado tão-somente uma modificação epidérmica na vida nacional. O principal problema, a seu ver, não era a forma de governo, mas o persistente caráter exótico e importado das instituições políticas e jurídicas.
Os grupos dirigentes brasileiros, indiferentes ao Brasil real, continuariam a impor códigos legais e fórmulas organizacionais alheias à nacionalidade e aos seus aspectos constitutivos, como o povo, a terra e o clima. Os dispositivos da Constituição e os demais mecanismos institucionais, copiados de outras latitudes e adequados a outras formações sociais, seriam, aqui, meras abstrações formalistas, apartadas da nossa realidade nacional.
Por entenderem as leis e as instituições como realidades em si mesmas, ignorando, portanto, seu conteúdo sociológico e seu enraizamento em formações sociais e culturais específicas, as elites políticas e intelectuais brasileiras teriam dado as costas ao próprio País e pretendido dar a ele a organização formal de outros países, com os quais o Brasil não guardaria nenhuma semelhança.
As instituições por elas criadas e legitimadas, pretendendo ser representativas de toda a Nação, eram, na verdade, corpos estranhos a ela e representavam, na prática, apenas esse pequeno círculo ilustrado que as havia formado. O Brasil legal, descrito em seus códigos e defendido em rebuscados discursos parlamentares e jurídicos, nada teria a ver com o Brasil real, das massas exploradas e dos rincões usurpados. Não havia, pois, uma verdadeira Política nacional, à altura da organização do País no sentido da prosperidade comum.
O distanciamento entre Estado e Nação se refletiria, no plano econômico, na alienação, ao estrangeiro, das bases materiais do país, como as riquezas naturais, as finanças, a produção, o comércio e os serviços fundamentais. Torres foi um dos primeiros a evidenciar o caráter neocolonial da economia brasileira, voltada para o atendimento dos interesses exteriores e não das demandas internas. A história econômica do Brasil, como a dos demais povos sul-americanos, seria o prolongamento da exploração colonial das riquezas aqui existentes. O Brasil não possuiria, propriamente, uma comunidade econômica nacional, pois as principais atividades aqui executadas, quase completamente nas mãos de estrangeiros, usaria nosso País como simples reserva de extração de matérias-primas e de rendas, sem qualquer preocupação em preservar nosso ambiente físico e proteger nosso povo.
Em suas palavras: “Toda a nossa fictícia circulação econômica é obra, assim, de uma federação de feitorias, que, desde as vendas do interior até as casas de importação e de exportação, as estradas de ferro, as fábricas, o comércio intermediário e os bancos — em mãos, quase totalmente, de estrangeiros — não fazem senão remeter para o exterior, em produtos, lucros comerciais, industriais e bancários, rendas de várias naturezas, a quase totalidade dos frutos da nossa terra” (PNB, p. 18-19).
Em particular, o abuso extrativista da terra, “base da vida social, fonte de sua prosperidade e desenvolvimento” (PNB, p. 31), pelos estrangeiros, removeria o fundamento natural da existência e da subsistência nacionais. O desperdício da terra e a remessa dos seus frutos para o além-mar privaria os brasileiros do seu chão, do seu alimento e dos demais gêneros primários indispensáveis ao bem-estar comum.
Assim como Euclides da Cunha, Alberto Torres vê, na geografia, a condição material de reprodução da sociedade e das relações morais e culturais a ela subjacentes. A falta de soberania sobre o próprio solo condenaria o povo brasileiro a ser pária em sua própria terra e resultaria na dilapidação e desorganização de todo o edifício econômico nativo, bem como em um permanente endividamento externo para cobrir o prejuízo ocasionado pelo desequilíbrio comercial gerado em tais circunstâncias.
Não se poderia depreender dessa posição torreana, como por vezes foi feito, uma suposta defesa da “vocação agrícola” brasileira. Pelo contrário, Torres ensinou que a libertação da condição primário-exportadora e colonial da economia brasileira somente poderia se dar pela plena soberania nacional do solo e dos frutos da terra, de modo que o Brasil pudesse agregar valor às suas riquezas naturais e crescesse e se expandisse para dentro, de forma autônoma aos centros comerciais e financeiros mundiais. Situação muito diferente da que Torres presenciava, de desvalorização da terra e do homem brasileiros em prol do atendimento dos interesses estrangeiros.
Nas circunstâncias vigentes, a estratificação social interna seria composta, basicamente, de três grupos: o superior, representado por grandes comerciantes, profissionais liberais de relevo, banqueiros e capitalistas, todos “colaboradores do estrangeiro, no esgoto das riquezas e no êxodo de capitais” (PNB, p. 124); o intermediário, formado pelas camadas intelectuais e políticas, que legitimariam a dominação do grupo superior pela importação de ideias alheias à nacionalidade e seus interesses; e o inferior, em que se localizava a grande massa da população, explorada e degradada pela ação parasitária do capital estrangeiro e esquecida pelas classes cultas e/ou dirigentes brasileiras.
Na prática, porém, esses três grupos seriam simplificados em dois, pois o intermediário não teria uma existência em si mesmo, apenas como funcionário do grupo superior e defensor, consciente ou não, dos interesses daquele. Como afirma Torres: “os brasileiros ficaram divididos em duas sociedades sem liga e sem solidariedade: os que exploram o patrimônio nacional à guisa dos estrangeiros, e a multidão que trabalha para não morrer, ou que se vai deixando extinguir, porque não tem onde, nem como, trabalhar” (PNB, p. 117).
Se o quadro nacional desenhado por Torres é atualíssimo e reflete, muito precisamente, os descaminhos do Brasil de um século após, não menos atuais são as propostas que ele define para combater esses problemas.
Ele aponta a necessidade de organização de um governo forte e iliberal – mas não arbitrário -, dotado de unidade de propósitos e de meios institucionais sólidos para imprimir uma direção e uma coordenação a toda a sociedade e em todos os cantos do País, intervindo onde fosse necessário para proteger e apoiar os nacionais naquilo que fosse de interesse coletivo.
Para isso, propõe, na Seção Terceira do livro A Organização Nacional, uma nova Constituição, em substituição a de 1891, que ele considerava imprópria à realidade brasileira pelo seu federalismo, considerado por Torres fragmentador do poder nacional e enfraquecedor do Executivo federal. Recusou, também, o nome oficial Estados Unidos do Brasil, por ser imitação do United States of America, recomendando que os estados passassem a se chamar “províncias autônomas”.
Nessa nova Carta Magna, constava a criação de um Poder Coordenador, a ser exercido por um Conselho Nacional vitalício, que enfeixasse todos os aparelhos do sistema político e todas as unidades federativas com o fito de defender a soberania nacional, intervir nas províncias que porventura se mostrassem incapazes de cumprir os ditames constitucionais, “promover a defesa do solo e das riquezas naturais do país”, fazer a política econômica para impedir a drenagem indevida de recursos para o exterior e a ação de trustes e monopólios, “promover a defesa da saúde, do bem-estar, da educação e cultura de toda a população do país”, examinar e regular concessões de terras e de serviços públicos, bem como a organização do crédito, e intervir nas relações entre o capital e o trabalho para garantir a harmonia e a justiça distributiva. Também constava a criação do Instituto do Estudo dos Problemas Nacionais, “para fazer o estudo dos problemas políticos da terra e da nacionalidade brasileira, de seus habitantes e de sua sociedade”.
Torres também propugnou uma “rigorosa economia, exata e produtiva aplicação dos dinheiros públicos, percebidos por meio de regimes tributários parcimoniosos e equitativos”, a “máxima cautela no uso do crédito exterior” e a “restrição rigorosa da atividade econômica de estrangeiros no País”, além de uma política internacional abertamente pacifista, “sem nenhuma preocupação de influência ou hegemonia”, e a defesa militar[4].
Enquanto governador do Rio de Janeiro, colocou em prática a linha nacionalista e defesa dos interesses sociais que propunha em seus livros. Com apoio apenas de créditos internos, repelindo, assim, o endividamento externo, ele promoveu significativas obras de infraestrutura como o saneamento da Baixada Fluminense, a construção do canal de Macaé a Campos e do canal de São Bento, em Campos. Também distribuiu terras e crédito a pequenos camponeses nativos em Barra do Piraí. Vale mencionar, ainda, a criação de um Ginásio Estadual, em Petrópolis, e a aquisição e distribuição gratuita de livros escolares a professores e estudantes.
Alberto Torres foi, portanto, um dos luminares do pensamento nacionalista brasileiro. A atualidade das suas denúncias e propostas, sobretudo em tempos de radicalização do desmonte da organização nacional arquitetada entre 1930 e 1980, torna a sua obra referência obrigatória para pensar e planejar o Brasil soberano, desenvolvido e generoso.
Referências:
A Organização Nacional – Alberto Torres. Disponível em: https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/torresc.pdf
O Problema Nacional Brasileiro – Alberto Torres. Disponível em: http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Alberto%20Torres-1.pdf
Presença de Alberto Torres: sua vida e pensamento (1968) – Barbosa Lima Sobrinho
Instituições Políticas Brasileiras (1949, vol. II, cap. III) – Oliveira Vianna
[1] Para as referências nesse artigo, utiliza-se a sigla PNB e a edição disponível no seguinte endereço: http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Alberto%20Torres-1.pdf
[2] Para as referências desse artigo, utiliza-se a sigla ON e a edição disponível no seguinte endereço: https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/torresc.pdf
[3] VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. II vol. São Paulo: José Olympio, 1949. p. 91
[4] Esses pontos, apresentados em artigo no Estado de São Paulo de 22-12-1915, são transcritos por Barbosa Lima Sobrinho em seu livro Presença de Alberto Torres (1968), p. 397.