A China, as Olimpíadas e a Geopolítica

*Diego Pautasso e Isis Paris Maia

Não é difícil compreender o entrelaçamento entre os esportes e as relações internacionais[1]. No caso em questão, as Olimpíadas têm sido atravessadas pela história do poder global desde que o Barão de Coubertin criou sua versão moderna, em 1896.  Em 1920, a Alemanha foi impedida de disputar os Jogos da Antuérpia, na Bélgica, logo depois da 1ª Guerra Mundial; em 1936, Hitler tentou usar o evento para sustentar uma suposta supremacia do homem ariano; em 1948, a Inglaterra usou seu evento em Londres para celebrar sua vitória na 2ª Guerra e prestigiar combatentes amputados com a inauguração dos Jogos Paralímpicos;  entre 1964 e 1988, a África do Sul sofreu boicote devido ao apartheid; durante toda a Guerra Fria, a competição expressou a rivalidade entre campos socialista e capitalista, inclusive com boicotes nos jogos de Moscou (1980) e de Los Angeles (1984); e, evidentemente, é sempre uma demonstração de soft power do país sede – promovendo sua imagem, poder financeiro, capacidade de organização, qualidade das instalações, vanguardas tecnológicas, desempenho esportivo, etc.

Como o poder passa pela construção da imagem, não surpreende o desconhecimento ou invisibilização alguns dos esportes modernos que já tinham tido suas primeiras versões em outras civilizações não-ocidentais. Na China antiga apareceram formas rudimentares de futebol, golfe, polo, lutas e ginástica, quase sempre em conexão com o treinamento militar. Inclusive a FIFA identificou em 2004 a província de Shandong como o berço das primeiras manifestações de futebol, há cerca de 2.300 anos – e, pasmem, existe registro de equipe feminina de futebol desde 900 dC. Por razões de profundo etnocentrismo, a genealogia dos esportes é demasiado eurocentrada e, no caso das Olimpíadas, localizada na Grécia.

Em perspectiva histórica, uma visada no quadro de medalhas permite observar certa correlação entre poder global e desempenho esportivo. No quadro de medalhas, os EUA ainda mantêm a liderança, tendo alcançado 2553 medalhas, sendo 1022 de ouro, em 27 Jogos Olímpicos de Verão. As potências mundiais lideram o quadro, bem como foram sede da maioria dos Jogos. A China está na quarta posição, com 716 medalhas, sendo 212 de ouro, em apenas 10 participações. Chama a atenção o segundo lugar da extinta URSS, com 1010 medalhas, sendo 395 de ouro, em apenas 9 edições e o nono lugar da Alemanha Oriental, com 409 medalhas, sendo 153 de ouro, em apenas 5 edições. Registre-se: de uma maneira geral, os países socialistas deram grande ênfase ao desenvolvimento dos esportes.

O caso da China reflete suas dificuldades e isolamento internacional após a revolução, tendo ficado 7 edições sem participar. Ao mesmo tempo, expressa a acelerada escalada de desenvolvimento do país: estreia nos Jogos em 1932, com Liu Changchun, e, em 1984, retorna ao evento ocupando a 4ª posição, com um total de 32 medalhas, sendo 15 de ouro. Ficou em 3º em Sydney (2000), 2ª em Atenas (2004), 1º em Pequim (2008), 2º em Londres (2012), 3º no Rio de Janeiro e, agora, novamente no 2º em Tóquio (2020) – uma medalha de ouro (38) atrás dos EUA (39).

Esta trajetória da China tem, obviamente, relação direta com o desenvolvimento e o projeto nacional do país e suas políticas públicas para os esportes. Antes da década de 1980, o governo era responsável por financiar e supervisionar os assuntos e operações relacionados ao esporte planejado centralmente. Mesmo com as reformas e crescimento do mercado esportivo, a criação da Administração Geral do Esporte do Estado, em 1998, manteve amplo controle das operações centradas no governo. A SGAS está intimamente ligada à Federação Esportiva da China e ao Comitê Olímpico Chinês para executar planos de desenvolvimento do esporte a longo prazo. Nesse sentido, os Jogos Nacionais da China, ao estilo das Olimpíadas, é um evento enorme, em que cada província envia uma equipe para competir, permitindo preparar atletas de elite para as principais competições mundiais. Além disso, a Lei do Esporte da República Popular da China, em vigor desde 1º de outubro de 1995, tornou-se um documento para estabelecer tarefas e princípios fundamentais na gestão da indústria do esporte. Todas as políticas públicas para o esporte, ademais, se relacionam com a promoção da saúde e bem-estar.

Em 2008, com os Jogos de Pequim, a China percebeu como uma grande oportunidade de se colocar como país em rápida transformação e progresso. Como de praxe, buscou exibir sua imagem por meio de um evento primorosamente organizado, com instalações impactantes, como o Estádio Ninho do Pássaro e o Centro Aquático conhecido como Cubo de Água. Por seu turno, Washington tentou minar o soft power chinês politizando ao máximo o evento, insuflando boicotes por meio de personalidades e estimulando movimentos anti-chineses (como manifestações ‘Free Tibet’ no roteiro da tocha olímpica ou protestos relacionados ao conflito de Darfur).

Agora em 2022, quando Pequim sediará os Jogos Olímpicos de Inverno, as disputas tendem a escalar novamente. De um lado, a China pretende expor ao mundo seu desenvolvimento, seja com o vanguardismo técnico-financeiro do e-RMB (uma inédita cripto nacional), seja através de instalações sustentáveis voltadas a promover o bem-estar social. Além disso, objetiva utilizar o evento para estimular a prática de exercícios regulares e, com efeito, a saúde da população, assim como promover a indústria e os serviços relacionados ao esporte nacional para gerar mais US$ 770 bilhões até 2025. De outro, já há manifestações nos EUA e Reino Unido que buscam inflamar a opinião pública para boicotar os Jogos de 2022, sob alegação de violação de direitos humanos em Hong Kong e Xinjiang.

Enfim, é evidente que o crescimento da China nos esportes não está descolado da sua trajetória geoeconômica e geopolítica. A inquietação dos EUA com a crescente capacidade do país oriental se expressa em todos os âmbitos, inclusive nos esportes, como ficou claro novamente na competição em Tóquio. Contudo, ao divulgar o quadro de medalhas pelo número total, ao invés da tradicional contagem pelo número de ouro, como fez durante a maior parte do evento, só reflete a incapacidade de Washington para lidar com a irrefreável ascensão chinesa.

* Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política pela UFRGS e autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria.

** Isis Paris Maia é mestranda em Política Públicas pela UFRGS e historiadora.


[1] Ver Suppo (2012). Reflexões sobre o lugar do esporte nas relações internacionais. Contexto Internacional. 34 (2)

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