Amazônia: entre a soberania retórica e a efetiva

soberania da Amazônia

Na escalada para a reunião do G-7 realizada na França e nos seus desdobramentos, o tema da Amazônia brasileira se tornou central na agenda política nacional e mundial. Diante da progressão das queimadas na região, o Presidente da França, Emmanuel Macron, questionou o alcance da soberania do Brasil sobre o território em questão – por tratar-se, alegadamente, de “patrimônio universal” – e colocou o tema na agenda da reunião das principais potências ocidentais, sem qualquer contacto ou envolvimento dos países sul‑americanos.

Qualquer posição que busque minimizar ou relativizar a soberania dos países da Bacia Amazônica sobre os seus respectivos territórios é inaceitável, e merece o mais firme repúdio de todos (e não apenas dos povos e estados diretamente atingidos). O governo brasileiro acertou ao caracterizar tal postura como um resquício de mentalidade colonial, inaceitável em pleno Século 21. O princípio da soberania é inegociável e inalienável, e estrutura o sistema internacional moderno desde o fim das Guerras Religiosas na Europa no Século 16.

O princípio ordenador do sistema internacional é, precisamente, o reconhecimento mútuo da igualdade dos estados na jurisdição dos territórios que governam. Mas a realidade que caracteriza esse sistema é de profunda assimetria na distribuição de poder – tanto militar, quanto econômico e cultural – entre os estados que o compõem, embora considerados equivalentes do ponto de vista formal. Isto torna a defesa efetiva da soberania, sobretudo dos estados que não ocupam posições centrais de poder no sistema como o Brasil, um processo de construção política contínua. Torna igualmente imperativo a defesa da regulação multilateral e cooperativa do sistema internacional, como alternativa à simples imposição da “lei do mais forte” coberta de justificativas hipócritas ou senhoriais.

Fazer valer o monopólio coercitivo‑administrativo do poder estatal sobre o território sob sua jurisdição é a essência da soberania. Para tal, é necessário construir e preservar tanto a coesão política e social nacional, quanto a margem de autonomia da atuação do país em um sistema internacional conflitivo e instável. A cisão e polarização política internas, bem como o isolamento internacional, agravam as vulnerabilidades da nossa soberania, por mais que se façam proclamações em contrário. Neste quadro, a retórica patriótica se torna vazia, quando não cortina de fumaça para encobrir a associação a interesses externos alternativos igualmente lesivos à nossa soberania.

Há muito os posicionamentos das principais potências (tanto na Europa quanto nos Estados Unidos) em relação à Amazônia se pautam pelo interesse de reduzir controles e barreiras estatais à atuação das suas empresas na exploração das gigantescas riquezas da região (incluindo a sua magnífica biodiversidade). Há ainda o interesse de explorar o tema da devastação da Amazônia para justificar a imposição de barreiras não-tarifárias (em complemento aos pesados subsídios estatais fornecidos aos seus próprios agricultores) para tentar conter a competitividade global da agricultura brasileira, sob o falso argumento de que tal competividade se baseia em práticas predatórias generalizadas.

Por isso não há como deixar de apontar a natureza hipócrita da alegada preocupação dessas potências com a devastação ambiental na Amazônia, visto que esses mesmos países descumprem os compromissos multilaterais que assumiram com a mobilização mundial para conter o aquecimento global e defender o meio ambiente (incluindo a região amazônica) no âmbito do Acordo de Paris. Mas há que se reconhecer, igualmente, que a condução política dada ao tema pelo atual governo brasileiro, apesar de todo o seu fervor da sua retórica patriótica, fragilizou enormemente a defesa da nossa soberania na região.

O próprio Presidente estimulou práticas predatórias ilícitas na Amazônia ao vociferar contra a legislação vigente de proteção ambiental, e enfraquecer as políticas, órgãos e mecanismos responsáveis por averiguar e controlar o cumprimento dessa legislação e zelar pelo desenvolvimento sustentável da região (o que por si só já representa um enfraquecimento do monopólio coercitivo-administrativo do Estado brasileiro – e, portanto, da soberania nacional – na região).

Quando o sistema de monitoramento operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) – uma das joias da coroa do sistema nacional de Ciência e Tecnologia – apontou forte e acelerado crescimento de áreas desmatadas e focos de queimadas na Amazônia brasileira, o trabalho do instituto foi atacado por “estar a serviço de alguma ONG” e seu diretor acabou exonerado. Na sequência, o Presidente acusou as próprias ONG´s ambientais de realizarem queimadas ilegais na região para atacar politicamente o seu governo.

O caráter estapafúrdio e irresponsável dessas declarações, bem como os atos e consequências a elas associados, colocaram o tema da Amazônia no centro da agenda política mundial, reacendendo e fortalecendo posições que questionam ou relativizam a soberania dos países da Bacia Amazônica sobre os seus territórios na região. Para tal contribuiu, igualmente, a escalada de ataques verbais contra países europeus como a Noruega, a Alemanha e a França, além de agressões pessoais a seus dirigentes (com destaque para os comentários jocosos e ofensivos dirigidos à Primeira Dama francesa). O resultado para o País foi um isolamento internacional sem precedentes, ao qual o governo brasileiro respondeu negociando com o governo Trump condições especiais de acesso à Amazônia brasileira para empresas dos Estados Unidos, sobretudo na área da mineração.

Após meses de agravamento, apenas após o tema das queimadas na Amazônia assumir contornos de uma crise internacional, o governo brasileiro abandonou a postura negacionista e enviou as Forças Armadas para estruturar o combate às queimadas na região e às ações de desmatamento ilegal que as fomentam (uma ação efetiva, mas tardia, de afirmação da soberania brasileira no território em questão). A condução política irresponsável da questão pelo governo brasileiro, fixado em promover uma polarização político-ideológica artificial movido a retórica cada vez mais agressiva tanto dentro quanto fora do país, aumentou a nossa vulnerabilidade externa e enfraqueceu as defesas da nossa soberania, contrariando o interesse nacional tanto do ponto de vista material quanto simbólico.

Fica a lição no mês em que comemoramos os 197 anos da independência do Brasil.

Luís Fernandes
Diretor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio.

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