Mesmo cada vez mais dependente do mercado chinês, na medida em que o protecionismo avança nos Estados Unidos, a União Europeia decidiu seguir o exemplo do governo Biden que sobretaxou em 100% os veículos elétricos chineses. A despeito dos avisos da Alemanha, Suécia e Hungria de que tal medida poderia desencadear uma guerra comercial com Pequim, a União Europeia propôs uma sobretaxa de 17% a 38% sobre os carros chineses, além dos 10% que já cobrava antes. Os Estados Membros deverão votar no final de outubro a proposta, que deverá entrar em vigor em novembro.
Segundo o Financial Times (05/8/2024), “Valdis Dombrovskis, comissário europeu para o comércio, disse que os 27 países – que muitas vezes estão divididos em questões relacionadas à China – apoiariam medidas para ajudar a indústria automobilística doméstica a competir com as importações que, segundo ele, receberam grandes subsídios de Pequim.”
De acordo com a proposição, veículos de marcas europeias como Renault e Mercedes fabricados na China pagarão uma sobretaxa de 21% e os veículos da Tesla, made in China, terão uma taxa específica ainda não anunciada.
Conforme informou o Financial Times (12/6/2024), o governo chinês reagiu com indignação: “A Comissão Europeia politiza e arma as questões econômicas e comerciais”, disse o ministério. “A UE fabricou e exagerou nos chamados subsídios. Este é um ato protecionista descarado.” Ainda segundo o jornal, “as tarifas, defendidas pela França, irão arrecadar milhares de milhões de euros anualmente para o orçamento da UE, à medida em que as vendas de veículos elétricos chineses crescem na Europa.”
A China, o maior parceiro comercial do bloco, exportou 10 mil milhões de euros em carros eléctricos para a UE em 2023, segundo analistas do Rhodium Group.” Valdis Dombrovskis, o comissário de comércio da União Europeia, afirmou em entrevista para o FT que não havia outra opção porque os veículos chineses estão pondo a indústria europeia em risco. Segundo ele, a fatia de mercado ocupada pelos veículos elétricos chineses aumentou de 4%, em 2020, para 25%, em setembro de 2023.
No passado, para contornar as barreiras impostas pelos países em desenvolvimento, que lutavam para se industrializar, as empresas automobilísticas americanas e europeias construíram fábricas nesses países e a partir delas dominaram seus mercados internos. Isso aconteceu, por exemplo, no Brasil, cujo mercado foi totalmente dominado pelas montadoras americanas e europeias.
É provável que a China, para contornar as barreiras tarifárias da União Europeia, faça o mesmo, instalando suas montadores em território europeu, nomeadamente em países amigos da China, como a Sérvia e a Hungria. Segundo o FT (21/12/2023), a fabricante chinesa de carros elétricos e baterias BYD anunciou um investimento multibilionário para construir um nova fábrica que irá produzir carros elétricos e baterias em Szeged, no sul da Hungria.
Poderão, assim, contornar as barreiras tarifárias e continuar avançando sobre o mercado europeu, a não ser que a União Europeia faça o mesmo que fizeram os Estados Unidos e proíbam os investimentos chineses em seu território. Trata-se, contudo, de uma medida praticamente impossível de ser adotada, primeiro porque a China é o segundo mais importante parceiro comercial da União Europeia e está interessada em comércio e investimentos na China. Segundo porque cada um dos 27 países da União Europeia tem sua própria política de atração de investimento direto estrangeiro e há competição intensa entre eles para atrair novos investimentos, pois isso significa empregos e aumento de arrecadação.
Evidentemente não bastaria trazer montadoras chinesas para dentro das muralhas de fortaleza europeia, pois há regras de conteúdo local. Conforme destacou o Financial Times (05/08/2024),“Dombrovskis alertou que tais medidas só funcionariam se atendessem aos requisitos das regras de origem que determinam que um nível mínimo de valor deve ser criado na UE. Se necessário, acrescentaram as autoridades, eles também podem usar regras anti-evasão contra empresas que tentam evitar o pagamento do imposto fazendo operações básicas de montagem na UE ou em outros países.”
É pouco provável que as novas tarifas detenham o avanço dos carros elétricos chineses no mercado europeu, pois, como afirmou Bill Russo, ex-chefe da Chrysler na China e fundador da consultoria Automobility de Xangai, para o Financial Times (11/6), “Isso vai atrasá-los? Não. Se colocarmos esse tipo de tarifa no topo da estrutura de custos chinesa, ainda assim será melhor em termos de custos do que qualquer coisa que os fabricantes de automóveis europeus sejam atualmente capazes de fazer.”
A lei das vantagens comparativas, formulada pelo economista inglês David Ricardo, no século XIX, segundo a qual cada país deve especializar-se no que produz de forma mais eficiente e importar o resto só serve para os países em desenvolvimento. Quando se trata dos países ricos a lei que vale é a que lhes for mais conveniente no momento. Enquanto desfrutavam de inquestionável superioridade tecnológica na produção de manufaturas, os países ricos eram os maiores defensores do livre-comércio baseado nas vantagens comparativas de cada país, mas essa situação se inverteu, nomeadamente em relação à China. O discurso de que o livre-comércio beneficia a todos, pois permite uma alocação mais eficiente dos recursos produtivos, foi deixado de lado.
Para justificar as novas medidas protecionistas, os países ricos recorrem aos argumentos que melhor lhes convêm em cada situação. Em um primeiro momento acusam os concorrentes estrangeiros de comércio desleal, por estarem sendo beneficiados por subsídios de seus respectivos governos e em outro momento alegam questões de segurança nacional e defesa dos direitos humanos. Mas o objetivo é sempre o mesmo: proteger suas industrias que já não têm mais a superioridade tecnológica e a eficiência produtiva que tinham há algumas décadas.
Em artigo publicado em 17/12/2023, no site “Project Syndicate”, Laura Tyson, antiga presidente do Conselho de Consultores Econômicos do Presidente durante a administração Clinton, assim justifica a adesão dos países ricos, nomeadamente os Estados Unidos, às políticas industriais e protecionistas:
“Estes instrumentos são utilizados hoje em condições muito diferentes das de há 30 anos. A autossuficiência nacional – muitas vezes com objetivos mercantilistas – foi o objetivo da política industrial no passado. Agora, como resultado da ascensão de cadeias de abastecimento globais complexas e da emergência da China como um formidável concorrente geopolítico e econômico, a soberania nacional, entendida como uma capacidade interna verticalmente integrada por empresas de propriedade nacional em sectores específicos, é simplesmente inviável. Em vez disso, a nova política industrial para o século XXI deve ter em conta as novas realidades globais, centrando-se em dois objetivos: assegurar um fornecimento adequado e competitivo dos produtos e tecnologias necessários para alcançar a prosperidade econômica e a segurança; e assegurar uma posição no desenvolvimento e implantação das tecnologias da próxima geração que se espera que sejam essenciais tanto para a segurança nacional como para a transição para uma economia neutra em carbono. Dado que um sistema de abastecimento nacional totalmente integrado verticalmente é uma fantasia, estes objetivos exigem que os EUA e outras economias avançadas utilizem a política industrial para alcançar posições significativas de alavancagem nos mercados para produtos e tecnologias específicos de importância econômica e geopolítica estratégica.”