Regulação da inteligência artificial está sob pressão do calendário eleitoral

    Artigo publicado na coluna Fábrica de Leis, na página Consultor Jurídico, em 15 de fevereiro de 2024.

    Um dos grandes temas da agenda legislativa em 2024 será a regulamentação da inteligência artificial.

    Um primeiro esforço de racionalização do debate veio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que instituiu uma comissão de juristas para subsidiar a elaboração de minuta de substitutivo aos projetos de lei sobre a matéria em tramitação na Casa com o objetivo estabelecer princípios, regras, diretrizes e fundamentos para regular o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil.

    Criada em 17/2/2022 e presidida pelo ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cuevas, a comissão iniciou seus trabalhos em 30/3/2022 e concluiu-os em 5/12/2022, com a entrega de relatório, com 902 páginas, que ofereceu minuta de substitutivo aos PLs 5.051/2019 (senador Styvenson Valentim, Podemos-RN), 21/2020 (originário da Câmara dos Deputados) e 872/2021 (senador Veneziano Vital do Rêgo, MDB-PB).

    Nos pouco mais de oito meses de funcionamento, a comissão promoveu um seminário internacional, quatro audiências públicas e 12 painéis para discutir os eixos temáticos do projeto: conceitos, compreensão e classificação de inteligência artificial; impactos da inteligência artificial; direitos e deveres; accountability (prestação de contas), governança e fiscalização.

    O trabalho resultou no PL 2.338/2023, de autoria de Pacheco, composta por 45 artigos.

    Para acelerar a tramitação do projeto, Pacheco apresentou requerimento para a criação da Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil (CTIA), composta por 13 senadores titulares e 13 suplentes, para em 120 dias examinar os projetos concernentes ao relatório final aprovado pela comissão de juristas e eventuais novos projetos na matéria.

    Instalada em 16/8/2023, o seu prazo final, vencido em 14/12/2023, foi prorrogado para 23/5/2023.

    Na abertura do ano legislativo, o presidente do Senado disse que o projeto será aprovado até abril para que a lei regule as eleições deste ano. Essa afirmação preocupou estudiosos.

    Na Europa, o debate multissetorial estendeu-se por três anos. A justificativa do presidente do Senado para a pressa em legislar a matéria é compartilhada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, para quem, sem a regulamentação, a IA poderá distorcer o processo eleitoral.

    O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Alexandre de Moraes, concorda. Tratou do tema na abertura do ano judiciário e ato contínuo publicou minuta de regulação já para as eleições municipais, com sanções duras para o uso indevido da IA, prevendo cassação do registro e, se eleito o candidato infrator, cassação do mandato.

    A busca da regulamentação integral da IA em tão curto espaço de tempo para atender uma demanda pontual, por importante que seja (regular as próximas eleições municipais) carrega o risco de produção legislativa defeituosa em matéria não apenas sensível, mas de difícil e complexa regulação.

    A lei, todos sabemos, é marcada pela generalidade e abstração. A IA, todavia, é matéria a exigir regulação que considere as particularidades de cada setor da vida social e econômica.

    Por zelosos que tenham sido os juristas da comissão especializada cujo trabalho deu à luz o texto apresentado pelo presidente do Senado no PL 2.338/2023, é difícil crer que haja coberto por completo a miríade de situações da vida que se apresentam cotidianamente em tsunami no albor deste admirável e perigoso mundo novo de máquinas que aprendem conosco e com elas próprias.

    Excesso

    O projeto surgido da comissão por vezes peca pelo excesso.

    Tão perigoso quanto lacunas regulatórias (subregulação) é a hiper-regulação, cujos efeitos nocivos resultam em inibição da inovação, maiores custos econômicos, altas barreiras de entrada e ineficiência. Ou seja, hiper-regulação pode acabar representando um obstáculo ao nosso desenvolvimento.

    A hiper-regulação é consequência de uma perspectiva regulatória acentuadamente prescritiva. Lancemos mão de um exemplo, o da explicabilidade, que é o direito da sociedade e do titular de dados à explicação, a receber informações suficientes e inteligíveis para entender a lógica, a forma e os critérios dos processos autonomizados.

    Trata-se de princípio fundamental para incrementar a responsabilidade e prestação de contas, melhorar a confiança do usuário, permitir a revisão judicial assecuratória de direitos e garantias, facilitar o controle da conformidade regulatória dos sistemas.

    Todavia, dizem os especialistas, se excessiva e desproporcionalmente prestigiada, a explicabilidade poderá induzir baixo desempenho das aplicações de IA generativa, como o ChatGPT, que faz uso de modelos de modelos de aprendizagem profunda (deep learning).

    Projeto de lei

    O PL 2338/2023 está em discussão na CTIA, presidida pelo senador Carlos Viana (Podemos-MG), tendo Eduardo Gomes (PL-TO) como relator e Marcos Pontes (PL-SP) como vice-presidente.

    O debate exigirá grande esforço de criatividade legislativa. Aspectos críticos terão que ser objeto de arbitramento parlamentar, como, por exemplo, compatibilizar o arcabouço regulatório da IA com o estímulo à inovação e a proteção da propriedade industrial.

    Para ficar apenas num exemplo, o substitutivo apresentado pelo senador Marcos Pontes estabelece a obrigação de que toda entidade, seja pública ou privada, que se lance a desenvolver sistemas de IA classificados como de alto risco, notifique a autoridade competente do governo federal no início do seu desenvolvimento, descrevendo detalhadamente o projeto, no mínimo, quanto ao objetivo e aplicação pretendida do sistema de IA,  a arquitetura do sistema (incluindo algoritmos, modelos de aprendizado de máquina e abordagens de processamento de dados), fontes de dados e métodos de coleta de dados utilizados, como também revele as estratégias de teste, validação e implementação do sistema.

    Especialistas apontam que tal nível de exigência — abstraiamos considerações a respeito de sua eventual inevitabilidade — conflita com a propriedade industrial, que desenvolvedores de tecnologias de alto impacto podem não se sentir dispostos a compartilhar com o governo brasileiro, se houver países que não imponham tal compartilhamento.

    A novidade e complexidade da matéria exige amplitude e profundidade do debate legislativo. Ou seja, tempo.

    Resta saber se haverá tempo, vale dizer, se as eleições municipais realmente precisam ser realizadas sob o ambiente jurídico da ampla e completa regulamentação da inteligência artificial (o que determinará a produção apressada da norma legal) ou se a legislação civil e penal, bem assim as resoluções do TSE, já seriam suficientes, permitindo que o debate legislativo siga o seu curso normal e possa acolher as contribuições dos diversos segmentos sociais e econômicos diretamente e indiretamente afetados em favor de uma lei com a qualidade técnica e a legitimidade social que a matéria reclama.

    Amplitude do poder da Justiça Eleitoral

    Claro que isso remete a outro tema espinhoso, o da amplitude do poder regulamentar da Justiça Eleitoral, não previsto taxativamente na Constituição de 1988, mas por ela recepcionada, como defendem alguns autores.

    O poder regulamentar eleitoral se expressa por meio de resoluções, cujo objetivo primordial é o de regulamentar, organizar e executar as eleições na forma, tempo e modo fixados em lei.

    Embora inferiores hierarquicamente à lei, as resoluções eleitorais possuem eficácia geral e abstrata (“força de lei”), mas não podem desbordar da função regulamentar (secundum legem) ou de suprir lacunas (praeter legem), sob pena de inovar em matéria reservada à lei ou contrariá-la (contra legem), incorrendo em vícios corrigíveis pelo controle de legalidade ou de constitucionalidade, como já firmou entendimento o Supremo Tribunal Federal.

    Alea jacta est.

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    Samuel Gomes, advogado e professor, mestre em Filosofia do Direito, Consultor em Poder Legislativo, Relações Governamentais e Negócios Internacionais.

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