Reforma Tributária: a saga continua

    Depois de aprovada na Câmara dos Deputados, em 07 de julho, a proposta de reforma tributária seguiu para análise e votação no Senado. Caso haja mudanças, voltará para nova análise e votação na Câmara, o que é bastante provável. De acordo com a proposta de emenda constitucional (PEC 45/19), três tributos federais (Cofins, IPI, PIS ) foram transformados em único tributo: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e dois impostos estaduais e municipais (ICMS e ISS) foram transformados também em único imposto: Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Juntos, esses tributos arrecadaram 12,5% do PIB no período 2017-2021, sendo 4,6% do PIB de tributos federais e 7,8% do PIB de tributos subnacionais, cerca de 38% de tudo o que foi recolhido naqueles anos.

    Outra mudança importante aprovada na Câmara foi a do local de cobrança do imposto. Ao contrário do atual ICMS, cuja cobrança se dá no local de origem, ou seja, no local de fabricação do produto, o IBS será cobrado no local de destino da mercadoria, ou seja, no lugar em que o produto for vendido. Isso, contudo, não irá ocorrer imediatamente, devido ao elevado impacto redistributivo entre os estados da federação, o que foi, até hoje, a principal causa de a mudança ainda não ter sido aprovada, apesar da irracionalidade econômica da sistemática atual. Para acomodar esses impactos, diluindo-os ao longo do tempo, foi fixado um prazo de transição de 50 anos (2028-2078), quando então a arrecadação do IBS passará a ser destinada integralmente ao estado onde a mercadoria for vendida.

    O prazo de transição para que os atuais impostos sejam definitivamente substituídos pelos novos tributos é mais curto. Os impostos e contribuições federais (Cofins, IPI, PIS) deixarão de existir no prazo de três anos, a partir de 2026, ou seja 2026-2027, quando serão substituídos definitivamente pelo CBS. Os impostos estaduais e municipais terão um período de transição de quatro anos, a partir de 2029, ou seja, 2029-2033, quando serão substituídos totalmente pelo IBS.

    De acordo com estudo realizado pelo economista Sérgio Gobetti, do IPEA, estas mudanças trarão benefícios para a maioria dos estados e municípios da federação, uma vez que mesmo aqueles estados e municípios que produzem pouco se beneficiarão com arrecadação decorrente do consumo local de mercadorias. De acordo com a nova sistemática de cobrança e distribuição aprovada, os únicos que poderão sair perdendo serão os estados e municípios com produção elevada, mas com pequena população e, portanto, baixo consumo. Os demais, de forma geral, sairão ganhando. De acordo com o estudo, se não houver mudanças substanciais, 60% dos Estados e 82% dos municípios sairão ganhando receita. O principal motivo para o ganho de arrecadação em 78% de todas as unidades da federação é a aplicação da cobrança do tributo sobre o consumo no destino da transação e não mais na origem, como ocorre atualmente.

    Segundo matéria publicada pelo jornal Valor Econômico (05/09), “Além de São Paulo, estão na lista dos Estados “perdedores” Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Roraima. Goiás, cujo governador Ronaldo Caiado é um dos maiores críticos da reforma, teria um ligeiro ganho, estimado pelo estudo em R$ 808 milhões. Além disso, a reforma deve reduzir bastante a desigualdade dentro do Estado: a diferença de receita per capita entre a cidade mais rica do Estado (Alto Horizonte) e a mais pobre (Santo Antônio do Descoberto) chega a 127 vezes. Com a reforma, cairá para quatro vezes. Outro exemplo de diminuição da desigualdade ocorre em São Paulo, onde a diferença de arrecadação por habitante entre Paulínia e Francisco Morato, o município mais rico e o mais pobre de São Paulo por esse critério, respectivamente, vai passar de 37,3 vezes para 6,3 vezes.”

    Embora a aprovação da PEC 45/19,  pela Câmara de Deputados, seja um fato histórico, dado que o tema estava em discussão há pelos menos 40 anos, desde meados da década de 1980, sem que se chegasse a um consenso, a sua aprovação, em julho passado, pela Câmara dos Deputados está longe de ter sido consensual. Do lado dos contribuintes, muitos setores e empresas que atualmente se beneficiam de muitas isenções, que foram se acumulando ao longo dos anos, no caótico sistema tributário atual, lutaram na Câmara e continuarão a lutar no Senado para manter ou ampliar seus privilégios, ou, no caso do setor de serviços, para não ter sua carga tributária aumentada.

    O projeto aprovado já incorporou um grande número de isenções e benefícios a diversos setores, nomeadamente para o agronegócio, o que projeta uma alíquota de 27% para o novo imposto, uma vez que não existe almoço grátis: o que uns deixarem de pagar será cobrado dos outros. No Senado, o lobby continuará ativo, seja para ampliar as isenções já concedias, seja para incorporar novos beneficiários. A OAB por exemplo defende que os advogados paguem uma tarifa mais baixa do IBS. Obviamente, outras categorias encontrão motivos mais do que justos para justificar por que devem pagar um imposto menor. Como já dizia Russel Billiu Long, senador americano especialista em legislação tributária: “Tax reform means: don’t tax you, don’t tax me, tax that fellow behind the tree” (em tradução livre: Reforma tributária significa: não cobre impostos de você, nem de mim; cobre daquele sujeito atrás da árvore).

    Da parte dos entes federados, a reforma aprovada na Câmara também está longe do consenso, o que fará com que os descontentes pressionem o Senado para fazer prevalecer sua opinião. E há desde os que simplesmente não desejam reforma alguma, como o governador Ronaldo Caiado, de Goiás, até os que divergem sobre aspectos específicos da reforma. De forma geral, as discordâncias por parte dos estados e municípios podem ser classificas em quatro categorias: discordâncias a respeito da governança do Conselho Tributário que segundo a lei aprovada na Câmara deverá receber o IBS e redistribui-lo entre estados e municípios de acordo com as regras de transição aprovadas, o alcance do Imposto Seletivo, as alíquotas diferenciadas por setores e o prazo de transição, conforme afirma Adriana Fernandes em reportagem especial para o Estadão (06/09).

    “O impasse em torno do Imposto Seletivo tem crescido, com setores importantes, como de energia e telecomunicações, cobrando mais segurança jurídica para não serem taxados no futuro. No passado recente, impostos que nasceram para serem regulatórios se tornaram arrecadatórios. O temor é que isso volte a acontecer com o também chamado “imposto do pecado”, afirma Fernandes.

    Em relação ao prazo de transição – os 50 anos acima mencionados –, estranhamente, o estado que, em tese, seria o mais prejudicado pela mudança de sistemática de arrecadação da origem para o destino é que mais se opõe a um prazo de transição tão longo e defende seu encurtamento para apenas 10 anos.

    Conforme verbalizou o atual secretário da Fazenda do Estado, Samuel Kinoshita, o raciocínio é simples: com o fim da guerra fiscal entre os estados, que será uma das mais importantes consequências da reforma tributária assim que for concluída, o Estado de São Paulo, que ao longo das últimas décadas, perdeu centenas de investimentos para outros estados por causa da guerra fiscal, voltará a recebe-los novamente. Afinal, segue o raciocínio, muitas empresas optaram por investir em outros estados, apesar de São Paulo ter o maior mercado consumidor, a melhor rede de serviços às empresas, a melhor rede de serviços pessoais para os executivos das empresas e seus empregados, a melhor infraestrutura de distribuição, a maior oferta de mão de obra de especializada, a maior concentração de centros de pesquisa, dentre outras vantagens, porque foram atraídas para outros estados por benefícios fiscais irresistíveis, tipo cobrança zero de ICMS. Com o fim da guerra fiscal, segue o raciocínio, esses investimentos tenderiam a voltar para São Paulo.

    A questão não é tão simples, uma vez que o Brasil de hoje não é o mesmo de 30 anos atrás, quando o então governador de São Paulo, Mário Covas, irritava-se com a perda de empresas para outros estados por causa da guerra fiscal. Hoje, há diversos estados com alta capacidade de atração de indústrias por outras razões como, por exemplo, a proximidade com as fontes de insumos, matérias-primas e consumidores, como é o caso de Mato Grosso, cujo dinâmico setor agrícola vem atraindo investimentos de toda a cadeia produtiva da agroindústria. Por outro lado, a reforma tributária não impedirá que os estados e municípios continuem a oferecer vantagens para atrair empresas, só que, ao invés de custear essas vantagens subtraindo arrecadação de São Paulo, terão que tirar o dinheiro de seu próprio orçamento.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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