Quebra do SBV e do Credit Suisse revela que segurança dos bancos depende de garantias do Estado

    A falência, em março, de dois bancos norte-americanos – o Silicon Valley Bank (SVB), da Califórnia, e o Signature Bank, de Nova Iorque – e a operação de resgate do Credit Suisse por meio da sua aquisição pelo UBS, acenderam os sinais de alerta no sistema financeiro mundial. Estaria o mundo na antessala de uma nova crise financeira global como a que abalou o mundo em 2008? Não há indícios, até o momento, de que isso possa ocorrer, mesmo porque, pelo menos no caso do SVB, a falência não se deveu ao fato de o banco ter feito apostas em títulos da dívida de devedores duvidosos – os chamados “sub-primes” –  como ocorreu em 2008 – mas, ao contrário, nos papéis mais seguros do mundo: os títulos do Tesouro Americano. Desta vez, o vilão da história parece ter sido a elevação das taxas de juros pelo Banco Central dos Estados Unidos, o FED.

    Os bancos são instituições que, dentre outras coisas, realizam a chamada intermediação financeira, ou seja, captam recursos dos depositantes a curto prazo para emprestá-los para quem necessite de recursos a mais longo prazo para adquirir um imóvel, um bem de consumo durável ou realizar um investimento. Os bancos são também instituições capazes de criar dinheiro – a chamada moeda escritural – por meio desse mesmo sistema de empréstimos. Cientes de que nem todos os depositantes irão retirar seu dinheiro ao mesmo tempo, os bancos mantêm em caixa ou em depósitos no Banco Central apenas uma fração dos depósitos à vista que recebem e emprestam a diferença.

    Quanto menor a fração dos depósitos à vista mantidos em caixa ou em depósitos no BC, maior será o chamado multiplicador bancário, ou seja, a quantidade de moeda escritural que o banco será capaz de criar pelo sistema de empréstimos.  Por exemplo, se um banco receber um depósito de R$ 100 e mantiver apenas R$ 20 no caixa, emprestando os outros R$ 80, depois de sucessivas rodadas em que o dinheiro for emprestado, retornar ao banco na forma de novo depósito e for emprestado novamente, sempre mantida essa proporção de 20%, será criado ao fim um volume total de empréstimos e, portanto, de moeda escritural, de R$ 500.

    É por essa razão que os bancos centrais, quando querem realizar um aperto monetário, ou seja, tirar dinheiro de circulação, além de elevar os juros também elevam os depósitos compulsórios dos bancos comerciais no Banco Central, diminuindo, assim, a capacidade dos bancos de criar dinheiro.

    Essas duas características dos bancos – captar dinheiro à vista e emprestar a prazo e criar dinheiro por meio do sistema de crédito – tornam os bancos naturalmente expostos a crises. Se todos os depositantes de um banco resolvessem sacar seu dinheiro simultaneamente, qualquer banco do mundo, por mais bem administrado que fosse, faliria. O que impede que isso ocorra são, em primeiro lugar, a confiança que os depositantes têm na instituição financeira onde mantêm seu dinheiro e, não menos relevante, as garantias que os governos oferecem para os depósitos até um determinando valor (no caso dos Estados Unidos, US$ 250 mil).

    Também contribuem para dar maior estabilidade ao sistema as diversas medidas prudenciais estabelecidas pelos governos e bancos centrais em nível nacional e internacional, sendo a mais relevante delas a exigência de que um determinado percentual do dinheiro emprestado pelo banco seja garantido pelo capital próprio dos acionistas do banco. Conforme estipulado pelo acordo de Basiléia III, estabelecido em 2009, para dar maior estabilidade ao sistema financeiro global depois da crise de 2008, esse percentual é 7%. Ou seja, pelo menos 7% dos depósitos têm quer estar garantidos pelo capital próprio dos acionistas do banco. Essas medidas visam reduzir o “risco moral” sempre presente no negócio bancário, pois se o banqueiro não correr nenhum risco com o capital próprio, poderá agir de forma imprudente aumentando o risco dos depositantes.

    Tudo indica que a falência do SVB e do Credit Suisse sejam casos isolados, que por razões diferentes experimentaram uma corrida de seus depositantes para sacar seus depósitos, levando-os à insolvência. Mas o fato de a corrida dos correntistas para sacar o dinheiro ter ocorrido logo depois de os acionistas não terem aceitado realizar novo aporte de capital para equilibrar o descasamento entre ativos e passivos dos bancos não é coincidência e apenas confirma que a corrente sempre quebra em seu elo mais fraco. Ou seja, todas as crises começam a partir de eventos discretos – como a quebra do Leman Brothers, em 2008 – que acabam se tornando sistêmicas na medida em que o pânico se espalha.

    Um fato importante a destacar no caso do SVB e do Credit Suisse é o papel das redes sociais. Em ambos os casos, a negativa dos acionistas em fazer novos aportes de capital gerou alguns comentários nas redes sociais de que os bancos “estavam quebrados”. Tais comentários se espalharam rapidamente, tornando-se uma profecia autorrealizável, uma vez que, como sabemos, todos os bancos trabalham alavancados e nenhum banco, por mais sólido que seja, resistiria a uma corrida generalizada de seus correntistas para sacar seus fundos ali depositados e/ou aplicados.

    Mas para além desse efeito dos “memes” há um substrato real na crise dos dois bancos que representa um risco para o sistema financeiro como um todo. O primeiro fato a destacar é a elevação na taxa de juros que foi promovida pelo Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, nos últimos meses. No caso do SVB, por exemplo, de acordo com o noticiário da imprensa, o banco havia feito grandes investimentos em títulos do Tesouro dos Estados Unidos e isso foi uma das causas imediatas de sua ruína. Expliquemos. Se, como informa a imprensa, o SVB havia comprado grande quantidade de títulos do Tesouro americano na fase em que os juros eram mais baixos, seria inevitável que ele teria grandes prejuízos se tivesse que vender uma grande quantidade de títulos para fazer caixa e atender a demanda dos clientes em um momento em que os juros estavam mais altos.

    Como explica Celso Ming no Estadão (15/03), “É fácil entender por que o Treasury pode se desvalorizar e deixar um grande banco na pior, como aconteceu. Se os juros sobem rapidamente, os detentores de títulos não conseguem revendê-los no mercado pelo mesmo preço de face. Numa conta sem rigor aritmético, um Treasury de US$ 1 mil que paga juros de 2% ao ano rende US$ 20 ao ano. Se os juros sobem para 5% ao ano, o novo Treasury paga US$ 50 ao ano. Para render os mesmos US$ 50, o título de US$ 1 mil com juros contratuais de 2% ao ano tem de ser negociado no mercado a US$ 953. No caso do Silicon Valley, os correntistas correram aos saques – o banco teve de vender seus ativos a preços mais baixos e, de uma hora para outra, ficou sem caixa”. Segundo informou a imprensa (NYT 13/03), para tentar levantar os US$ 2 bilhões, o banco foi forçado a vender uma carteira de títulos com prejuízo de US$ 1,8 bilhão.

    O segundo fato a destacar está relacionado com o relaxamento das regras prudenciais. A crise de 2008 foi facilitada pelo relaxamento das regras prudenciais estabelecidas nos Estados Unidos pelo governo Roosevelt depois da crise de 1929 – a Lei Glass-Steagall, que separou os bancos comerciais dos bancos de investimento e criou a Federal Deposit Insurance Corporation. Tal relaxamento permitiu aos bancos realizar as estripulias financeiras que desaguaram na crise de 2008. Conforme destaca Belluzzo, “Os grandes conglomerados financeiros buscaram escapar das regras prudenciais, promovendo o processo de alavancagem para impulsionar a inflação de ativos. Tais estripulias encontraram seu destino na crise de 2007/2008. Esse episódio de euforia global e alavancagem excessiva também terminaria em um crash espetacular não fossem as intervenções de última instância dos bancos centrais”.

    Em 2010, o Dodd–Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act foi aprovado, no governo Obama, com o objetivo de evitar a assunção excessiva de riscos que levou à crise financeira de 2008. Mas em 2016, já no governo Trump, muitas das medidas foram novamente relaxadas. Como lembra Joseph Stiglitz, prêmio Novel de economia, “[Jerome] Powell [atual presidente do FED], que fez parte da equipe reguladora do ex-presidente Donald Trump e trabalhou para enfraquecer os regulamentos bancários Dodd-Frank promulgados após o colapso financeiro de 2008, a fim de libertar os bancos “menores” dos padrões aplicados aos bancos maiores e sistemicamente importantes”. Foi graças a esse relaxamento que o SVB pôde, por exemplo, evadir-se do teste de estresse que teria mostrado a fragilidade do banco no caso de uma elevação substancial dos juros, como de fato ocorreu.

    A verdade é que os bancos estão o tempo todo procurando encontrar formas de driblar as regulações financeiras com o objetivo de criar novos produtos que permitam obter o máximo retorno com o máximo de liquidez, o que torna o sistema financeiro inerentemente propenso ao risco e à instabilidade. E quanto maior a profundidade do sistema, ou seja, quanto mais as operações no lado real da economia são intermediadas pelo sistema de crédito, e sua amplitude, ou seja, a quantidade de produtos financeiros disponíveis para as famílias alocarem sua riqueza, maior será o risco de que perturbações no sistema financeiro se transformem em crises econômicas graves.

    Da mesma forma como as inovações tecnológicas contribuem para aumentar a volatilidade do sistema, também poderiam contribuir para torná-lo mais estável. Uma delas, por exemplo, seria permitir, por meio da criação de moedas digitais dos bancos centrais, que as pessoas tivessem contas diretamente no Banco Central, como propõem Jan Eeckhout (Project Syndicate 23/3) e Martin Wolf, do FT (21/3). Segundo este último, “os membros do público também poderiam, agora, deter dinheiro no Banco Central diretamente, o que era impossível quando o acesso a bancos exigia redes de agências; hoje, seria possível para todos deter moedas digitais do Banco Central, que são perfeitamente seguras, em qualquer montante. Essa ideia tornaria o Banco Central o fornecedor monopolista de dinheiro na economia. A gestão do sistema de pagamento digital poderia então ser entregue a empresas de tecnologia. O dinheiro criado pelos bancos centrais poderia ser utilizado para financiar o governo (substituindo os títulos do governo) ou ser investido de outras formas. Enquanto isso, a intermediação de risco seria feita por fundos mútuos, cujo valor se movimentaria com o mercado. Ou, de forma menos radical, a intermediação poderia ser feita por instituições bancárias, mas instituições financiadas por uma mistura de ações, títulos e depósitos a prazo, e não depósitos à vista”. Obviamente os bancos não querem nem ouvir falar disso.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

    Não há posts para exibir

    2 COMENTÁRIOS

    Deixe um comentário

    Escreva seu comentário!
    Digite seu nome aqui