Que lições estratégicas podem ser tiradas da derrocada no Afeganistão?

    Resenha Estratégica – Vol. 18 | nº 33 | 25 de agosto de 2021

    Elisabeth Hellenbroich, de Wiesbaden.

    O espetacular colapso do governo afegão diante das forças do Talibã assinala uma mudança de fase estratégica na política mundial. Tanto no Ocidente como no Oriente, na Rússia, China, Índia, Irã, Turquia e Oriente Médio, lideranças políticas e observadores internacionais qualificaram o fato como um “fracasso completo do Ocidente” e seus serviços de inteligência.

    A guerra de 20 anos custou muitas vidas e 1,4 trilhão de dólares, de acordo com um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU), sob o pretexto de combater o terrorismo e levar estruturas democráticas ao Afeganistão. Tenha-se em mente que foi ainda na presidência de Donald Trump que começaram as negociações com o Talibã, em Doha, Catar, em 2020, e que o presidente Joe Biden, em maio último, anunciou a retirada completa das tropas estadunidenses, em consonância com as nações aliadas que ainda permaneciam no país. Isto abriu caminho para a conquista pelo Talibã, que não é um grupo homogêneo, mas consiste em elementos terroristas radicais e grupos mais moderados. De acordo com muitos especialistas europeus, há razões para um ceticismo em relação ao Talibã, ainda não havendo respostas para o rumo que o grupo dará ao país e a chance de este ser reconstruído como nação. Igualmente, eles alertam para uma nova onda de refugiados afegãos, que já começou a se espalhar para o Irã, Paquistão, Turquia e Ásia Central e também ameaça a Europa.

    No entanto, também está claro – e isto tem sido articulado mais claramente por vozes na Rússia e na Ásia Central, na vizinhança imediata do Afeganistão -, que a única solução a longo prazo será um empenho comum do Ocidente, principalmente, a União Europeia (UE), Rússia, Ásia Central, Irã, Índia, Turquia, Paquistão e China, para encontrar uma solução diplomática sustentável para a crise estratégica.

    Provavelmente, foi o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier quem articulou mais claramente o que muitos diplomatas ocidentais estão pensando: Durante uma entrevista coletiva em Berlim, em 17 de agosto, ele falou sobre uma “tragédia que está se desenrolando, da qual somos responsáveis. É uma guinada política, que mudará o mundo”. Além disto, enfatizou: “É o fracasso dos esforços de anos no Afeganistão, para construir uma comunidade viável. E levanta muitas questões fundamentais sobre o nosso passado e nosso futuro, em termos de nossos compromissos políticos e militares. Existem algumas questões amargas que devem ser levantadas, que devem ser respondidas de uma forma séria. As respostas devem ser procuradas em um esforço comum da Aliança Ocidental. Uma vez que, sem esta aliança e sem solidariedade na aliança, não teríamos ido para o Afeganistão, há 20 anos.”

    Em uma palestra na Universidade Federal Báltica Immanuel Kant, em Kalinigrado, o chanceler russo Sergei Lavrov, que conversou por telefone com o secretário de Estado estadunidense Anthony Blinken e com seu colega chinês Wang Yi, afirmou: “É óbvio que a Rússia e o Ocidente precisam trabalhar juntos. Os esforços conjuntos do Ocidente e da Rússia para ajudar a resolver numerosas crises e conflitos regionais são relevantes. Isto se tornou ainda mais claro depois que a situação no Afeganistão entrou em colapso, após uma retirada precipitada das tropas dos EUA e da OTAN.”

    O especialista em Direito Internacional, Prof. Francis Boyle, da Universidade de Illinois (EUA), disse, em uma entrevista à Agência TASS, que o presidente russo Vladimir Putin está trabalhando bastante para limitar os danos, para que o Uzbequistão e o Tajiquistão não sejam atacados, e está desempenhando um papel muito construtivo junto com a China. De acordo com ele, os EUA não invadiram o Afeganistão para vencer o terrorismo:

    “Os Estados Unidos entraram lá para criar uma base estratégica no coração da Ásia Central… e para conquistar o máximo de petróleo e gás que pudessem da Ásia Central. Então, todo esse projeto falhou.”

    Vozes humanitárias

    Em uma entrevista ao jornal Frankfürter Allgemeine Zeitung (FAZ), em 16 de agosto, o Dr.

    Reinhard Erös, presidente da organização humanitária alemã Kinderhilfe-Afghanistan (Ajuda Infantil-Afeganistão), que tem trabalhado no Afeganistão há 35 anos, afirmou, sobre o governo do Talibã, que “haverá um regime de emirado religioso como o que existiu entre 1996 e 2001, mas não um governo de transição misto”. Ele qualificou o novo emirado islâmico no Afeganistão como determinado pela lei islâmica Sharia (semelhante à da Arábia Saudita – “nossos amigos” -, que envolve pena de morte e mutilações corporais). Ao mesmo tempo, deixou claro que é preciso conversar e negociar com o  Talibã, para que a situação não não se agrave. Ele comentou que a guerrilha venceu, pois “os EUA, obviamente, nunca quiseram conquistar os corações e mentes das pessoas”. O que faltava fundamentalmente era uma “estratégia” civil e militar, nos termos de Clausewitz. Em outro artigo, ele apontou para as camadas de afegãos educados que vivem em Cabul, que, em vez de fugir, deveriam permanecer, por serem necessários para a reconstrução do país: “Quem se entender com o novo regime sob o emirado islâmico, viverá sem guerra. O povo afegão precisa de apoio maciço para uma recuperação econômica, sem qualquer interferência política egoísta.”

    Esta foi também a linha repetida por Malalai Joya, política e ativista afegã de 43 anos, que, em um artigo no diário Süddeutsche Zeitung (14/08/2021), afirmou que a situação é extremamente crítica com o avanço do Talibã. Mas, da mesma forma, enfatizou que as tropas ocidentais deveriam ter deixado o país há muito tempo: “Devemos reconstruir o nosso país com nossas próprias mãos: os compromissos de 20 anos foram em vão?

    Definitivamente, sim. As tropas estadunidenses e ocidentais falharam. Elas vieram por interesses geopolíticos e, agora, partem novamente. Os estadunidenses substituíram o bárbaro regime do Talibã pelos brutais senhores da guerra e, ao mesmo tempo, começaram a negociar com o Talibã, mesmo que a natureza do grupo nunca tenha mudado. Os estadunidenses jogaram bombas, poluíram o meio ambiente e tornaram o sistema ainda mais corrupto. Eles nunca se interessaram pelo povo afegão. O povo afegão deve permanecer junto e lutar contra terroristas e senhores da guerra: o que precisamos dos países estrangeiros não são armas, mas ajuda humanitária, em particular, para projetos de educação.”

    Entrevistado pelo jornal online russo Vzdlyad, o influente “kremlinologista” alemão Alexander Rahr, membro do prestigioso Clube de Discussões de Valdai, se manifestou a favor de uma discussão cooperativa entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO), bem como entre a UE e a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), para ajudar a acalmar a situação no Afeganistão. Para ele, a crise afegã é um verdadeiro “teste de estresse para as relações russo-chinesas”. Ele retratou a CSTO, que sucedeu a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), em 2002, como “uma organização de coordenação política de segurança”, que inclui Estados como a Armênia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão e Bielorrússia. O Afeganistão e a Sérvia têm status de observadores. O Uzbequistão deixou a organização em 2012. Rahr reclamou que os EUA ainda pretendem “conter” a Rússia e a China, em vez de concentrarem a sua luta contra o fator islâmico.

    Considerando que os europeus, em breve, enfrentarão o problema dos refugiados do Afeganistão, ele advertiu que “os estrategistas ocidentais devem cooperar com a Rússia e  a China e os estados da Ásia Central”.

    Efeitos da crise afegã na Ásia Central

    Nesse contexto, a Valdai Weekly Newsletter de 12 de agosto publicou um interessante artigo de Khudoberdi Kholiknazar, diretor do Centro para o Estudo da Ásia Central e China do Tajiquistão, descrevendo a situação em algumas repúblicas da Ásia Central vizinhas do Afeganistão, cujo destino está intimamente relacionado com a Rússia.

    No texto, Kholiknazar analisa que a retirada precipitada das tropas estadunidenses, iniciada em maio, já criou uma série de problemas para os países vizinhos: “O primeiro e mais importante problema para todos os vizinhos do Afeganistão foi o influxo de refugiados afegãos.” Segundo ele, em junho, lançou um ataque na zona da fronteira afegã-tadjique, ocupando quase toda em um mês. Em 7 de julho, o coronel-general Anatoly Sidorov, chefe militar da CSTO, afirmou que “após a captura das regiões fronteiriças do Afeganistão pelo Talibã, o influxo de deslocados internos do Afeganistão para o Tajiquistão está se tornando uma nova ameaça”. Ele ressaltou que, apesar de as autoridades da Região Autônoma Gorno-Badakhshan do Tajiquistão terem anunciado a disponibilidade para receber mais de 10 mil refugiados afegãos, na realidade, há “grandes dificuldades em até mesmo acomodar mais de mil refugiados”.

    Ele chamou a atenção para o perigoso grupo terrorista tadjique-talibã Ansarullah, afirmando que a fronteira tadjique-afegã, antes considerada uma “fronteira amigável”, está se transformando em uma “fronteira hostil”, o que aumenta as ameaças potenciais ao Tajiquistão. Por isso, o governo tadjique enviou às pressas 20 mil reservistas para a fronteira com o Afeganistão, em um trabalho conjunto com a CSTO e a OCX, coincidentemente, ambas presididas este ano pelo Tajiquistão. Sidorov acrescentou:

    “Unidades especiais e de manutenção da paz das Forças Armadas russas realizarão nove exercícios conjuntos de contraterrorismo com as tropas do Tajiquistão, Uzbequistão e Quirguistão, no final de agosto e setembro. Os exercícios em grande escala terminarão com as manobras estratégicas da Missão de Paz 2021 das Forças Armadas dos países da OCX, com a participação de mais de 4 mil militares.”

    Igualmente, Sidorov observou que lideranças do Uzbequistão e do Turcomenistão têm mantido contatos com o Talibã desde o final da década de 1990, tendo o primeiro chegado a criar uma plataforma de negociações em seu território para conversações de paz entre o grupo e lideranças políticas afegãs. Por outro lado, as atividades dos militantes da organização terrorista Movimento Islâmico do Uzbequistão (IMU), juntamente com o Talibã, nas zonas de fronteiras, estão forçando o Uzbequistão a fortalecer a sua fronteira com o Afeganistão. “A decisão do Uzbequistão de realizar exercícios militares conjuntos com a Rússia, para garantir a integridade territorial dos estados da região da Ásia Central, em que participaram cerca de 1.500 militares da Federação Russa e do Uzbequistão, foi muito oportuna.”

    A fronteira com o Afeganistão é a mais curta (144 km) e, ao mesmo tempo, a mais protegida das fronteiras do Uzbequistão, ao passo que a fronteira TurcomenistãoAfeganistão tem 804 km. Sidorov destacou que vários projetos econômicos entre o Afeganistão e o Uzbequistão, bem como o Turcomenistão, que deveriam ser assinados até o final deste ano, foram suspensos: “Os planos do Uzbequistão de assinar um acordo comercial preferencial com o Afeganistão até o final de 2021, o que poderia aumentar o volume de negócios mútuos em 2,5 vezes, até US$ 2 bilhões, estão agora no ar. O destino do projeto uzbeque de construir uma ferrovia da cidade afegã de Mazar-i-Sharif até a cidade de Herat também permanece incerto.” O mesmo se aplica a vários projetos econômicos entre o Turcomenistão e o Afeganistão. Ele conclui com uma linha muito semelhante à de Rahr, ou seja, que “os eventos recentes no Afeganistão mostraram claramente, mais uma vez, que os países pós-soviéticos da Ásia Central deveriam cooperar estreitamente com organizações regionais internacionais como a CSTO e a OCX, a fim de proteger as suas soberanias e independências nacionais.”

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    2 COMENTÁRIOS

    1. Isso tudo isso tudo, onde um grupo de pessoas se acham no direito de mandar em um país o q devem fazer ou não

    2. Osama Bin Laden está morto e os talebans que não cumprirem suas promessas serão punidos (mortos). Logo, não houve uma derrocada e sim uma demorada. Deveriam ter saído em 2011.

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