Polêmica sobre a entrada do carro elétrico chinês na Europa e no Brasil revela as contradições do liberalismo econômico

Quanto papel e tinta já foram gastos para enaltecer as virtudes do livre-comércio. Em 1857, Richard Cobden, industrial, político e economista britânico, membro do Partido Liberal escreveu: “O livre comércio é a diplomacia de Deus, e não há meio mais seguro de unir os povos nos laços da paz”.  A chamada teoria das vantagens comparativas, desenvolvida pelo economista inglês David Ricardo (1772-1823) foi elevada à condição da lei mais transcendente e duradoura da economia ao propor que se cada país se especializar na produção do que faz melhor, ou menos pior, todos sairão ganhando. É a base sobre a qual se tecem loas às virtudes do livre-comércio e se criticam os países que insistem burramente em proteger setores nos quais não são competitivos.

O único problema dessa proposição é que ela sempre foi advogada pelos países que estão no topo da cadeia de produção, no topo da escada. Com base nela, os industriais ingleses do século 19 propunham que seria melhor para todos que a Inglaterra produzisse tecidos, os portugueses vinho e os norte-americanos cereais e algodão. Estabelecida uma escala de troca adequada, portugueses e americanos teriam mais tecidos do que se eles próprios tentassem produzir sem a mesma perícia dos ingleses; ingleses e americanos teriam mais e melhor vinho, e ingleses e portugueses, que não têm tanta terra para plantar, teriam mais grãos do que se tentassem usar suas escassas terras para os produzir.

Um século depois foi a vez de os Estados Unidos defenderem a mesma tese para os países em desenvolvimento que insistiam em adotar políticas de substituição de importações, como o caso do Brasil ou Argentina. O Brasil tem vocação agrícola, ensinava o decano dos economistas liberais brasileiros, Eugenio Gudin.  Eis que agora é a vez da China descobrir as delícias do livre-comércio, as virtudes de um mercado aberto e da economia globalizada, para desespero dos americanos e europeus que veem sua indústria derreter como gelo em teto de zinco quente diante da competição chinesa com sua escala gigante de produção.

Mas como desdizer o que eles vêm dizendo há pelo menos dois séculos? Como reescrever os manuais de economia e dizer que as elegantes demonstrações das vantagens do livre-comércio são uma fraude intelectual? Como reconverter os economistas catequizados nos manuais de economia de Paul Samuelson?  Mais fácil dizer que os chineses estão trapaceando, que a China não é uma economia de mercado, que oferece subsídios desleais à sua indústria, que têm baixa conformidade com as regras de compliance etc. Com isso matam dois coelhos com uma cajadada só; não precisam dizer que sua teoria só serve quando são eles que estão por cima e ainda jogam a culpa de seu infortúnio nas costas dos chineses.

É exatamente a isso que estamos assistindo na polêmica sobre a entrada dos carros elétricos chineses, não só no Brasil, como também na Europa. Desde que as empresas chinesas aprenderam a fazer os carros elétricos que, diga-se de passagem, são menos complicados mecanicamente que os carros com motor de combustão interna, e se tornaram o principal fornecedor global de baterias elétricas, utilizadas até pelas montadoras da Europa e dos Estados Unidos,  não há ninguém que consiga competir com a empresas chinesas em preço e, crescentemente, em qualidade.

Sua escala de produção é tão grande que os custos se reduzem exponencialmente sem que o governo precise oferecer nenhum subsídio, afora o fato de operarem com margens de lucros mais modestas, pois não têm CEOs ganhando bônus bilionários com no Ocidente e nem operários querendo receber 40 dólares por hora, com nas “Big Three” dos Estados Unidos. Se fossem coerentes com sua teoria, deveriam reconhecer que é melhor deixar esse negócio de fazer carros elétricos para os chineses e procurar outra coisa para fazer. Não é o que nos diriam?

Mas as coisas não funcionam bem assim. O que fazer com os milhões de trabalhadores do setor automobilístico americano, europeu e mesmo brasileiro, onde as Big Three (GM, Ford, Stellantis) atuam? Como viver sem os impostos milionários que esta indústria automobilística paga? A única saída é erguer barreiras comerciais para defender sua própria indústria da concorrência externa. Mas para, usando um termo chinês, não perder a face, precisam de uma justificativa que não os obrigue a reconhecer a hipocrisia de seu discurso liberal. Só resta, então, dizer que o governo chinês está subsidiando sua indústria, como se eles próprios não estivessem. Em tempo: governo Biden está gastando 1 bilhão de dólares em subsídios para semicondutores, veículos elétricos e energias renováveis.

Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Não podemos esquecer os altos custos que ainda são necessários para o desenvolvimento de baterias seguras, eficientes e não poluentes. Sou apoiador das ideias do Prof Fritz que acredita que o motor à combustão não desaparecerá. Será que o mundo não está sendo enganado com essa nova moda? Por que será que os chineses continuam fazendo desenvolvimentos com motores à combustão?

  2. Não podemos deixar de esquecer os altos custos que ainda precisam ser investidos para a fabricação de baterias seguras, de grande eficiência e nao poluentes. Particularmente apoio as ideias do Prof Fritz Indra que não acredita no desaparecimento do imbatível motor a combustão. Será que não estamos sendo enganados por um engodo dos idealistas do carro elétrico? Por os chineses continuam investindo no desenvolvimento de carros a combustão?

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