Os 100 anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo

    Na celebração do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o Portal Bonifácio publica o discurso do poeta e deputado Menotti Del Picchia, proferido em 1962 para celebrar os 40 anos do acontecimento. O poeta cita trechos da mensagem enviada ao Congresso Nacional pelo presidente Getúlio Vargas ao ensejo do 30º aniversário da “Semana”, comemorado 10 anos antes. Na mensagem o presidente Vargas afirmava: “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do modernismo na literatura Brasileira, que se iniciou com a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, foram as mesmas que precipitaram, no campo social e político, a Revolução vitoriosa de 1930.”

    Discurso do sr. Deputado Menotti Del Picchia, proferido na sessão de 22/02/1962, que, entregue à revisão do orador, seria publicado oportunamente.

    Sr. Presidente, Senhores deputados, celebram os meios culturais fiéis à corrente modernista do Brasil o 40º aniversário da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, no Teatro Municipal, em fevereiro de 1922.

    Pediram-me, nesta Câmara, fizesse referência à efeméride. E que, ao celebrar-se o 30º aniversário da “Semana”, o sr. Presidente da República, Getúlio Vargas, em mensagem que então enviou ao Congresso Nacional, fez a ela referência capitulando-a como um marco na história do pensamento brasileiro e, mais do que isto, como ponto de partida de nova e revolucionária etapa da nossa vida social.

    Diz a Mensagem:

    “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do modernismo na literatura Brasileira, que se iniciou com a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, foram as mesmas que precipitaram, no campo social e político, a Revolução vitoriosa de 1930. A inquietação Brasileira, fatigada do velho regime e das velhas fórmulas que a rotina transformara em lugar-comum, buscava algo novo, mais sinceramente nosso, mais visceralmente brasileiro. Por outro lado, a evolução econômica do mundo, o progresso técnico e industrial, a ascensão dos fatos políticos estavam a exigir nova estruturação da sociedade e novas leis, capazes de atender com eficiência a essas necessidades.

    Uns e outros fatores se congregaram para forjar o movimento, que aos poucos se dilatou, criou raízes e, finalmente, amadureceu, determinando, de um lado, a renovação dos valores literários e artísticos, de outro lado, a renovação dos valores políticos e das próprias instituições. Na verdade, o movimento modernista, nas letras e nas artes Brasileiras, foi um impulso revolucionário que cresceu e extravasou, fomo o foi o movimento político causador da Revolução de 1930.”

    Aí está, Sr. Presidente, a importância desta efeméride registrada nos anais deste Parlamento. Reevocando esse trecho da Mensagem, é necessário explicar como aquilo que pareceu um jogo meramente literário, era denúncia da ruptura de um ciclo histórico e a sublimação do nosso recalque social pela revelação do que se passava no inconsciente das massas. Nesse tempo, o panorama do mundo havia sofrido uma convulsão com o fim da guerra e com a revolução da técnica. Já Spengler denunciava que a civilização do Ocidente estava em decadência. Kaiserling, no seu livro famoso, anunciava “um mundo que nasce”, o mundo da ciência e da técnica, da racionalização e da cibernética. A informação dada às massas, obrigando-as a uma tomada de consciência social, provocava aquilo que Ortega y Gasset denominou “A Rebelião das Massas”.

    Nesse tempo, em 1910, 20 até 22, operava-se na estrutura econômica e social do Brasil uma profunda revolução. Superávamos a estrutura feudal da monocultura cafeeira, como no Norte, da canavieira. A fazenda não era mais do que um burgo, centrado pelo castelo do senhor feudal – o fazendeiro – rodeado pelas casas dos colonos. Até então, as massas dormentes, aquietadas nas áreas rurais, não tinham maior contato com a cidade. Aos sábados, engarfados num cavalo, trabalhadores que possuíam na fazenda uma economia completa – pequena horta sua, animais domésticos, galinhas, ovos, frutas, iam às Villas ou às cidades buscar três ou quatro produtos necessários: petróleo, sal, açúcar para os que não dispunham de rapadura.

    É que sobre essa estrutura feudal pairava uma superestrutura patronal feita dos ricos terratenentes, donos das fazendas, homens milionários que, naturalmente, não podiam viver na passividade melancólica das casas coloniais, onde morreriam de tédio. Tomavam então navios e rumavam principalmente para a França, pois que, naquele tempo, dominava-nos uma cultura nitidamente gaulesa.

    Era ainda o resíduo da “belle époque”, crepúsculo de um delicioso romantismo que nos levava a falar francês, a ler as criações do “esprit de finesse” da luminosa França. Ornamentávamos nossas casas com requinte francês, comíamos em francês. Havíamos, pois evadido o sentido nacional. Uma mentalidade forasteira dominava o país.

    Nós outros, por uma intuição exata da revolução que se ia processando com a revolução da técnica, começamos a examinar o problema através das nossas investigações literárias.

    Como sabemos, o artista é um sismógrafo social. Ele antecipa o político, antecipa o sociólogo e o filósofo, porque sonda as estruturas humanas, quer através dessa força divinatória que há na poesia, quer pelos estudos que faz dos atritos sociais com seus ensaios, contos e romances.

    Nesse tempo, verificamos que se havia produzido uma convulsão na dinâmica da sociedade provocada pelo motor de explosão. O Ford de bigode, trazia o campo para a cidade, o colono para o centro urbano. Era uma revolução da maior extensão que provocava o que Ortega y Gasset – como anotei – denominaria “Revolução de las massas”.

    Foi então que nós outros, nesse tempo, sentimos a necessidade de exprimir o inconformismo dos intelectuais Brasileiros contra uma estrutura econômica e social, que não permitia ao Brasil ver sua própria verdade, sua realidade exata. Então pensamos em fazer um movimento moderno. Desse movimento Albiano de Mello, sociólogo da “Marcha da Revolução Social no Brasil”, diz no seu livro:

    “O impacto da revolução social não se manifestaria somente no plano político. Como sói acontecer, sempre se inicia a liquidação de um ciclo social histórico-político-econômico para que surja outro no campo das atividades artísticas. No Brasil, em 1922, seria assinalado também por uma pedra branca. A Semana de Arte Moderna e seus componentes da revolução social no campo artístico.”

    A afirmação incisiva desse sociólogo bem mostrará a profundidade do movimento. Sobre seu significado na história das ideias citarei ainda um dos maiores filósofos atuais do Brasil. Professor Cruz Costa: Autoridade mensagem do Presidente e no comportamento Brasileiro no seu famoso livro “Panorama da História da Filosofia no Brasil”, diz:

    “O movimento modernista de 1922, que não teve outras intenções senão as puramente artísticas e libertárias, marcou um momento da história das ideias no Brasil, dando-lhe novo sentido. A guerra e os efeitos da guerra fizeram com que nos aproximássemos mais da terra.”

    Esse era o problema fundamental do momento. Fazia-se mister quebrar a costa exógena e entrar na investigação dos problemas nacionais relegados à margem pela elite cultural do tempo então absorvido pelo fascínio da França. Precisávamos redescobrir o Brasil soterrado sob densa montanha de exótica cultura. Foi assim que disse Cruz Costa:

    Nos nossos livros vai circular cada vez mais um perfume de mato, de terra molhada, de brisa fresca do mar. Os assuntos Brasileiros, os costumes sertanejos ou praieiros, a paisagem que nos cerca hão de dar mais espontaneidade à nossa literatura. A inspiração nacional não nos levará tão alto, mas com mais segurança para um futuro remoto de criação e independência”.

    Ora, sr. Presidente, o transcendental movimento do qual hoje celebramos o 40º aniversário, cujos reflexos na política registramos através da mensagem do Presidente e no comportamento da nossa cultura, pela obra dos pensadores e dos filósofos, não nasceu senão após uma gestação consciente e demorada. Ainda há pouco eu lia na tão séria e culta revista “Visão” um relato da famosa “Semana”. Os motivos fundamentais que a determinaram não foram apontados uma vez que afirma que “os problemas sociais e políticos ali estiveram ausentes” quando, no próprio discurso que proferi na noite de 15 de fevereiro, ao apresentar a turma dos novos, falávamos nas reivindicações obreiras, até em comunismo. É que a Semana de Arte Moderna, quando apareceu na sua teatral apresentação na ribalta do Municipal de São Paulo, já tinha sido longamente preparada através da conspiração do grupo paulista que depois se uniu, em fevereiro de 1922, ao grupo de Graça Aranha. Teve origem num nosso contacto inicial com Oswald de Andrade, em 1920, a seguir com Mário de Andrade, depois com a colaboração de Plínio Salgado, Mota Filho e outros, até a descoberta do grande escultor Victor Brecheret, que passou a ser o polarizador do grupo dos artistas inconfidentes.

    Esse movimento agitava-se num clima já criado por esse outro espírito revolucionário e genial – um dos Brasileiros mais realistas e mais videntes depois de Mauá – que foi Monteiro Lobato. O que ergueu, com combativa fé, as três colunas fundamentais do nosso desenvolvimento – petróleo, ferro e livros – era paradoxalmente um agitado antimodernista sendo, talvez, de nós todos o mais intrépido revolucionário.

    O Sr. Hamilton Nogueira – A Câmara está ouvindo encantada o belo discurso de V.exa., testemunho daquele movimento glorioso que é, por assim dizer, a complementação da reação romântica do Brasil. Sabe V. Exa. que até que surgisse a figura gigantesca de Castro Alves, até que Alencar e os poetas da Inconfidência Mineira, com Tomaz Antônio Gonzaga, o que havia no Brasil era apenas uma repetição artificial da arcádia portuguesa. Esse movimento de 1922 foi a complementação daquela independência, daquela emancipação literária que os nossos românticos tinham realizado. Vamos ouvir e estamos ouvindo a rememoração de todos aqueles nomes ilustres que V.exa. citou e, entre eles, lembro do Mário de Andrade, que foi o centro de aproximação de todas as tendências culturais, de todas as tendências ideológicas porque era um coração humaníssimo. Neste instante, também quero prestar homenagem ao “príncipe” desse movimento, Alceu de Amoroso Lima, que compreendeu a importância da Semana de Arte Moderna de São Paulo.

    O Sr. Menotti Del Picchia – muito obrigado a V.exa. No desenvolvimento do meu discurso verá V.exa. situada a figura de Mário no seu posto de líder e de Alceu no futuro grande cristão do movimento.

    O Sr. Luiz Viana – Associando-me às palavras proferidas pelo nosso nobre colega Deputado Hamilton Nogueira, desejaria acentuar o prazer com que a Câmara ouve o discurso de V.exa.

    O Sr. Menotti Del Picchia – Muito obrigado pela sua colaboração.

    O Sr. Luiz Viana – para o qual direi que estou preparado, uma vez que sou, não apenas um velho admirador e amigo de V.exa., mas um devoto da Semana de Arte Moderna, cuja história eu tive a ocasião de rememorar lendo o magnífico número especial publicado pelo “Estado de São Paulo”.  E, por esta leitura, quero lembrar aqui, porque V.exa. certamente não o fará por modéstia, que um dos grandes nomes daquele movimento foi o do poeta Menotti Del Picchia, o grande consagrado, o glorioso autor de “Juca Mulato”. (Palmas)

    O Sr. Menotti Del Picchia – Meu eminente colega, muito obrigado pela sua referência e generosidade. Devo dizer que as suas palavras me estimulam a colocar ainda mais em evidência o que foi esse movimento, o sentido que teve para o Brasil, libertando-o, naquela época, de uma mentalidade que não correspondia, em absoluto, às realidades de uma nação que saia também vitoriosa da grande guerra e defrontava com um mundo em crise revolucionária da transição. Silva Brito, o mais exato historiador dos pródromos da famosa Semana, situa seu primeiro passo no banquete realizado no Trianon de São Paulo, a 9 de janeiro de 1821, quando intelectuais e políticos celebravam a publicação das “Máscaras” e no qual era ofertado meu busto esculpido pelo grande Brecheret. Nessa ágape, Oswald de Andrade e comigo, capitaneou ali um grupo inconfidente e pronunciou um discurso no qual fazia clara referência ao movimento que germinava como nosso inconformismo. Na resposta que lhe dei e no artigo que inseri no “Correio Paulistano” com o título de “Na maré das reformas”, formulamos, ambos, a programática do movimento que iria eclodir em fevereiro de 22. Dentre esses conspiradores da revolução modernista, já formou meu colega, nesta Câmara, Plínio Salgado. Nesse banquete, Oswald de Andrade sibilinamente dizia: “Quando excessiva parecia a presença da gente da tua íntima clã… ei-la, entretanto, que se reúne, que se junta e alvoroça e congrega, para que, com os galardões, te sejam também entregue a máscula insígnia das responsabilidades que te esperam”.

    Era já o começo da nossa insurreição paradoxalmente travada dentro do Correio Paulistano, do qual era então redator principal, o jornal mais conservador do tempo pois representava o partido unitário de São Paulo e tinha decisiva influência na sorte política de todo o País.

    O Sr. Carvalho Sobrinho – Agora que V. Exª. considerou a revolução da Arte Moderna em São Paulo, venho aparteá-lo porque V. Exª. fixa um episódio do Correio Paulistano. Foi efetivamente um movimento vitorioso, cujos efeitos se percebem nítidos, vivazes até hoje. Creio, no entanto, que dele V.exa.; já falando com certa nostalgia, como com nostalgia eu relembro hoje que o movimento da Arte Moderna em São Paulo pôs fim àquilo que podíamos considerar a belle époque da política paulista. Com o ascender do movimento da Arte Moderna, foi desaparecendo, no rol das outras revoluções, o que havia de mais tradicional, de mais efetivo e de mais autêntico na vida política de São Paulo.

    O Sr. Menotti Del Picchia – V.exa. disse uma verdade de colabora com a tese que vim sustentando de que a revolução se estava operando já no período da belle époque na qual a aristocracia fazendeira ia para Paris, e com muita razão, porque era mais interessante estar em Parais gozando os encantos da cidade luz do que nas fazendas ouvindo o mugido nostálgico dos bois.

    O Sr. Plínio Salgado – Ouvindo o discurso de V. Exa. sobre um dos acontecimentos mais notáveis da vida cultural Brasileira e sendo contemporâneo desse movimento…

    O Sr. Menotti Del Picchia – contemporâneo não. Cooperador desde as primeiras horas.

    O Sr. Plínio Salgado – … contemporâneo e partícipe desse movimento, entendo deva utilizar-me de um aparte, em primeiro lugar para dar a significação do movimento moderno de 1922. Se queremos penetrar as profundas raízes desse movimento, é mister remontarmos a toda a evolução da literatura Brasileira, desde quando o Romantismo na Europa influiu decisivamente em nosso país. O Romantismo no Velho Mundo teve caráter individualista e transbordante de subjetivismo e de paixões individuais: – transportando-se para o Brasil, adquiriu caráter de transbordamento nacionalista. Tal a obra de Gonçalves Dias, que considero o maior de todos os poetas Brasileiros e a obra de José de Alencar. Ambos exprimiram um romantismo de caráter nacional. Ao invés de termos um extravasamento de emoções pessoais, como nas obras de Lamartine ou de Goethe, tivemos um transbordamento nacional, com expressão nacional. Entretanto, esse movimento apenas apanhava as exterioridades do nacionalismo Brasileiro, não penetrando o substrato da nossa raça, a psicologia intima de nosso povo. Depois do segundo romantismo, tendo o Brasil acompanhado, em poesia, a escola parnasiana; na prosa, o realismo, o naturalismo de Flaubert, de Zola de Maupassant; Calu, por assim dizer, num período neoclássico, retomando a linha helênica da Arcádia, da escola de Minas, mas sob forma nova, sempre a procurar as expressões que encontramos em Leconte de Lisle, até que o simbolismo foi precursor do nosso modernismo, porque ele penetrou mais fundo na alma, foi  buscar as raízes escondidas do nosso espírito.

    Mas predominou sempre, como literatura oficial, o parnasianismo e as formas clássicas que encontramos em Coelho Neto, em Rui Barbosa, em Machado de Assis. Após a Primeira Grande Guerra, nossa inquietação era grande. Lembro-me de quando nós, V.exa. e eu, e outros, em São Paulo, no jornal mais conservador da nossa província, nos ajuntávamos e discutíamos esses problemas fundamentais da literatura e da arte no Brasil. Lembro-me que nos dirigimos sempre ao subjetivismo nacional. Grandes sociólogos como Oliveira Viana, grandes críticos das instituições, como Alberto Torres, grandes penetradores da alma humana, como Farias Brito, influenciaram decisivamente em nosso espírito. E queríamos algo novo. Em São Paulo, preludiávamos o movimento moderno, que depois surgiria pelo verbo de Graça Aranha, porém realizado por nós. O modernismo Brasileiro, por conseguinte, surgindo em 1922, teve dois objetos: primeiro, a reforma dos critérios de interpretação da alma nacional; segundo, as formas novas de estilo de modo a nos pormos em dia com a velocidade dos novos tempos. Queríamos a síntese verbal e dentro da síntese verbal a profundidade do nosso próprio espírito e do espírito nacional. Assim, a Arte Moderna, quer na pintura, quer na literatura, quer na arquitetura, quer na música, exprimiu esse selo, e quero dizer que V.exa. foi um dos expoentes daquele tempo, um dos mais criadores, um dos luminares que com o nosso grupo, em São Paulo, desfraldou a Bandeira do modernismo, tanto na forma quanto no estilo, como no fundo. Porém esse movimento que surgiu em 1922, com o invento de renovação, pouco depois dividia-se em várias culturas correntes. Entre essas correntes, a de memorar o Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, o notável escritor autor de “Serafim Ponte Grande”, das “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Mário de Andrade, tão típico e tão pessoal na sua forma literária. Mas nós, senhor deputado, com Cassiano Ricardo, Mota Filho, Alfredo Elis, Raul Bopp, desfraldamos nova Bandeira, a Bandeira do verde-amarelismo, que queria capitalizar para o nacionalismo Brasileiro a nova revolução literária e artística do Brasil. Aquele movimento verde amarelo foi precursor de todo o nacionalismo existente no país.

    Rasgou novos horizontes para a pátria. Lembro-me perfeitamente de que, nas vésperas da revolução de 1930, nós nos reunimos no “Correio Paulistano”, dispostos a lançar um Manifesto à Nação Para Reformas Profundas de ordem institucional e de ordem cultural. Juntos batalhamos incessantemente. Outras escolas surgiram, como grupo de festa, no Rio de Janeiro, com Tasso da Silveira e Andrade Muricy, ou como o grupo de Cataguazes. Marcamos, porém; uma etapa decisiva da vida nacional, fazendo confluir os anseios da reforma literária e artística com os anseios sociológicos de reformas sociais e institucionais da nação.   Posteriormente, com Raul Bopp, empreendi movimento chamado Movimento da Anta, que ia às profundidades da alma autóctone para buscar o denominador comum da nacionalidade subposto aos numeradores das grandes correntes imigratórias que vinham para nosso país. Tudo isto é belo recordar. Quarenta anos, senhor deputado, quarenta nos de incessante amor à pátria, de incessante culto à beleza, em que no nome de V.exa. fulgura como estrela de primeira grandeza. (muito bem).

    Não poderia deixar de dar este aparte, para rememorar o que realizamos e principalmente o que muito que fizemos no campo concreto do romance e da poesia, quando muitos se perderam apenas em teorias ou meros manifestos doutrinários sem qualquer realização. Esta a grande verdade do movimento modernista de 22. Encanto-me de ouvir V.exa. e quero aqui erguendo doas ao seu valor, relembrar aqueles que conosco estiveram firmes na estancada por uma revolução cultural e integral de nossa pátria abrangendo todos os círculos, desde a cultura até a administração, a política e as instituições Brasileiras. (muito bem! palmas).

    O Sr. Menotti Del Picchia – tirando a cota tão generosa de carinho com que quis homenagear seu velho companheiro de lutas, que, ao lado de V.exa., de Cassiano Ricardo, de Alfredo Elis e de Mota Filho, hoje ministro do Supremo Tribunal, lutou dentro do campo verde-amarelo por um Brasil Brasileiro. Gostaria historiar minudentemente a contribuição de V.exa. no movimento. Pelo nosso grupo foi o Brasil estudado em toda sua essência, percorrido em todos os seus caminhos, procurado em todas as suas verdades e examinado em todas as suas carências, com a imagem de Jeca Tatu diante de nós, imposta por aquele gênio que foi Monteiro Lobato, no libelo vivo que nascia, talvez da denúncia de Euclides da Cunha do grande equívoco existente entre o litoral e o sertão. Queríamos saber por que este Brasil tão grande e dono de tantas possibilidades, imerso na noite do analfabetismo e processando uma economia larval, havia esquecido e abandonado o nosso homem. Não fizemos a exaltação lírica do Brasil; queríamos conhecê-lo na sua realidade física, econômica, social, política e étnica. Queríamos ver o Brasil com olhos puros, tirar uma radiografia do seu corpo físico e procurar penetrar nos escaninhos da sua alma, aventando as possibilidades necessárias para recorrê-lo e para levantá-lo. Os movimentos políticos que decorreram da Semana e que V.exa. despertou. Plínio Salgado enumerou e que erigiram o núcleo inicial no qual constituía, em si, o germe de todas as revoluções e de todas as pesquisas, efetivamente lançaram no campo social a fecunda inquietação da pesquisa estética, social, econômica e política. Surgiu a antropofagia que, depois, projetada no campo social, se transformou em ideologia política de esquerda. Já em moda no tempo. O verde-amarelo evoluiu para a direita. E nós, com Cassiano Ricardo, entre outros, marchamos para o centro a pleitear no Brasil uma democracia orgânica que garantisse todas as liberdades. Uma democracia que realizasse a justiça social, uma democracia contrária no liberalismo amorfo, incapaz de conter as forças sociais dentro da ordem e da disciplina. Aí que estava o grande pensamento político da Semana de Arte Moderna. Era um nacionalismo absolutamente pragmático, filho de Tavares Bastos, de Mauá, de Alberto Torres, de Calógeras, de Pires do Rio, de todos os grandes pensadores que haviam estudado o Brasil não com olhos franceses, não com olhos americanos, não com olhos russos, mas com olhos Brasileiros. Queríamos ver onde estavam nossas carências, onde e como poderíamos socorrer nossos irmãos, perdidos na escuridão do analfabetismo ou madorrando no grande hospital sem leitos que era o Brasil. Batemo-nos por estas ideias e me lembro quantas vezes focalizamo-la em trabalhos os mais diversos, nos comícios, na imprensa, na tribuna. Não fomos, portanto, apenas literatos capazes de fazer belos versos, mas Brasileiros conscientes de que a arte tinha uma finalidade participante e devia reformular os conceitos das fronteiras espirituais patrícias. Criamos, então um “slogan” para recolocar o país dentro de sua autenticidade e do sentido da sua tradição e da sua história. Dizíamos: “Tua ideia é uma arma & Contra ideologias forasteiras e dissolventes opõe o pensamento original da sua pátria!”. Essa foi a Bandeira nacionalista que arvoramos, então, no topo da nossa batalha. Era iluminada pelo nosso sol e não pelo de outras pátrias.

    Inspirados por esse programa, foram surgindo livres magistrais que hoje se tornaram clássicos, embebidos de alma Brasileira, expressos numa linguagem tipicamente nossa, cheios de sol do Brasil. Alteou-se a figura apostólica do grande Mário de Andrade, o poeta, o doutrinador, o musicólogo, o crítico, o humanista, com esse petardo lírico que é “A Paulicéia Desvairada” e essa saga nacionalista que é o Macunaíma; Oswald de Andrade, o grande agitador polêmico, irreverente e irrequieto abrindo caminhos, Plínio salgado com o estrangeiro, Cassiano Ricardo com “Martin Cererê”, Raul Bopp com essa estranha e telúrica Cobra Norato, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, um precursor mota filho o crítico do clã verde-amarelo Ronald de Carvalho com toda a américa Guilherme de Almeida com “Meu”, e, corifeu inconteste de tal coro, pelo seu imortal “Canaã” e pelo seu prestígio de ensaísta e filósofo, Graça Aranha, um dos chefes do movimento. Depois, desquadrantes do país desceram as legiões: o Norte com Luiz do Rego, Rachel de Queiroz, Graciliano, Jorge Amado, Jorge Lima, a coorte dos que integraram nossas letras ao espírito da terra: os mestres da nova sociologia e de crítica Gilberto Freyre, Tristão de Atayde, Vianna Moog, Múcio Leão, Sérgio Buarque de Holanda, o Sul com os companheiros de Ronald. De Álvaro Moreira: o centro, com a inteligência revolucionária de Minas: Calos Drummond de Andrade, Reinaldo Moura, os Machado, impossível mencionar todas as noves. O fermento da revolucionária pesquisa estava lançado em todos os setores da atividade nacional processando uma ardente e patriótica revisão de valores. A obra literária retomou a função social do imortal Euclides denunciando as injustiças pela situação em que se haviam ligado umas populações do sertão, em romances e ensaios que eram libelos, conizado contra a excitação utópica. Um nacionalismo pragmático foi pré e fluida dos meus ufanismos meramente retóricos.

    O Sr. Coelho de Souza – V.exa. permite um aparte?

    O Sr. Menotti Del Picchia – Extremamente honrado pela colaboração do ilustre amigo e nobre deputado.

    O Senhor Coelho de Souza – Consinta V.exa., eminente colga e querido amigo, que me incorpore ao seu admirável discurso, através deste rápido aparte.

    O extremo sul, sempre sensível às vozes do Brasil, também acudiu ao apelo revolucionário da Semana da Arte Moderna.

    O Rio Grande trouxe à renovação da arte Brasileira a contribuição dos poetas modernistas Raul Bopp, já citado por V.exa. Augusto Meyer e Vargas Neto, Athos Damasceno Ferreira e Theodoro Tostes, dos sociólogos Salis Goulart e Rubens Reis Barcelos, do crítico Moysés Vellinho – Paulo Arinos – e dos romancistas Reinaldo Moura e Érico Veríssimo.

    O sr. Menotti Del Picchia – e a contribuição de V.exa. um dos mais claros, cultos e modernos espíritos do Rio Grande. Nós, paulistas, aquinhoados mercê de árduo trabalho por uma situação econômica excepcional, voltamos os olhos para nossos irmãos deserdados e dirigimos nossa atividade estudiosa para o homem e para a terra: Mário e Oswald multiplicavam suas criações artísticas e desdobravam sua obra polêmica, Mota Filho visava, com sua crítica, revelar o autêntico pensamento nacional, procurava em sequência ao “Juca Mulato”, a temática da nossa terra e da nossa gente, Plínio Salgado escrevia as páginas do estrangeiro, nosso drama demográfico e social, Cassiano Ricardo erguia sua voz épica “Martin Cererê”, a rapsódia da raça e preparava-se para nos dar uma radiografia da nossa história com a Marcha para o Oeste. Antônio de Alcântara Machado os fragrantes urbanos do “Brás, Bexiga e Barra Funda”. De todos os recantos do país a arte renovada fluía torrentes de Brasilidade. Postulávamos a integração do nosso pensamento, da nossa gente e da nossa terra. Pensamento genuinamente nosso sem eiva de importação.

    Passaram-se 40 anos. O Brasil se agigantou. Nossa obra não foi inútil. Estimulou em nossos irmãos a ânsia de conhecer mais profundamente a si mesmos e o próprio chão que pisam para amá-lo melhor. Mas, ao lado da grandeza entramos num clima de confusão. As revoluções do mundo atômico e a interferência de forças alheias, no âmbito das outras nações, se por um lado as informam do progresso geral humano, por outro podem desnaturar-lhe a índole e ferir-lhe a originalidade. Não identificamos, como bem nosso, o conteúdo do nacionalismo de hoje, não que não seja sincero em muitos patriotas, como sincero era o sentido gaulês da vida que animava as elites dominantes em 23 e contra a qual nos rebelamos. Elas traziam, como ideal, perfectibilidades que o estado ainda imaturo da nossa cultura e do nosso atraso econômico e social não suportavam, pois seriam remédio excessivamente forte para um organismo extremamente anêmico. Somente e com soluções especificamente brasileiras poderíamos então, como hoje, curar males e disfunções brasileiras. Do que nos informa a cultura do mundo, tiraremos, para nos atualizarmos, aquilo que seja adaptável às condições específicas do nosso meio. Essa foi a doutrina do nosso nacionalismo que queria estar bem-informado, para estar atualizado, mas que repelia as influências forasteiras no que tivessem de deformantes e desnacionalizantes.

    Há três ou quatro dias, tive a honra de ser recebido no Instituto dos Arquitetos de São Paulo: os arquitetos eu os tenho em estima especial, porque sou filho de arquiteto. Pensei ali nossa desesperada procura de ritmo novo que atormenta o mundo atomizado. Todas as fórmulas da arte caminham por campos de destruição, de negação, através de fórmulas verdadeiramente mórbidas. A pintura – desintegrada pelas invenções ultraistas e, por fim eliminada da sua clássica expressão linear e figurativa pelo abstracionismo, a escultura, desviada da sua função, é nos chocar no intuito de destruir no nosso espírito os últimos resíduos do academismo representativo de um ciclo social que findou, tudo isso é apenas negação do passado e nos lança desesperadamente à procura das feições exatas do futuro, do seu ritmo novo. Para nós a aurora desse novo ritmo está na arquitetura funcional, na arte de dar a casa ao homem. Nesse fato poderemos ver um expressivo símbolo: casa nova para o homem de alma nova. Brasília é, por certo, universalmente a anunciação dessa alvorada.
    Eis o que nós, nos modernistas nacionalistas de 22, encontramos após uma caminhada de quarenta anos: escombros de um mundo que foram os primeiros sinais de um mundo que está por vir.

    Neste panorama conturbado síntese auroral do diálogo dialético entre o oriente e o ocidente e em que as fórmulas plásticas nos parecem monstruosas, porque são a negação de um passado que se entremostra, ainda misterioso, mas promissor o mundo que nasce. Mundo da desintegração atômica, da astronáutica, da técnica, enfim, o mundo da ciência. A arquitetura funcional, talvez seja a primeira palavra do grande ideal cósmico de ver realizado o sonho de paz na humanidade, dentro de uma palavra transmudada pela ciência e aquecida pela fraternidade.

    Senhores deputados: Neste momento, não posso deixar de reevocar que foi toda a nossa vida apenas paixão pelo Brasil. A obra literária do nosso grupo sua Brasil por todos os poros. Leiam os versos, os romances, os ensaios de Mário, de Oswald, de Bandeira, de Cassiano, de Raul Bopp, de Ribeiro Couto, Jorge Simas e dos Servais e depararão com um evangelho de Brasilidade. Nacionalismo lindamente nosso, autêntico, autenticamente nosso, com todas as carências do país em desenvolvimento, com todos os seus defeitos, mas com todas as suas opulências e virtudes (palmas). Esse nacionalismo foi o que caracterizou a Semana de Arte Moderna. Tínhamos Brecheret, Brasileiríssimo, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, Brasileiríssimos. Tínhamos Villa-Lobos, Brasileiríssimo. Vieram depois Portinari (palmas), esse gigante da palheta, pintor que, com seus pincéis, fez maiores discursos em favor do homem Brasileiro, denunciando a miséria dos nossos irmãos abandonados, que nós outros, desta tribuna, com a nossa patriótica eloquência outro astro surgiu também na aurora do movimento: Villa-Lobos (palmas), o maior compositor de todos os tempos do Brasil e o maior gênio da música contemporâneos. E, núcleo central dessa constelação, nosso apóstolo e nosso mártir: Mário de Andrade.

    Senhores deputados, o Brasil canta nas sinfonias do grande Villa. Retrata-se nos quadros de Di Cavalcanti e de Portinari. Exalta-se nos poemas de Mário e de outros poetas. Eterniza suas glórias nos monumentos de Brecheret.

    Tudo isso foi a irradiação daqueles dias gloriosos em que, com alguns companheiros no Teatro Municipal, nos postos de 11, 15 e 17 de fevereiro de 1922, afrontamos uma plateia tremendamente reacionária, que nos vaiou com delírio com imenso gáudio nosso. Hoje, passado esse tempo, no Instituto dos Arquitetos de São Paulo, eu reclamava: “Precisamos de uma nova Semana de Arte Moderna. Nós, políticos, tomados de nossas paixões naturais, transformados uns no homem ideológico, outros ligados a interesses regionais ou de ordem eleitoral ou fechados num hedonístico misoneísmo, dificilmente teremos olhos claros e movimentos livres para oferecer ao Brasil um esquema de nacionalismo incontaminado, como o fizeram os moços de 1922. Pedi, lá no Instituto que a juventude Brasileira e as elites culturais nos enviassem uma mensagem, como o fizemos na Semana de Arte Moderna. E, que de fato, estamos em um impasse, precisamos de uma senha.

    De um lado, nossa decisão é levar os bens do progresso aos irmãos mais necessitados, mas de outro lado, uma parte irredutível de um capitalismo predador e cúpido se opõe a que se realize, com a possível plenitude, esse ideal de justiça distributiva social. Não abriremos mão desse humanitário propósito, mas devemos fazê-lo movimentando todo o instrumento político de que dispomos. Isto é, a democracia, capaz de fazer todas as reformas, por bem ou mal, dentro da lei e sem perda da liberdade. (Muito bem).

    A mensagem de uma nova Semana de Arte Moderna conteria, certamente, a mesma programática nacionalista de 22. Restabeleceríamos uma íntima coerência entre o passado e o presente evitando que o nacionalismo de outros países e do qual corre risco contaminar-se o nosso. Oxalá neste 40º aniversário da Semana de Arte Moderna o espírito que desceu ao palco no Municipal e iluminou a inteligência Brasileiríssima de Graça Aranha e Mário de Andrade, a capacidade combativa de Oswald de Andrade, que pôs na alma dos outros companheiros o mesmo desejo de encontrar soluções nacionais para problemas nacionais, ressuscitasse, neste momento.

    Ao terminar estas palavras, entregues aos riscos da improvisação, palavras que desejava mais orogênicas para esclarecer melhor o mecanismo espiritual do movimento que hoje celebramos, eu, que sei que meu tempo está esgotado, não quero descer da tribuna sem render minha homenagem aos companheiros daquelas noites heroicas, nas quais afrontávamos toda a burguesia de São Paulo, então mais reacionária do que nunca e afrontávamos rindo, porque sabíamos que a vitória estava com aqueles que preconizavam a necessária reforma da nossa mentalidade naquele fim de ciclo histórico.

    Lembro-me agora da hora quase crucial em que chamado Oswald de Andrade no palco de Teatro Municipal, onde uma então incompreensiva mocidade se reunia para nos vaiar da maneira mais violenta, após fazê-lo ler alguns inocentes trechos de seus “Condenados”, chamei Mário de Andrade para que lançasse o desafio renovador que era “Paulicéia Desvairada”, poema imprevisto, cheio de coragem e de confiança na capacidade de renovação da gente Brasileira.

    Quando o chamei, recordo-me de que Mário de Andrade hesitou. A vata tinha se tornado estertórea. Ele tremeu. Veio-me ao pensamento a figura de Cristo. Cristo no Getsêmane. Ele, que era Deus, também hesitara. Houve um instante em que pediu ao Pai que afastasse aquele cálice. Estava, porém, diante do inexorável. Era do destino que bebesse até a última gota o amargo fel daquela taça.

    Retive Mário pelo braço. Disse-lhe: “Você não pode deixar de dar sua mensagem”. E ele, já refeito e intrépido, gloriosamente, sofrendo, mas vitorioso, soltou seu grito inconfidente: “São Paulo, comoção da minha vida!…” a primeira estrofe da revolucionária “Paulicéia Desvairada”.

    Quero, desta tribuna, render uma homenagem a esses meus companheiros, uma saudade para os que morreram, hoje integrados no patrimônio das nossas glórias, e uma saudação aos que ainda vivem. Quero dizer, aos mortos e aos vivos que estão presentes nesta Casa, quer nos seus anais, dentro da Mensagem para aqui enviada pelo Presidente da República, em 1952, quer no carinho e na admiração dos meus pares, que ainda há pouco cobriram de palmas alguns dos seus nomes.

    Rendendo esta homenagem, com ela envio um pensamento a todos os modernistas do Brasil. (muito bem, muito bem. Palmas. O orador é vivamente cumprimentado)

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