O SEVERO MESTRE DA PALAVRARIA

    Lourenço Cazarré

    Conheci José Antônio Severo em Brasília, no começo de 2017, quando nós – jornalistas da Princesa do Sul exilados no Planalto, uma alegre e colorida comunidade de velhinhos – lançamos um livro intitulado “50 tons de rosa – Pelotas na ditadura”. O título era tão infeliz e infame que fez com que perdêssemos um prêmio literário importante. Mas, em compensação, aquilo que obramos recebeu um tremendo elogio do Severo:

    – O de vocês é o único livro sobre a ditadura que se lê dando gargalhadas.

    É verdade. Uma das partes mais divertidas do livro é aquela em que o Lúcio Vaz – que devassou os arquivos nefandos – reproduz os textos canhestros dos espiões da nossa “redentora” sobre os “perigosos” subversivos locais.

    Na própria sessão de lançamento, em um restaurante de pratos caros e pequenas porções, Severo embrenhou-se na leitura do opúsculo e o devorou. Alguém de nós tem a foto de um senhor elegante enfronhado na leitura em meio à badalação estéril.

    Caraoquê

    Um segundo contato ocorreu quando um antigo jornalista gaúcho e agora artista plástico paulistano, chamado Ênio Squeff – um turco nascido no meio da italianada da Serra -, me ligou informando que levaria um amigo para o jantar que teríamos naquela noite em minha casa. A reboque arrastou consigo o multi-instrumentista José Antônio Severo.

    Ao final da noite, vários escoceses derrotados – esvaídos, caídos sobre a mesa, sem fôlego para soprar suas obscenas gaitas de fole –, os dois setentenários senhores saíram incertos para a noite solitária.

    Baleado na asa, como diz o povo das nossas incultas cidades fronteiriças, o bem-comportado Ênio, que é mais bonito que o Omar Sharif, quis recolher-se logo à casa de seu filho que mora em Brasília, o economista Gabriel.

    Severo discordou. Tinha em mente um programa bem mais movimentado. Queria arrastar o otomano até um caraoquê, onde eles poderiam seguir palavreando e apojando.

    Não conseguiu. Squeff recolheu-se.

    Dono da cena

    Quem conheceu o Imperador de Caçapava do Sul sabe que, aonde quer que chegasse, o jornalista e escritor José Antônio Severo – que também andou dando uns tapas na arte cinematográfica – assumia a cena. Especialmente se a tomada estivesse sendo filmada em torno de uma mesa engarrafada.

    Como sempre fui apaixonado por História, identifique-me de imediato com aquele sujeito alto e desempenado nos seus setenta e tantos outonos. Era proprietário de uma invejável cabeleira integral e ligeiramente grisalha, ao contrário da minha, dez anos mais nova, porém totalmente branca e rarefeita na cumeeira.

    Os amigos que o conheceram jovem dizem que Severo era um pão, um galã do tipo portenho, sempre trajando ternos bem cortados e de cabeleira riscada na lateral e lambida com muito Glostora. Por esses distantes anos – asseguram seus invejosos parceiros -, sem muito esforço, José Antônio extraia fundos e enternecidos suspiros das criaturas do remotamente considerado sexo frágil.

    Pois bem, ao redor de uma távola, todo assunto que era levantado – político, histórico, econômico, comportamental ou artístico – Severo cortava.

     Sujeito de vastíssima cultura, para cada tema que pipocasse, ele tinha sempre uma informação desconhecida, inesperada, surpreendente.

    Curtido em décadas fumacentas ao redor de mesas de bar, ele cortava até mesmo quando estava, como dizia, batendo em retirada sem munição. Ou seja, dava umas talhadas na melancia mesmo quando seu conhecimento sobre a bobagem tratada era insuficiente.

    Como sabem os que estudam essa maravilhosa ciência que é conversa vadia de boteco, sempre desencontrada e perfeitamente inútil, o grande contador de história é aquele que descobriu, ainda jovem, que os fatos verdadeiros pouca ou nenhuma importância têm em uma noitada fluída.

    O que vale – dizem os poetas e os dementes – é o estilo, a técnica, a sintaxe, a prosopopeia. E, claro, a performance cênica: a tragada funda no mata-rato, a inclinação estudada do copo e a potência da voz. O vozeirão do Severo era daqueles de acuar guaipeca contra o alambrado.

    Historiador

    Depois de ler os dois volumes da obra de Severo sobre guerras no Sul da América, pensando elogiá-lo, eu disse a ele que, no meu imodesto entender, ele era, no fundo, um verdadeiro historiador, um redator de epopeias, lamentavelmente perdido para o ramerrame rasteiro do jornalismo.

    Eis que José Antônio, que era um lorde britânico, quase perdeu as cadernetas. Desencontrou-se de sua fleugma. Desatinou-se. Que não! Que era um repórter puro sangue! Um mastim farejador! Que havia dado um furo mundial sobre o preço ou produção de petróleo nos anos 1970, quando viajava frequentemente às Arábias. Que dirigira redações pesadas. Que criara um grande jornal televisivo. E por aí se foi.

    Não retruquei. Mas ainda mantenho o meu veredicto.

    Cavalheiro gentil e generoso

    Quando digo que José Antônio Severo era um gentleman londrino, eu me refiro também à maneira como ele era visto pelas donzelas. Era um cavalheiro às antigas. Sem a falsa cordialidade dos, hoje, politicamente corretos. Era um galanteador nato, porque herdara esse dom de seus ancestrais.

    Gentil e atencioso com as damas, ele era o exato contrário da maioria dos bárbaros barbados que, quando mamados, não prestam atenção às moças da mesa, quase sempre mais interessadas em discutir assuntos transcendentes e elevados. Como A Relação.

    A extrema generosidade é um outro traço que certas literaturas costumam conceder aos personagens cavalheirescos. Severo deu inúmeros exemplos de sua magnanimidade.

    Como exerceu muitos cargos de comandância, pode ajudar muitos colegas competentes que – pelas catástrofes quase diárias do jornalismo – se viram de repente de mãos abanando e privados do ganha-pão.

    Amigos contam, por exemplo, que Severo foi o elemento que conseguiu – em um tempo em que eram raros os agentes literários – a edição de um livro do jornalista gaúcho Walter Galvani sobre Pedro Álvares Cabral. Essa obra valorosa, fruto de vasta pesquisa, poderia ter naufragado numa editora pequena, mas o nosso herói obteve que fosse lançada por uma casa editorial de peso. O livro ganhou depois, inclusive, um destacado prêmio internacional.

    Craque das noitadas

    Deixo para os que conviveram com Severo nas muitas redações que ele chefiou brilhantemente a escritura das suas muitas histórias e vitórias no jornalismo.

    Com esse texto quero registrar apenas o carinho que eu sinto por um craque das noitadas, um mestre da palavraria e um terno e sequioso amante daquilo que a Escócia produz de melhor. Nas madrugadas que atravessamos juntos, jamais deixamos em pé um desses sujeitos que vestem saias xadrez.

    Numa época em que passava frequentemente pela loja livre de impostos do aeroporto, eu comprava a minha cota já pensando no Severo. E guardava os Joãozinhos Caminhadores verdinhos e dourados para o grande connoisseur e apreciador, sir Joseph Anthony.

    Lembro, ainda, o prestígio que Severo conquistou – com sua conversa cintilante – junto aos poucos jovens que frequentam aquela mesa que costuma receber, prioritariamente, pessoas da melhor idade.

    Melhor? Sei.

    Meu filho Érico, cineasta e jornalista, e meu genro Rafael, diplomata, ambos chegando aos quarenta, ficaram imediatamente cativos do charme desse imenso contador de boas histórias quando o conheceram.

    Escritor

    Passemos agora aos dois grandes livros – Rios de sangue e Cinzas do Sul – sobre os quais escrevi uma resenha em que ressalto importância e as peculiaridades desse trabalho historiográfico que mescla muito jornalismo com uma pitada de ficção.

    Reproduzo a seguir trechos do meu tratado severiano:

    “Leitor entusiasmado dos historiadores que narraram as incontáveis guerras, revoluções, revoltas, insurreições, quarteladas e rebeliões que sacudiram o Cone Sul entre os séculos 18 e 19, o jornalista gaúcho José Antônio Severo devorou também as negligenciadas obras publicadas em pequenas editoras por autores de final de semana. Para conferir, visitou os locais que foram palco das maiores batalhas travadas naquele período. E juntou a tudo isso conversas que, quando menino, escutava de seus ancestrais, participantes desses entreveros. Para amarrar o pacote, inventou um fio literário – a vida de um dos maiores militares brasileiros, o general Manuel Luís Osório, o marquês do Herval”.

    “Com uma carreira jornalística de mais de meio século, vivida em algumas das principais redações do país, José Antônio Severo escreveu em cerca de 10 meses 100 anos de guerra no continente americano, obra de dimensões pampianas, com um total de 1.089 páginas…”

    “Talvez se possa dizer que o grande mérito deste livro, além, claro, de sistematizar toda uma vasta e dispersa bibliografia, é a presença de um jornalista em uma seara quase sempre restrita a excessivamente contidos, ou por vezes derramados, historiadores”.

    “Com um texto ágil, claro e direto, despido dos conhecidos rococós retóricos característicos da América Latina, Severo esboça diante de seus leitores um quadro amplo e detalhado das lutas que acabaram por moldar os quatro dos países do extremo sul da América Latina”.

    “Repórter acima de tudo, o autor comparece com grande número de informações pouco ventiladas que surpreendem até mesmo ratos de biblioteca razoavelmente versados nesse tipo de literatura…”

    “…fala da introdução da alfafa em uma terra onde os pangarés só comiam grama rala; das carretas de bois que necessitavam de doze juntas para arrastar 80 arrobas; que o custo de um escravo era cinco vezes maior do que o de um imigrante europeu; conta que os caudilhos argentinos Rosas e Urquiza eram os dois homens mais ricos daquele país; que cada soldado de cavalaria arrastava consigo três rocins mal nutridos; que os fortíssimos cavalos de batalha, ferrados e alimentados a milho, só eram usados nas cargas; que os cavaleiros minuanos e charruas levavam um homem na garupa para lançá-lo dentro da linha de defesa dos brancos; descreve a tomada de Porto Alegre pelos guerreiros farroupilhas e de como eles a perderam depois de um porre geral e homérico; informa que dom Pedro II já era a favor da abolição em 1845 e que lamentava que ela não fosse aprovada no Parlamento por oposição das bancadas de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo; esmiúça a profunda ligação de Caxias com o Rio Grande do Sul por 20 anos (foi governador e senador pelo Estado); informa que para viajar a Mato Grosso a rota mais cômoda era a marítimo-fluvial, passando por Montevidéu e seguindo por rios interiores; que o Paraguai antes da guerra não tinha moeda, mas havia implantado a primeira linha de trem da América do Sul; que Solano Lopez em sua fuga final conduzia sua mãe e sua irmã, prisioneiras, em uma jaula; que o espião do Paraguai em Montevidéu era o embaixador português; e lamenta os imensos prejuízos trazidos por esses conflitos sempre acompanhados de saques e violações”.

    Dedicatória

    Cerca de dez dias antes da morte de José Antônio Severo, minha editora, Sônia Junqueira, das editoras Autêntica e Yellowfante, sugeriu-me que colocasse uma dedicatória no livro Amor e guerra em Canudos – novela juvenil que tem a cidade de Antônio Conselheiro como cenário.

    Lasquei:

    Para José Antônio Severo, meu historiador favorito, dedico este livro que ele leu quando ainda era um esboço.

    Eu queria fazer uma surpresa a ele. Creio que se alegraria muito, embora sempre ficasse meio sestroso e desconfiado quando eu dizia que ele era “O Heródoto da pampa”.

    Infelizmente, José Antônio não receberá o primeiro exemplar autografado, como eu planejava. Eu o enviarei para Célia, sua esposa.

    Célia e sua irmã Celma, que formam uma consagrada dupla musical, brindaram nossa confraria com um breve e delicioso recital quando vieram com Severo a Brasília.

    PS1. Detalhe sob o qual eu jamais falarei, mesmo sob ameaça de ser guilhotinado: o grande Severo, ao ler esse meu livro no original, descobriu um erro histórico que havia escapado à minha – e de outros desatentos – revisão. Sem Severo, o livro sairia com uma barrigada.

    PS2. Depois dessa “barrigada”, só nos resta, a nós, velhos jornalistas, dos tempos de Remington e Olivetti (não eram jogadores de futebol, viu, garotada?), encapar nossas máquinas de escrever e sair em busca de um boteco pé-sujo para beber uns licores em memória dessa figuraça inesquecível.

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