O conflito do TIPNIS na Bolívia e a sabotagem ao desenvolvimento na América Latina

    Não é de hoje o uso para fins geopolíticos das contradições sociais internas de terceiros países em prol de objetivos estratégicos. No século XIX, o Brasil perdeu parte de seu território para a Guiana Britânica, na conhecida Questão do Pirara.

    As origens do acontecimento remontam às expedições do geógrafo Robert Hermann Schomburgk e à instalação de missionários na região, além do pretexto de defesa de populações indígenas supostamente oprimidas pelos brasileiros na localidade. Mais contemporaneamente, tais instrumentalizações servem não apenas ao fomento de conflitos nacionais internos, mas também à inviabilização de obras de infraestrutura cruciais para o desenvolvimento econômico-social de países periféricos, consolidando um panorama de congelamento da exploração dos recursos naturais lá existentes.

    Apesar da recorrência de tais manobras, o desconhecimento acerca de suas dinâmicas ainda é muito grande, tendo em vista a acrítica defesa do ambientalismo e do indigenismo nos meios acadêmicos, políticos e midiáticos que desconsideram suas implicações geopolíticas.

    Um episódio interessante a ser resgatado é o que envolveu o governo de Evo Morales na Bolívia, um reconhecido defensor das bandeiras indigenistas (e responsável direto pelo reconhecimento da Bolívia como um Estado “Plurinacional”), quando da tentativa de execução de importante obra de infraestrutura no país.

           Em 2011, já estavam em curso as obras dos trechos 1 e 3 de uma rodovia projetada para ligar Villa Tunari, no departamento de Cochabamba, a San Ignacio de Moxos, em Beni, reduzindo o trajeto entre as duas localidades de 900 para 300 km e garantindo a integração da zona economicamente mais ativa do país à região amazônica, carente de infraestrutura e serviços públicos adequados. A obra contava com ativa participação e cooperação brasileira, envolvendo financiamento concedido pelo BNDES e execução pela OAS.

    Bolivian-Venezuelan Military construction team begins work on ...

           Fundamentalmente, o projeto abrangeria distintas dimensões de conteúdo estratégico para a Bolívia. Primeiramente, ao garantir acesso da população local aos serviços públicos elementares – do fornecimento de água potável, à construção de escolas e o acesso a mercados para venderem seus produtos (até então, podiam tardar até uma semana em balsas para vender seu arroz ou comprar sal, numa cotação quase dez vezes mais cara que nos armazéns dos demais povoados). Também por integrar a distante e isolada região amazônica ao Ocidente boliviano, contribuindo para o desenvolvimento e maior presença do Estado na região, e, por consequência, evitando uma série de irregularidades e atividades ilícitas lá executadas.

    E, por fim, a obra reduziria as tendências separatistas que agiam sobre Beni. Afinal, cabe lembrar que em 2008 foi desarticulada insurgência separatista envolvendo os departamentos de Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija, na chamada “Meia-Lua” (com notório apoio diplomático dos Estados Unidos da América, que acabou tendo seu embaixador expulso da Bolívia).

           No entanto, grande polêmica foi alçada devido ao projeto referente ao trecho 2 da rodovia, que atravessaria o Território Indígena Parque Nacional Isiboro-Sécure (TIPNIS), uma área de proteção socioambiental com 1,1 milhão de hectares, povoada por cerca de 12 mil pessoas – maioria de bolivianos dos povos moxenho, yucaré e chimane.

    E apesar dessas vantagens inerentes à construção da rodovia, movimentos sociais de viés indigenista e ambientalista mobilizaram uma marcha de mais de 500 km em direção à capital La Paz, exigindo que o governo realizasse consulta prévia à população local acerca do projeto. Na contramão dessas organizações, uma série de entidades indígenas e camponesas manifestaram apoio ao governo, e no caminho da marcha ocorreram confrontos entre forças policiais e os manifestantes, com a consequente divulgação na mídia nacional e internacional gerando repúdio da opinião pública ao que seria uma postura “intransigente” de Evo.

    Ao chegar em La Paz, a marcha foi recebida por grande contingente populacional em seu apoio, num contexto de comoção pública com as imagens dos confrontos, levando dois ministros do governo a renunciarem aos seus postos. Diante do episódio, Evo suspendeu a execução das obras, e aceitou realizar a consulta pública, efetuada em 2012, quando das 55 das 58 comunidades consultadas decidiram apoiar o projeto.

    Tempos após o marcante episódio, chegou a La Paz uma marcha de indígenas das terras baixas com maior presença de comunidades do TIPNIS, demandando a construção da estrada argumentando a impossibilidade de seguirem à margem dos direitos à saúde, educação e transporte (que até então apenas conseguiam acessar depois de dias de caminhada em direção aos povoados vizinhos!). Coincidentemente, tal marcha não contou com a ampla rede de cobertura midiática nacional e internacional da anterior, tampouco com o apoio de ativistas supostamente defensores dos povos indígenas.

           Como destacou o vice-presidente boliviano de então, Álvaro García Linera, as manifestações contrárias ao projeto envolveram, fundamentalmente, alguns povos indígenas das terras baixas, sendo que as comunidades indígenas das terras altas e vales (mais de 95% da população indígena da Bolívia) mantiveram o apoio ao governo. Não menos importante, destacou que “a maior parte eram dirigentes de outras áreas que não precisamente do TIPNIS, mas que contam com um apoio sistemático de organismos não-governamentais ambientalistas, vários deles financiadas pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID)”. E nesse mesmo sentido, reiterou que foram registradas uma série de chamadas telefônicas entre lideranças do protesto envolvendo TIPNIS com a embaixada estadunidense, que teve grande participação na promoção dos embates.

    Cabe mencionar que a participação de ONGs financiadas por potências norte-atlânticas em tal evento não é desinteressada, e se articula com iniciativas semelhantes efetuadas no plano regional. Além de desgastarem politicamente o governo – e as próprias iniciativas brasileiras de financiamento da integração de infraestrutura na América do Sul, via BNDES -, visaram obstruir a maior presença do Estado na região amazônica e mesmo na gestão de TIPNIS, onde, conforme o documento “Que se esconde detras del TIPNIS”, são exercidas toda sorte de irregularidades, que vão desde o contrabando de madeira até a promoção de atividades turísticas, de pesca e caça ilegais.

    As redes estadunidenses de financiamento tiveram papel preponderante nas mobilizações, tanto por meio de ONGs como o Centro para a Democracia, a Avaaz, e a Amazon Watch (vinculadas à Fundação Rockefeller, à Fundação David e Lucile Packard, à Fundação Ford, dentre outras) quanto no ativo patrocínio, via USAID, à principal organização indígena envolvida nos atos, a Confederación de Pueblos Indígenas del Oriente Boliviano (CIDOB). No arco mais amplo das ONGs norte-atlânticas ativas no episódio, consta, por exemplo, a WWF, vinculada à Casa de Windsor (coroa britânica), também com ampla atuação nos esforços de obstrução aos projetos brasileiros de viabilização de hidrovias, hidrelétricas e rodovias na região amazônica, bem como ao desenvolvimento de energia nuclear (com mobilizações contrárias ao Programa Nuclear Brasileiro e à construção de Angra 3).

    As nuances por detrás de conflitos como os protagonizados contra a construção da rodovia boliviana não são, portanto, exceções diante do conjunto mais amplo das contendas envolvendo as agendas ambientalistas e indigenistas na América Latina. O necessário entendimento do papel exercido pela ingerência encoberta das grandes potências em tais eventos constitui, consequentemente, uma inexorável tarefa daqueles que prezam pela verdadeira defesa do desenvolvimento econômico-social, do meio-ambiente e das populações indígenas. Caso contrário, a dicotomia entre negacionistas e defensores acríticos de tais pautas permitirá que, mais uma vez, nossas contradições internas sejam instrumentalizadas por interesses exógenos, cujas finalidades passam longe da garantia do bem-estar e avanço civilizacional de nossos povos.

    Tiago Soares Nogara
    Tiago Soares Nogara: Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), da Universidade de Brasília (UnB), e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (GEPSI)

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    5 COMENTÁRIOS

    1. Rockefeller e ford: duas desgraças que atormentam o terceiro mundo, agora ” pomposamente rebatizado de países emergentes” . Os assassinos do norte precisam aprender uma grande lição .

    2. Os estados unidos espalham desgraças derramando sangue de inocentes: são patriotas mas são assassinos.

    3. Rockefeller e ford: duas desgraças que atormentam o terceiro mundo, agora ” pomposamente rebatizado de países emergentes” . Os assassinos do norte precisam aprender uma grande lição .

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