Não deu nem para o café: a desnacionalização do setor cafeeiro

    Os amantes do futebol certamente se lembrarão daquele que talvez tenha sido, em seu conjunto, o escrete mais talentoso da história: a seleção brasileira de 1982 dirigida por Telê Santana.

    Zico, Éder, Toninho Cerezo, Luizinho, Falcão, Sócrates e demais craques vestiam a famosa camisa canarinho, trazendo no peito o escudo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com o desenho de um raminho de café, resultado de um acordo de patrocínio com o Instituto Brasileiro de Café (IBC).

    Nada mais emblemático, para a época, que a Seleção Brasileira – nas palavras de Nelson Rodrigues[1], “a pátria de chuteiras” -, literalmente vestisse a camisa da cafeicultura brasileira.

    Poucos produtos simbolizaram mais o Brasil, durante tanto tempo, como o café. Embora seja originário da região da Etiópia, na África, desde sua chegada ao País, no ano de 1727, adaptou-se muito bem ao nosso clima e foi, por dois séculos, fonte de riqueza e o produto mais importante da história nacional.

    Por mais paradoxal que possa parecer, a cafeicultura impulsionou a industrialização brasileira na medida em que contribuiu imensamente com o processo de acumulação de capital e desenvolvimento de uma infraestrutura interna necessária às atividades comerciais relacionadas ao produto.

    O café representou para o Brasil o que a cana-de-açúcar significou para Cuba ou o algodão aos Estados Unidos no início do século passado. Como ressalta Ferreira (2016), “não dispondo de capital como fator de produção, mas apenas terra e mão-de-obra, a economia brasileira encontra no café o seu salvador da pátria”. Ainda segundo esse autor, na medida em que se intensificava a expansão cafeeira a renda interna da economia se elevava, o que permitiu potencializar um mercado interno de consumo “a ser abastecido tanto por importações quanto pela indústria interna de bens de consumo não-duráveis (indústria têxtil, alimentos, etc.)” (FERREIRA, 2016).

    De acordo com Simonsen (2005) “o café só começou a aparecer, como valor nacional apreciável, em 1820”. Mas de acordo como Furtado (2013):

    “no primeiro decênio da independência o café já contribuía com dezoito por cento do valor das exportações do Brasil, colocando-se em terceiro lugar depois do açúcar e do algodão. E nos dois decênios seguintes já passa para primeiro lugar, representando mais de quarenta por cento do valor das exportações” (FURTADO, 2013).

    Na proteção da economia cafeeira, o Estado Nacional não hesitou em promover as mais variadas ações. Com a grande Depressão de 1929 e seus desdobramentos no Brasil nos anos seguintes, o Estado brasileiro, liderado por Getúlio Vargas, viu-se obrigado a intervir em favor desta importante commodity.

    Para se ter uma ideia do impacto desta crise na economia brasileira (o Brasil participava de 60% do mercado internacional do café), dois meses antes da implosão da bolsa nova-iorquina, ou seja, agosto de 1929, a saca do café estava cotada no mercado internacional em 200 mil réis. Já em janeiro de 1930 despencou para 21 mil réis (FUCS, 2008).

    Uma das soluções encontradas pelo estadista Getúlio Vargas na época foi queimar aproximadamente 70 milhões de sacas ao longo dos meses. Monteiro (2018) afirma que:

    “Segundo jornais da época, o cheiro de café queimado percorria os diversos municípios do litoral paulista, e só era contido pela Serra do Mar. A quantidade de café queimada, dizem os historiadores, poderia suprir o consumo mundial durante três anos” (MONTEIRO, 2018).

    Diversas outras medidas foram adotadas pelo Estado brasileiro com o propósito de proteger os interesses da cafeicultura brasileira. O próprio Instituto Brasileiro do Café (IBC), vinculado ao Ministério da Indústria e do Comércio, com jurisdição em todo o território nacional, foi criado por Getúlio em 1952.

    O fato é que todo o esforço nacional em se defender a indústria e a agropecuária brasileira sofreu forte oposição de expressivo segmento da burguesia nacional. Nada mais emblemático que o próprio IBC tenha sido extinto em 1990, na primeira experiência neoliberal brasileira conduzida pelo presidente Fernando Collor de Mello.

    É justamente a partir da implementação e consolidação das teses neoliberais no Brasil, a partir da década de 1990, que a economia nacional, inclusive o setor cafeeiro, é torrada e moída, entregue à sorte em sua pretensa livre concorrência. O Estado Nacional, outrora indutor do crescimento, assiste de camarote a aquisição de várias empresas nacionais por multinacionais estrangeiras.

    Em matéria veiculada no Jornal Valor Econômico do dia 2 de maio de 2019, intitulada “Louis Dreyfus expande suas operações de café em Minas”[2] é possível se ter uma ideia da força das multinacionais na cadeia produtiva nacional do café na atualidade. Com o predomínio do neoliberalismo, as multinacionais agrícolas estrangeiras avançam no espaço agrário brasileiro.

    A companhia francesa Louis Dreyfus Company (LDC), quinta maior exportadora de café do País, expande agora seus negócios para o centro da cafeicultura nacional. Segundo a reportagem, seu terceiro armazém dedicado à cultura, localizado na cidade mineira de Matipó (pouco mais de 20 mil habitantes), “tem capacidade para 500 mil sacas de 60 quilos, investimento de US$ 15 milhões e 23 mil metros de área construída, a unidade começou a receber a produção da região da mata mineira e montanhas do Espírito Santo, segunda maior produtora de café arábica do país, no fim de junho do ano passado e a beneficiar os grãos destinados à exportação em dezembro”.

    Os outros dois armazéns da multinacional, dedicados à cultura no país, estão localizados em Varginha, sul de Minas, com capacidade para 500 mil sacas de café arábica, e em Nova Venécia, no Espírito Santo, voltado para o café conilon e com capacidade para cerca de um milhão de sacas.

    Figura 1: Armazém de café da Louis Dreyfus Company (LDC) em Matipó/MG. Fonte: Valor Econômico.

    Em que pese a vultosa participação da LDC na cadeia produtiva do café ainda ser pouco conhecida pelo brasileiro, não se pode dizer o mesmo da consagrada multinacional suíça Nestlé.

    Outra reportagem da Revista IstoÉ do dia 17 de abril de 2019 informa sobre a expansão dos negócios em café da Nestlé no Brasil, contrariando todos os prognósticos da crise econômica vivida no País. Em matéria intitulada “Nestlé investe R$ 300 milhões e lança cafés Starbucks no varejo”[3], é anunciada a aposta da empresa “no setor de cafés premium, que incluirá o lançamento da linha Starbucks e o uso da marca Nescafé além do grão solúvel”.

    A multinacional Suíça possui, no total, 25 fábricas em operação no Brasil e, “depois de 66 anos produzindo café solúvel e de 13 anos vendendo cápsulas, a fabricante entrará no segmento de torrado e moído com as marcas Nescafé e Starbucks. A empresa estuda a melhor forma para explorar em cafeterias suas outras marcas Nespresso, Dolce Gusto e Nescafé”. De acordo com o seu presidente no Brasil, Marcelo Melchior, citado na supracitada reportagem, “a ideia é nacionalizar a produção da Starbucks a partir de 2020, em especial as cápsulas para as máquinas Dolce Gusto”.

    Figura 2: Linha de café Starbucks. Fonte: Estadão.

    De cada três xícaras consumidas no mundo, uma é brasileira. Todavia, como alerta o Relatório Internacional de Tendências do Café, do Bureau de Inteligência Competitiva do Café de 2017,

    “o mercado brasileiro do produto industrializado tem se mostrado cada vez mais concentrado, pois, atualmente, as três maiores empresas do setor que operam aqui são responsáveis por mais de 50% das vendas. Dessa forma, para as pequenas e médias torrefadoras que beneficiam e vendem o café ‘tradicional’ o desafio para atuar nesse mercado altamente competitivo e acirrado é cada vez mais difícil”[4].

    Se esta concentração do mercado brasileiro de café já é algo preocupante, agrava-se o fato de ela se agrupar nas mãos estrangeiras. De acordo com reportagem divulgada no jornal Folha de S.Paulo do dia 24 de janeiro de 2017, assinada pelo jornalista Mauro Zafalon e intitulada “Vaivém das commodities”[5], a compra de indústrias brasileiras por estrangeiros se acentuou nos últimos anos. “Entre as seis principais empresas do setor, apenas uma é de capital nacional, a Maratá, que atua no Norte e no Nordeste”.

    Nesta mesma matéria foi anunciada a intenção de compra da gigante mundial do setor de café e chás, a holandesa JED (Jacobs Douwe Egberts) “de adquirir no Brasil o portfólio de marcas locais de café torrado e moído da Cacique. A empresa brasileira manterá os negócios com o café solúvel”. Emblemático o fato de, entre as marcas de café da Cacique estar o tradicional café Pelé, símbolo de nossa “pátria de chuteiras”.

    Igualmente simbólico que uma cultura agrícola tão identificada com nosso povo, nossa história e nossa nação, sirva como exemplo inequívoco do grave processo de desindustrialização e desnacionalização da economia brasileira. A resistência de setores nacionalistas e democráticos vem demonstrando ser “café pequeno” para os apologistas do neoliberalismo que assumiram o poder no Brasil.

    REFERÊNCIAS:

    FERREIRA, M. A importância do café na origem da economia brasileira. Portal GGN. Disponível em: https://jornalggn.com.br/historia/a-importancia-do-cafe-na-origem-da-economia-brasileira-por-marcio-ferreira/. Acessado em: 04 set. 2020.

    FUCS, J. Do café à industrialização. Revista Época. Dez, 2008. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI20415-15227-1,00-DO+CAFE+A+INDUSTRIALIZACAO.html. Acessado em 04 set. 2020.

    FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. 34a Edição. São Paulo: Cia das Letras, 2013.

    MONTEIRO H. A história da queima de 31. Disponível em: http://blog.clubecafe.net.br/historia-da-queima-de-31/. Acessado em 04 set. 2020.

    SIMONSEN, R. C.: 1500-1820. – Brasília: Senado História Econômica do Brasil – Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. 589 p. – (Edições do Senado Federal; v. 34).


    [1] Nelson Falcão Rodrigues foi um escritor, jornalista, romancista, teatrólogo, contista e cronista de costumes e de futebol brasileiro. Sua obra, A Pátria de Chuteiras encontra-se disponível em: http://joinville.ifsc.edu.br/~luciana.cesconetto/Textos%20teatrais/Nelson%20Rodriques/NELSON%20RODRIGUES%20-%20A%20Patria%20de%20Chuteiras.pdf

    [2] Disponível em: https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2019/05/02/louis-dreyfus-expande-suas-operacoes-de-cafe-em-minas.ghtml.

    [3] Ver em: https://istoe.com.br/nestle-investe-r-300-milhoes-e-lanca-cafes-starbucks-no-varejo/.

    [4] Relatório Internacional de Tendências do Café. Bureau de Inteligência Competitiva do Café. Vol. 6, N. 9, out. 2017. Disponível em: http://www.consorciopesquisacafe.com.br/arquivos/consorcio/publicacoes_tecnicas/Relatorio_v6_n_09.pdf.

    [5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vaivem/2019/05/vaivem-das-commodities-acompanha-30-anos-de-revolucao-do-agronegocio.shtml

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    Luciano Rezende Moreira é doutor na área de melhoramento genético de plantas (UFV), mestre em entomologia (UFV) e especialista em Manejo Integrado de Pragas (UFLA). É graduado em agronomia (UFV), geografia (Uerj) e administração pública (UFF). Atualmente é professor no Instituto Federal de Brasília (IFB).

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    4 COMENTÁRIOS

    1. Multi nacional é um problema pra cafeicultores Brasileiros abaixo o preço do café aí fica difícil pra o produtor do café assim fica difícil pra o produtor continuar com o café. O custo do café durante o ano é bem caro. Com mão obra adubação limpeza do café veneno para bicho mineiro final a colheita

    2. Isto é preocupante cada vez mais vamos ficando espremidos na mão das multi assim como já acontece com os insumos ,temos que pagar o preço que eles foram sem muita chance de negociação

    3. eu como pequeno produtor sem bem os efeitos,que esse cartel das multinacionais fazem ou até mesmo manipulam os preços
      Depreciado fazendo que cada vez mais os atravessadores e a ponta da cadeia produtiva ficando com a maior parte do lucro

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