Lula tem todo o direito de questionar o nível de juros e a independência do Banco Central

    Duvidar dos dogmas da religião e da onisciência do Banco Central são coisas que não se admite. Com uma diferença: no primeiro caso você será chamado de herege ou comunista; no último, de ignorante. Trata-se, entretanto, igualmente de dogmas que prescindem de qualquer explicação racional, é preciso apenas ter fé.

    Mas não queremos entrar aqui na discussão se os juros, no Brasil, estão muito altos ou não, se o Banco Central está certo ou errado em manter a taxa em 13,75% ao ano, embora, diante do que ocorre mundo afora, não parece razoável que o Brasil precise da taxa real de juros mais alta do mundo para manter a inflação controlada. Imagine se estivéssemos em guerra como a Rússia, cuja taxa está em 7,5% ao ano.

    A questão aqui é outra: porque a crítica que o presidente Lula fez ao atual nível de juros gerou tamanha gritaria do mercado e na imprensa “especializada”?. Chegou-se ao cúmulo de afirmar que as decisões do Banco Central são baseadas na ciência, como as vacinas, e as críticas são pura retórica, ao estilo dos negacionistas e terraplanistas (vide artigo publicado na Folha de S. Paulo em 20/02: No debate sobre juros, ortodoxos têm a técnica, e heterodoxos têm a retórica).

    Por acaso, o presidente da República tem menos legitimidade que o presidente do Banco Central para falar de um assunto que interessa a todo o País?

    As expectativas futuras da inflação, com base na qual são definidas as taxas de juros, são alimentadas pelas próprias autoridades monetárias, ou seja, a diretoria do BC, em parceria com as instituições financeiras, ao venderem os títulos da dívida pública com prazos mais longos a determinadas taxas de juros e não o contrário, como querem nos fazer crer os que dizem que “o mercado” não aceita financiar o governo a juros mais baixos. Tudo o mais ,é a curva de juros futuros que alimenta a expectativa de inflação e não o contrário. Caímos, assim, em um círculo vicioso, no qual os juros alimentam a expectativa de inflação que alimenta os juros.

    Os títulos públicos serão comprados pela taxa que o BC definir, mesmo que o juro seja baixo. Que alternativa teriam os rentistas? Transformar uma massa monumental de dinheiro, ancorada em títulos públicos, gerando renda sem nada produzir, em consumo e provocar uma hiperinflação? Anos seguidos de juros baixos mostram que essa hipótese é remota. Na Europa, até recentemente, os juros eram negativos e nem por isso a inflação disparou ou os governos deixaram de se financiar.

    A verdade é que, no Brasil, o sistema da dívida pública é uma poderosa máquina de transferir dinheiro do governo, ou seja, dos impostos pagos pela população em geral, para quem vive de renda ou tem na renda não gerada pelo trabalho uma parcela importante de sua renda total. A taxa de juros define o diâmetro do cano pelo qual o dinheiro é bombeado dos cofres públicos para os rentistas: quanto mais largo, melhor.

    Dizer que esses juros são definidos por decisões técnicas, com base “na ciência”, é, para ser educado, pura mistificação. Mesmo porque as causas principais da inflação atual no Brasil não estão no lado da demanda, ou seja, no excesso de consumo, mas no lado da oferta: preço dos combustíveis, das commodities, provocados por causas externas. É óbvio que quanto maior a taxa de juros, mais caro será o crédito e menos as pessoas vão consumir, mas querer baixar a inflação dessa forma seria, digamos, como querer resolver o problema da violência urbana trancando as pessoas em casa. Pode até funcionar, mas os crimes ocorrem não é porque as pessoas saem na rua. Da mesma forma, a causa da inflação não é porque as pessoas estão consumido muito; muito pelo contrário, pois a renda do trabalho não tem aumentado.

    O presidente faz bem em questionar o nível de juros e cabe aos que assim o definiram explicar-se não só para ele, mas para toda a sociedade. O problema é que, além de dizer que utilizam um modelo que vê a inflação sempre como um problema de demanda, baseado na já superada teoria quantitativa da moeda, que vê a inflação como um fenômeno puramente monetário, ou seja, quanto maior o volume de dinheiro em circulação, para um dado nível de produção, maior o nível de preços, não teriam muito mais o que dizer.

    Na falta de melhores argumentos, resta fazer terrorismo: ah, se a expectativa da inflação se desancorar por causa da política fiscal frouxa a inflação dispara, então é preciso uma política monetária mais apertada para compensar a irresponsabilidade fiscal do governo. Mas quem disse que o governo quer fazer uma política fiscal irresponsável? Quem disse que o governo quer gastar por gastar? A única coisa que o presidente disse é que é preciso colocar os pobres no orçamento e fazer o País voltar a crescer. Isso seria uma senha para a irresponsabilidade fiscal? Por que querer gastar dinheiro com pobre e investimento sinaliza uma tendência à irresponsabilidade fiscal e aumentar os juros e, consequentemente, a dívida pública, não? Por que, como disse o presidente, o pagamento dos juros não incomoda o mercado financeiro? Juros mais altos significa maior custo para a rolagem da dívida pública e, consequente, uma das principais causas para o desequilíbrio fiscal!

    Para manter um orçamento equilibrado não seria razoável começar gastando menos com pagamento de juros? Outra coisa: por que o presidente não pode questionar os juros mais altos se quem paga a conta, em última instância é o próprio governo? Ou seria o Banco Central um “país amigo” que nos ajuda a sustentar um padrão de vida incompatível com nosso nível de renda? De onde o Banco Central tira o dinheiro para pagar os juros que ele próprio aumenta? Produzindo comida ou manufaturas e vendendo-as no exterior? É óbvio que não. O Banco Central aumenta o gasto, mas quem paga é o Tesouro, ou seja, todos os brasileiros que trabalham e pagam impostos.

    Faz sentido, nessas condições, um Banco Central independente? Independente de quem? De quem em última instância vai pagar a conta dos juros que o BC aumenta, ou seja, o governo. Como se vê, há uma enorme mistificação em torno do assunto, a começar pelo fato de que colocar em dúvida a capacidade do governo de pagar suas dívidas com a moeda que ele mesmo emite não faz o menor sentido.

    A justificativa de que os juros mais altos são necessários para convencer os bancos e os rentistas a emprestar para o governo porque estes ficam em dúvida se o governo será capaz de pagar suas dívidas quando o gasto público aumenta também não tem o menor sentido. De fato, isso poderia fazer sentido se quem estivesse tomando emprestado fôssemos nós, que dependemos do que ganhamos para pagar nossas dívidas. Mas não é no caso do governo, a começar pelo fato de que ninguém que se endivida na moeda que ele mesmo emite vai ficar inadimplente algum dia. Segundo, porque o sistema da dívida pública depende da rolagem permanente das dívidas do governo para continuar a existir. Que alternativa teriam os bancos para aplicar a enorme massa de dinheiro que eles mesmos criam? Alegar, portanto, risco de calote para cobrar juros estratosféricos não tem nada de científico. Descartada a hipótese da ignorância, que não é o caso, porque os que decidem o nível de juros o fazem com base “na ciência”, só resta uma hipótese: má fé de todos os que rezam diariamente essa ladainha para nós, os “ignorantes”.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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