Intérpretes do Brasil – Josué de Castro

Josué de Castro (Recife, 1908 – Paris, 1973) foi um dos mais importantes médicos e cientistas sociais do Brasil. Destacou-se nacional e internacionalmente pelos seus estudos sobre a fome e pela sua ação política para combatê-la, tendo sido presidente do da Comissão Nacional de Bem-Estar Social do segundo governo Getúlio Vargas, presidente Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e embaixador brasileiro na Organização das Nações Unidas (ONU).

Em suas obras mais conhecidas, Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), ele investiga os diferentes padrões alimentares e da fome ao longo da variedade do espaço geográfico e de acordo com as distintas manifestações culturais humanas. Para ele, a agricultura, como fornecedora de alimentos, seria uma questão de saúde pública e, portanto, política, que deveria merecer toda atenção no sentido do seu desenvolvimento e da sua capacidade de alimentar toda a população mundial.  

O Prêmio Josué de Castro é oferecido pelo Conselho de Segurança Alimentar do governo do estado de São Paulo.

Josué de Castro polemizou abertamente contra o economista britânico Thomas Malthus (1766-1834), formulador do chamado malthusianismo, e contra os seus seguidores neomalthusianos no século XX, como Fairfield Osborn (1857-1935) e William Vogt (1902-1968), predecessores das correntes hegemônicas do ambientalismo.  Para Malthus e seus discípulos, a fome seria resultado do excesso de população frente à capacidade do meio físico de suprir os alimentos necessários, de modo a ser imperativo reduzir a população e controlar os nascimentos, inclusive pelo impedimento da assistência social aos mais desfavorecidos.  

Josué de Castro, alternativamente, acentuou que, graças aos avanços técnico-produtivos na agricultura, o crescimento da produção agrícola havia se tornado superior ao das populações. O malthusianismo havia sido refutado pela própria realidade. Como afirma o autor: “O caminho da sobrevivência do mundo não está, pois, nas tentativas prescritas pelos neomalthusianos, da eliminação dos excessos de gente, nem no controle dos nascimentos, mas na tentativa de tornar produtiva toda a gente que vive na superfície da terra. Não há fome e miséria no mundo porque existe gente demais, e sim porque há pouca gente para produzir e muita para comer” (Geopolítica da Fome, p. 509).

Em sua concepção, a fome é uma realidade social, não natural, pois se origina não da escassez intrínseca do meio, mas de uma estrutura política, econômica e social, nacional e internacional, concentradora de riquezas nas mãos de poucos e desfavorável à satisfação das necessidades da maioria das pessoas. Um problema, portanto, de desenvolvimento e de distribuição, a ser combatido por uma organização e por um direcionamento social da política e da economia, que colocasse o poder, a técnica e o dinheiro a serviço das pessoas e não o contrário.

Willian Vogt, ecologista e ornitólogo, neomalthusiano, partidário do controle populacional, cujas teses foram combatidas por Josué de Castro.

No caso do Brasil em particular, estudado em profundidade em Geografia da Fome, constituiu uma das suas preocupações centrais o fato de haver uma realidade social de penúria material generalizada em um País onde a amplíssima extensão territorial e a riqueza e fertilidade dos quadros climáticos e botânicos proporcionariam as condições para nutrir e sustentar com dignidade uma população bem maior que a então existente. Das cinco regiões alimentares brasileiras por ele classificadas – a saber: Amazônia, Mata do Nordeste, Sertão do Nordeste, Centro-Oeste e Extremo-Sul – são consideradas áreas de fome as três primeiras, justamente as menos desenvolvidas do ponto de vista produtivo e mais rígidas do ponto de vista da mobilidade social. Em todo o País, contudo, “a alimentação do brasileiro tem-se revelado, à luz dos inquéritos sociais realizados, com qualidades nutritivas bem precárias” (Geografia da Fome, p. 42).

A estrutura econômico-social do Brasil impediria o adequado aproveitamento das possibilidades geográficas de alimentação. Na Amazônia, a rarefação demográfica e o estado rudimentar da infraestrutura e da técnica impediriam a devida colonização da região e tornariam o ser humano vítima da implacabilidade da floresta equatorial, naturalmente pobre em alimentos. Na Zona da Mata nordestina, apesar da imensa facilidade natural para o cultivo de frutas e hortaliças, a presença secular do latifúndio monocultor, principalmente açucareiro, desperdiçaria o enorme potencial agrícola da região e criaria uma situação social de fome crônica que atingiria, inclusive, as famílias rurais mais abastadas. No Sertão do Nordeste, o quadro alimentar seria mais favorável, pois, tradicionalmente, a policultura e a pecuária de subsistência seriam predominantes. Contudo, o flagelo da seca, piorado pela ausência ou precariedade do suporte público à construção de infraestruturas como cisternas e açudes, criaria períodos de intensa fome, e, consequentemente, mortalidade, êxodo e doenças, além de propiciar as condições sociais para o cancageirismo e o beatismo. Assim, “o sertão nordestino vive até hoje a sua Idade Média” (Geografia da Fome, p. 239).

A superação desse quadro passaria, pois, pelo desenvolvimento e pela integração nacionais, condições básicas a realização da cidadania e da justiça social. Josué de Castro não se contentava com o simples assistencialismo, com a filantropia. Para ele, a fome e a subnutrição eram um problema político, de organização nacional, e não de caridade individual. O Estado deveria, então, aplicar uma política alimentar incorporada em uma política de desenvolvimento, de modo a expandir e melhorar os meios de produção, de armazenamento, de transporte e de comunicação em todo o País, incorporar um maior nível técnico à agricultura, à indústria e à agroindústria, distribuir terras aos produtores e combater o latifúndio improdutivo, fomentar a policultura e o cooperativismo e direcionar crédito para essas atividades. O Estado deveria, então, trabalhar em conjunto com a sociedade e os verdadeiros empresários, voltados à economia real, para promover o bem-estar social no quadro do desenvolvimento soberano da Nação. 

Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, editados pela Brasiliense.

No âmbito internacional, analisado em Geopolítica da Fome, o autor demonstrou como a fome, em suas mais variadas manifestações, relacionava-se com a subjugação imperialista/colonialista dos países e com a exploração das suas populações e dos seus recursos naturais com o fito de enriquecimento de minorias abastadas nos centros capitalistas. Apesar da grande incidência de raquitismo em metrópoles centrais como Nova Iorque e Chicago e em vários países europeus, seriam nos países do chamado Terceiro Mundo, na Ásia, na África e na América Latina, onde a fome campearia em maior intensidade. Na concepção do autor, as consequências do imperialismo dos países centrais sobre suas colônias seriam equiparáveis aos horrores do nazismo, que tinha por objetivo subjugar e esfomear a Europa e, a partir dali, o resto do mundo.

A solução para fome em escala mundial estaria, portanto, na abolição de todo tipo de espoliação colonial e no estabelecimento de uma efetiva e verdadeira cooperação internacional, no âmbito das recém-criadas Nações Unidas, no sentido de auxílio recíproco ao desenvolvimento de todos os países, sejam capitalistas ou socialistas, mas, sobretudo, daqueles mais atrasados e vulneráveis à fome.  Assim, seria possível ampliar as áreas cultivadas e elevar a produtividade per capita e por unidade de área, cuidando para que estivesse a serviço do atendimento das necessidades alimentares de todas as pessoas. A geopolítica imperialista da fome e a correlata economia da competição, voltadas para a aquisição desenfreada em um jogo de soma-zero cujos vencedores são as grandes corporações capitalistas, deveriam dar lugar à geografia da abundância e à economia da solidariedade, para garantir uma distribuição equânime do aumento da produtividade e sustentar uma quantidade crescente de seres humanos em níveis materiais, sociais e espirituais mais elevados.

Chama a atenção, também, a clarividente análise da China feita por Josué de Castro. Ele enaltece os avanços sociais e econômicos empreendidos pela República Popular, muitos deles vigentes até hoje, como a reforma agrária, a industrialização, o cooperativismo e o municipalismo na indústria e no comércio, e as campanhas de vacinação e de profilaxia sanitária. Ele vaticina, então, que “Se essa gigantesca massa humana encontrar o caminho de sobreviver elevando o standard de vida de sua gente, a economia do mundo também mudará de rumo, como mudará radicalmente o equilíbrio da política mundial. […] E a China poderá livrar-se definitivamente do milenário espectro da fome” (Geopolítica da Fome, p. 302). Hoje, quando a China celebra a erradicação da pobreza extrema, pode-se verificar o quão certeiras foram as palavras de Josué de Castro.

Justamente a mudança do equilíbrio da política mundial atualmente em curso, decorrente, entre outros motivos, da ascensão chinesa, abre as portas para o redesenho das relações internacionais no sentido propugnado por Josué de Castro. Em vez da bipolaridade da Guerra Fria e da hegemonia da “potência solitária” norte-americana nas décadas de 1990 e 2000, o que se verifica hoje é uma tendência contínua e sistemática ao multilateralismo, com a emergência de blocos e organizações representativos dos países não pertencentes ao eixo norte-atlântico, como o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), Organização para a Cooperação de Shanghai, etc. A partir dessas instituições, torna-se possível estabelecer estratégias ao mesmo tempo soberanas e compartilhadas de desenvolvimento, de maneira que a fome seja extinta, a prédica malthusiana – atualmente consubstanciada no projeto do Grande Reinício (Great Reset), do Fórum Econômico Mundial – seja sepultada, e o que até então se considera Terceiro Mundo não continue a ser um simples escoadouro de matérias-primas para os centros industriais e tecnológicos, mas um espaço de progresso econômico e social, livre das privações materiais que até agora acometeram suas populações. No século corrente, que apenas se inicia, as ideias de Josué de Castro são, mais do que nunca, atuais e necessárias.

REFERÊNCIAS:

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1957.

_______________. Geopolítica da Fome. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.

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Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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1 COMENTÁRIO

  1. Aldo , conheci Josué de Castro pessoalmente. Li os dois livros citados. Uma pena , que a radicalização política da época, tenha afastado este estudioso da fome. de nosso país.

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