INTÉRPRETES DO BRASIL – EDUARDO PRADO E A ILUSÃO AMERICANA

    O escritor antecipou a crítica ao nascente imperialismo norte-americano ao defender a monarquia e condenar os primeiros anos da República no Brasil.

    Eduardo Paulo da Silva Prado (São Paulo, 1860 – São Paulo, 1901), mais conhecido como Eduardo Prado, foi um dos mais notáveis escritores e analistas políticos brasileiros. Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, colaborador da obra Le Brésil – publicada em 1889, por ocasião da Exposição Internacional de Paris, em comemoração ao centenário da Revolução Francesa – e amigo do Barão do Rio Branco e do escritor português Eça de Queirós, Prado notabilizou-se por ser uma das personalidades mais requintadas e aclamadas de seu tempo.

    Monarquista convicto, Prado opôs-se frontalmente à República desde a sua Proclamação. Seu livro “Fastos da Ditadura Militar no Brasil”(1890) reúne os artigos que escrevera em Portugal contra o novo regime. Como afirmou o crítico literário José Guilherme Merquior: “Eduardo desentendeu o sentido sociológico da República, mas analisou perspicazmente as motivações do republicanismo militar: o desprestígio social do Exército e a formação bacharelística dos oficiais, que os incitaram a intervir na cena política”[1].

    Um dos aspectos que mais combatera na República foi o servilismo com que muitos dos seus dirigentes posicionavam-se em relação aos Estados Unidos. Ele era bastante crítico ao espírito de imitação e de idolatria a esse país cultivado por muitos republicanos. Anteviu, como poucos em seu tempo, o espírito imperialista dos EUA, que se manifestaria com frequência ainda maior nos séculos seguintes.

    Anteviu, como poucos em seu tempo, o espírito imperialista dos EUA, que se manifestaria com frequência ainda maior nos séculos seguintes.

    O livro “A Ilusão Americana” (1893)[2], cuja 1ª edição foi confiscada por ordem do governo brasileiro, é a produção mais conhecida e influente de Prado. Seu objetivo central era demonstrar a incompatibilidade de essência e de interesses entre Brasil e EUA. Em um contexto em que a nascente República brasileira buscava legitimidade espelhando-se naquele país e buscando nele parceria e amizade, Prado foi categórico ao afirmar que “a fraternidade americana é uma mentira” (p. 12) e que “a amizade americana (amizade unilateral e que, aliás, só nós apregoamos) é nula quando não é interesseira” (p. 106).

    Segundo ele, a contiguidade geográfica de Brasil e EUA, pertencentes ao mesmo continente, seria simplesmente um acidente natural, do qual não caberia extrair afinidades de qualquer outra ordem. O Brasil estaria separado dos EUA “não só pela grande distância, como pela raça, pela religião, pela índole, pela língua, pela história e pelas tradições do nosso povo” (p. 11).

    O autor, então, compendia as agressões e as trapaças cometidas até então pelos EUA contra os países latino-americanos, pondo em destaque o Brasil. A motivação intrínseca seria “o desprezo profundo que os governos dos Estados Unidos têm pela soberania, pela dignidade e pelos direitos das nações latinas da América” (p. 38). A política externa desse país seria “egoística, arrogante, às vezes, outras vezes submissa, segundo os interessas da ocasião. E, em todo caso, ela nunca se deixa guiar por sentimentalismos de forma de governo” (p. 70). Algumas lideranças políticas dos EUA chegariam, mesmo, a propor, sob aplausos de vários dos seus compatriotas, a anexação violenta de todo o continente americano ao centro político de Washington, comparando expressamente a América Latina a um presunto a ser devorado pelo Tio Sam (p. 36).

    Aristocrata e monarquista, Eduardo Prado viu nos Estados Unidos não a nação progressista enxergada pelos republicanos brasileiros, mas o país agressivo em busca da hegemonia imperial.

    A justaposição do realismo duro, despido de qualquer correção ética, ao sentimento de superioridade frente aos povos latinos, teria resultado em uma disposição constante dos EUA para o esmagamento dos países mais fracos, independentemente de eles serem mais ou menos obedientes aos comandos e aos preceitos emanados daquele país. Como Prado resume, “não há nação latino-americana que não tenha sofrido das suas relações com os Estados Unidos” (p. 61).

    Ele, então, disseca a guerra urdida pelos EUA contra o México, subtraindo desse último cerca de metade do seu território, bem como analisa a subjugação econômico-financeira do México aos EUA na segunda metade do século XIX, a despeito daquele ter adotado as instituições políticas desse. Também menciona as ocasiões em que os EUA descumpriram o princípio, por eles próprios formulado na Doutrina Monroe (1823) de defesa das nações americanas contra intervenções europeias, como, entre outros exemplos, ao reconhecerem a usurpação das Ilhas Malvinas pela Inglaterra em 1831, apoiarem a invasão britânica das Ilhas Honduranas e dos territórios próximos a Belize e se absterem de defender Colômbia e Equador das ameaças da esquadra italiana em 1888.

    A respeito especificamente do Brasil, Prado reporta-se, por exemplo, à indiferença dos EUA às tentativas de Independência do Brasil e à demora no reconhecimento dela, à cobiça estadunidense pela Amazônia, às práticas recorrentes de pirataria dos estados sulistas daquele país contra o Brasil, ao descumprimento de acordos comerciais feitos com o nosso País, à recusa dos EUA em defender o Brasil na Questão do Pirara, quando emissários britânicos ocuparam essa região amazônica, ao apoio dos EUA a Solano López na Guerra do Paraguai e ao ultraje cometido pelo ministro estadunidense Washburn que, em seu livro sobre a história do Paraguai, calunia e ridiculariza as forças militares brasileiras e, particularmente, vilipendia a figura de Caxias, estadista e herói nacional brasileiro.

    Segundo Prado, os EUA também exerceriam uma influência cultural negativa sobre os países latino-americanos. O pendor escravista, que levou metade do país a pegar em armas contra a própria unidade nacional, e o capitalismo predatório, de busca desenfreada de acumulação econômica e de desapiedada exploração dos trabalhadores, teriam modelado, na república anglo-saxã, um caráter nacional violento, racista, segregacionista, fanaticamente materialista e desprovido de respeito pela vida humana. A exuberância material daquele país teria sua contrapartida em um barbarismo espiritual que, em outras paragens, não poderia levar senão à degradação dos costumes e à decadência do país. Prado temia que a inspiração americanista da recém-proclamada República, ao copiar as instituições políticas estadunidenses, importasse também seus valores característicos e danificasse a índole tipicamente brasileira de busca pelo abrandamento dos contrastes, de resolução jurídica dos conflitos e de valorização da vida e da pessoa humanas.  

    Da mesma forma, o livro de Prado também foi clarividente em acautelar acerca dos perigos da importação das categorias raciais e comportamentais estadunidenses, baseadas na segregação, na violência e pelo desprezo à vida humana.

    É verdade, porém, que a ojeriza de Eduardo Prado pelos EUA era motivada menos por um nacionalismo rigoroso que pelo ressentimento ante o declínio da influência política e ideológica das monarquias europeias no Brasil, por ele adoradas. Em relação à Grã-Bretanha especificamente, ele via seus valores e sua atuação internacional como benéficas e humanitárias, a despeito do caráter francamente imperialista de que se revestiam, com abundância de trágicos exemplos na China, na Índia, na África, no Oriente Médio e na própria América Latina, mantida subdesenvolvida pela submissão comercial e financeira.

    Poder-se-ia dizer, então, que o intuito político de Prado era a conservação do atrelamento brasileiro à órbita britânica. Derrotado pela História, seu conservadorismo, em um paradoxo aparente, revestiu-se de pioneirismo ao compreender, antes da maioria dos chamados “progressistas” em seu tempo, os perigos representados pela ascensão dos EUA e pela empolgação dos novos grupos dirigentes brasileiros frente ao modelo político, econômico e cultural desse país. Desde então, esses perigos foram evidenciados e amplificados pela multiplicação dos exemplos de ingerência e belicosidade estadunidenses em todo o mundo, inclusive no Brasil, que experimentou ao menos três golpes de Estado (1945, 1954 e 1964) diretamente estimulados pelos EUA, assim como, mais recentemente, viu suas principais empresas produtivas serem criminalizadas e devastadas pela Operação Lava-Jato, cuja associação aos interesses dos EUA já é comprovada e divulgada pela mídia[3].

    Prado também foi bastante feliz ao defender a necessidade de uma organização política e social autenticamente brasileira, que não fosse constituído segundo métricas estrangeiras, sobretudo estadunidenses. Ainda que ele tivesse em mente a manutenção das ultrapassadas instituições monárquicas, manifestou profunda agudeza em sua concepção de que não existem fórmulas universais de organização nacional e que, portanto, as soluções para o Brasil só poderiam ser encontradas dentro de si e jamais no exterior.

    Sendo o Brasil uma totalidade peculiar, os fatores para a bem-aventurança do nosso País deveriam estar de acordo com a nossa formação e perfil singulares. Assim, só poderiam provir do nosso próprio meio, adaptado às condições específicas aqui existentes. Em suas palavras: “As sociedades devem ser regidas por leis saídas da sua raça, da sua história, do seu caráter, do seu desenvolvimento natural […] as nações devem reformar-se dentro de si mesmas” (p. 33). “Sejamos nós mesmos, sejamos o que somos, e só assim seremos alguma coisa” (p.69).

    Apesar de escrita há mais de um século, a obra de Eduardo Prado é de suma atualidade. Serve, nos dias correntes, como alerta a respeito do alinhamento incondicional do Brasil aos EUA, praticado pela chancelaria de Ernesto Araújo. Em nada nos beneficiamos do “realismo periférico” endossado pelo atual Chanceler, que leva o Brasil a participar de conflitos que não são seus, como os contenciosos entre EUA e China e entre Israel e Palestina, e a escolher lados prejudiciais aos seus interesses, como as hostilidades gratuitas e inconsequentes contra a China e o mundo árabe.

    Ilusão acreditar que as contundentes e reiteradas demonstrações de amizade do Brasil aos EUA comoveriam esse último a retribuir em igual medida. Como Eduardo Prado já havia considerado nos albores da República, os EUA, movidos pelo mais egoísta interesse nacional e imunes a qualquer consideração moral ou sentimental, simplesmente aproveitam a amizade unilateral para aumentarem seus ganhos em um jogo de soma negativa no qual o prejuízo é debitado apenas do Brasil. A redução da cota de importação de aço brasileiro pelo governo Trump, mesmo com a isenção, por parte do governo Bolsonaro, de impostos para importação de etanol dos EUA, exemplifica, de forma hiperbólica, a tese de Prado de que tomar a república anglo-saxã como referência absoluta para o encaminhamento dos negócios do Brasil jamais contemplaria os nossos interesses e anseios nacionais.

    Da mesma forma, o livro de Prado também foi clarividente em acautelar acerca dos perigos da importação das categorias raciais e comportamentais estadunidenses, baseadas na segregação, na violência e pelo desprezo à vida humana. O modismo identitário, pela esquerda, e o neoconservador, pela direita, reproduzem, aqui, vícios e taras alienígenas e degradantes do tecido social e do patrimônio cultural brasileiros, buscando alijar nosso Povo dos marcadores simbólicos sem os quais não podemos nos afirmar como Nação independente e original.

    Não se pode, evidentemente, resvalar para o equívoco oposto de antagonizar aberta e sistematicamente com os EUA, ainda mais sem meios próprios de defesa e de dissuasão à altura do poderio militar e financeiro estadunidense. Contudo, o Brasil não deve esperar amizade e parceria dos Estados Unidos tampouco procurar imitar seus costumes e instituições, mas, perante esse país, afirmar e promover a identidade e o interesse nacionais brasileiros de forma intransigente nos princípios e pragmática nos meios para realizá-los. É justamente essa a principal lição deixada por Eduardo Prado.


    [1] MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. São Paulo: É Realizações, 2014.

    [2] Utiliza-se, para as referências nesse artigo, a edição do Senado Federal, de 2010, integralmente disponível no seguinte endereço: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1095/000661687_Ilusao_americana.pdf

    [3] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/12/lava-jato-intercept-estados-unidos.htm

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    Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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    2 COMENTÁRIOS

    1. Muito boa a lembrança a esse importante autor, conheci e li o livro nesse ano. Um dos pontos abordados mais interessantes do livro do é o relacionado ao acordo de comercialização da cana e do café entre Brasil e os ianques na década de 1870 salvo engano. Os norte americanos quebram o acordo em relação à cana e mantém o do café, dando uma enorme vantagem para o desenvolvimento econômico de São Paulo da época. Interpreto esse fato histórico como um dos principais fundamentos do complexo industrial-cafeeiro e o embrião da concentração regional do desenvolvimento nacional. Esse livro abre perspectivas analíticas fundamentais para pensar o Brasil hoje.

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