Cassiano Ricardo (São José dos Campos, 1894 – Rio de Janeiro, 1974) foi um dos mais importantes poetas e literatos modernistas do Brasil. Tanto nas artes quanto na política, demonstrou inequívoco compromisso com um nacionalismo autenticamente brasileiro.
Junto a Plínio Salgado e Menotti del Picchia, fundou, em 1924, o Movimento Verde-Amarelo, como resposta ao Manifesto do Pau-Brasil, considerado por eles excessivamente “afrancesado”. Porém, afastou-se do grupo, particularmente de Plínio Salgado, na década de 1930. Em 1936, juntamente a Monteiro Lobato, Mário de Andrade e outros, fundou o grupo Bandeira, que rechaçava o fascismo ítalo-germânico esposado por Plínio Salgado e apoiava a política nacionalista de Getúlio Vargas. Hostil ao comunismo, ao fascismo e ao liberalismo, o grupo alinhava-se a uma solução especificamente brasileira para as questões e desafios do Brasil. Seu lema era “A vestir uma camisa verde ou vermelha, preferimos ficar sem camisa”. Por isso, recebeu o apoio de eminentes autoridades militares, como Góes Monteiro e Juraci Magalhães.
Cassiano Ricardo ocupou importantes funções governamentais durante o Estado Novo, tendo sido um dos coordenadores do planejamento cultural estabelecido pelo regime, que redefiniu a identidade nacional brasileira em termos nativos, pela primeira vez de forma independente das correntes europeias. Ele dirigiu a seção paulista do Departamento de Imprensa e Propaganda, o departamento cultural da Rádio Nacional e foi editor-chefe do jornal A Manhã, órgão oficial de comunicação. Manteve-se sempre aberto à pluralidade de ideias, desde que afins ao interesse nacional. Permitiu, assim, que opositores declarados do governo, como Graciliano Ramos, publicassem seus escritos na mídia oficialista.
Além da sua importantíssima atuação política, contribuiu imensamente para o pensamento social e político brasileiro. Valorizou os mais diversos aspectos históricos formadores do Brasil, notadamente os de ordem étnica, geográfica, mítica e simbólica, entendidos em conjunto. Em sua obra, o Brasil profundo e folclórico dos sertões, dos bandeirantes e dos caboclos ganha primazia em relação ao Brasil litorâneo, desencantado e cosmopolita, sendo entendido como o caudal da nacionalidade e a fonte das representações orgânicas dos sentimentos e dos modos de vida populares.
Entre suas principais obras, destacam-se Martim Cererê – o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis (1928) e Marcha para Oeste – A influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil (1940).
Martim Cererê constitui-se em um livro de poemas em que a história do Brasil, o folclore e as reminiscências da infância interiorana do eu-lírico emaranham-se compondo um quadro poético-descritivo da formação, da identidade e das possibilidades da Nação brasileira. Passado, presente e futuro encontram-se associados no contínuo de um Brasil simultaneamente histórico e mitológico, desbravado e construído por um povo mestiço e original. Sendo o povo brasileiro eternamente criança e, portanto, sonhador, brincalhão e destemido, legítimo descendente dos bravos e fortes bandeirantes, ele zombaria dos preconceitos importados e estaria predestinado a construir, pela marcha adentro ao continente, uma civilização autêntica e vibrante, capaz de combinar o moderno progresso técnico e a vitalidade espiritual herdada das tradições rurícolas e sertanistas. A eletricidade e o saci-pererê seriam elementos coetâneos do Brasil brasileiro retratado por Cassiano Ricardo, um Brasil em que as máquinas estariam a serviço dos meninos, poetas e heróis, os verdadeiros arquétipos nacionais.
Marcha para Oeste, por sua vez, constitui um tratado historiográfico acerca da centralidade do bandeirantismo para a formação étnico-geográfica-cultural brasileira. Nessa obra, Cassiano Ricardo traça um contraponto a Gilberto Freyre: enquanto o sociólogo pernambucano investigou as origens do Brasil na grande propriedade imobiliária rural e escravista, atrelada aos regimentos e diretrizes da Coroa metropolitana, o literato paulista, sem negar a existência e a importância dos processos apontados por Freyre, privilegia o caráter nômade e independente do bandeirismo como gênese da nação brasileira. Enquanto Freyre viu o Brasil a partir da zona da mata nordestina, Cassiano Ricardo o viu a partir do planalto paulista. Ambos eram conscientes da concomitância e, em certa medida, da complementaridade desses dois eixos de formação nacional, que concorreram, de diferentes formas, para a estruturação do Brasil.
Segundo Cassiano Ricardo, o bandeirantismo, “uma das maiores revoluções da humanidade”, inicia efetivamente a história do Brasil como nação à parte de Portugal. Já não se tratava de colonos portugueses explorando o Brasil para atender aos interesses da metrópole, mas de mamelucos paulistas, juntamente a indígenas e negros, desbravando o continente e estendendo a fronteira do Brasil para além dos limites estipulados por Portugal e Espanha no Tratado de Tordesilhas.
A ambição do ouro, das pedras preciosas e das drogas do sertão, alimentada pelos mitos de infinitos tesouros, impulsionou o contingente demográfico mestiço do planalto paulista para dentro do meridião americano, povoando-o com tipos étnicos especificamente brasileiros, nascidos da interação entre brancos/mamelucos, índios e negros, que as bandeiras fomentavam. O bandeirantismo, verdadeiro caldeirão étnico, não ocorreria sem o concurso dos índios, que mostravam os caminhos e as técnicas e os meios de sobrevivência e combate, bem como dos negros, essenciais nas batalhas contra espanhóis e jesuítas e no plantio que por vezes se fazia para abastecer as bandeiras vindouras. Portanto, o bandeirantismo não foi “branco” e “racista”, mas fundamentalmente mestiço e englobante das três principais etnias formadoras do Brasil.
O bandeirantismo, ao formar etnicamente o Brasil e contribuir para estabelecer nossas tradições de democracia racial, também promoveu a brasileirização da geografia sul-americana, rompendo o imobilismo do sistema de capitanias e os contornos desenhados pelas Coroas de além-mar. A interiorização da população nativa brasileira e a consequente expansão do território brasileiro rumo às bandas ocidentais modelaram-no em formato análogo ao do continente.
A nacionalização do povo pela miscigenação franca e aberta e a nacionalização do espaço pela penetração demográfica a partir de São Paulo foram processos simultâneos, instituidores de todo um sistema de cultura, valores e modos de vida organicamente brasileiros, absolutamente dissociados dos comandos peninsulares. O Brasil passou a voltar seus passos e seus olhos cada vez mais para dentro de si, descobrindo sua realidade interna, ocultada pela prostração no litoral alienado, voltado apenas para fora.
O afastamento bandeirante dos centros litorâneos – por meio dos quais eram exercidos os comandos do pacto colonial -, ao autonomizar as relações sociais, políticas e econômicas internas, favoreceu uma ocupação do solo fundada na pequena propriedade rural policultora de subsistência, em contraste com a grande propriedade agroexportadora e monocultora típica das regiões litorâneas. Assim, propiciou a formação de interesses domésticos, voltados para dentro, que se refletiram no surgimento das primeiras manifestações de autogoverno brasileiro, determinado pelas condições internas do povo e da terra, e não pela subjugação a uma monarquia transatlântica e exótica. Exemplos de autogoverno, criados pelos Bandeirantes, seriam a instituição de uma democracia representativa em Cuiabá, com deputados e governadores eleitos pelo povo já no início do século XVIII e a cunhagem de moeda própria com o ouro de Jaraguá. O bandeirantismo suplantou a talassocracia colonial pela telurocracia nacional, projetando formas autônomas de poder sobre o espaço geográfico que, formalmente pertencente a Portugal, era crescentemente organizado por brasileiros e para brasileiros. Iniciou-se, assim, na prática, o processo de Independência, que prosseguiu em um crescendo até culminar no 7 de setembro.
Cassiano Ricardo não entendia o bandeirantismo como um fenômeno circunscrito ao período anterior à Guerra dos Emboabas (1707-1709), quando os portugueses derrotaram os paulistas na luta pelas minas de ouro descobertas pelos últimos, ou ao Tratado de Madrid de 1750, que desfez o de Tordesilhas e incorporou definitivamente as conquistas bandeirantes ao território brasileiro por meio do dispositivo legal do uti possidetis. Para ele, o bandeirantismo, enquanto fator de construção da unidade e da soberania nacionais e gênese das instituições políticas e sociais brasileiras, seria um processo permanente. Sua permanência residiria não apenas na manutenção do legado geográfico e social, da incorporação ao Brasil de uma ampla parcela continental e sua ocupação por uma população mestiça. Mas, também, no fato dessa conquista impelir naturalmente os brasileiros para dentro do seu próprio País. O autor denomina esse processo de “imperialismo interno”, pois seria voltado à descoberta e brasilerização dos recônditos do próprio território, de forma a estender a fronteira econômica e demográfica aos limites da fronteira política. O fato do bandeirantismo pós-1750 ter se concentrado mais na expansão doméstica não o torna menos bandeirante, pois, de todo modo, fazia-se presente o ímpeto desbravador e integrador.
Em sua concepção, não menos bandeirantes do que Anhanguera, Borba Gato e Raposo Tavares, foram, por exemplo, o santista Alexandre de Gusmão, redator do Tratado de Madrid de 1750; o também santista José Bonifácio de Andrada e Silva, Patriarca da Independência e arauto da interiorização do povoamento e do desenvolvimento; os cafeicultores paulistas da segunda metade do século XIX, que, por meio de ferrovias e estradas, estenderam suas atividades a Oeste, combinando o trabalho livre com a policultura agrícola que acompanhava as plantações de café; Rio Branco, protagonista da anexação do Acre, a última expansão fronteiriça para Oeste; o Marechal Rondon, desbravador dos sertões, protetor dos índios e construtor de linhas e estações telegráficas no interior do País; Getúlio Vargas, para quem “o verdadeiro sentido da brasilidade é a marcha para o Oeste” e que, por isso, coordenou, por meio do programa Marcha para o Oeste, esforços governamentais para realizar a integração nacional no seio da continentalidade. Em edição posterior da sua obra, de 1970, Cassiano Ricardo apontaria também como bandeirantes o governo Juscelino Kubitschek, continuador da Marcha para o Oeste de Getúlio e edificador de Brasília, cidade bandeirante por definição, e os governos militares de então, empenhados na expansão das infraestruturas e do desenvolvimento da hinterlândia brasileira. O Projeto Rondon e a Transamazônica seriam duas das maiores iniciativas bandeirantes do governo militar.
Dessa forma, segundo o autor, “Todo brasileiro que abre caminhos novos é, hoje um bandeirante” (p. 562). O bandeirantismo seria a própria essência da soberania brasileira. Somente sendo bandeirante, poderia o Brasil apropriar-se de si e desenvolver e se articular internamente, tornando-se um País voltado para si e não para os outros. Os meninos, poetas e heróis que comporiam a brasilidade seriam, todos eles, bandeirantes.
O pensamento nacional de Cassiano Ricardo, um dos mais originais e fecundos do nosso País, torna-se ainda mais importante na atual quadra histórica, quando os valores e o patrimônio histórico do Brasil são sistematicamente atacados, deturpados e soterrados por aqueles que pretendem dominar e extinguir a Pátria verde-e-amarela. Não surpreende que o legado e a realidade bandeirantes, como a miscigenação e a soberania brasileira sobre a Amazônia, sejam demonizados. Isso é feito com o intuito de que os brasileiros se envergonhem da sua própria Nação e submetam-se docilmente aos comandos externos, entregando ao capitalismo estrangeiro as riquezas naturais, territoriais, científico-tecnológicas e culturais conquistadas a duras penas por gerações de brasileiros, todos eles bandeirantes e Martins Cererês.
Porém, da mesma forma que o Brasil surgiu e se desenvolveu a despeito das oligarquias apátridas e/ou forâneas, demonstrando insubmissão bandeirante e “martimcererênica” aos centros político-econômicos externos e aos interesses antibrasileiros, saberá resistir a eles também hoje. Daí a importância de retomar a interpretação de Brasil formulada por Cassiano Ricardo, absolutamente fiel aos mais nobres princípios da nossa nacionalidade.
Obras mencionadas:
RICARDO, Cassiano (1928). Martim Cererê – o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7041
RICARDO, Cassiano (1970 [1940]). Marcha para Oeste – A influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil. 2 vol. 4ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Que contribuição excelente!Parabéns, Felipe. O assunto permitirá desenvolver excelentes discussões e trabalhos. Será que a ABRAEE agora vai?
Vou procurar os livros.
Felipe, parabéns pela publicação e por compartilhar conosco algo da nossa história como país! Formada por brasileiros que lutaram a sua moda e com suas armas pela nossa liberdade como nação!