Estados Unidos: polarização política ameaça funcionamento do governo

    Para quem se sente desapontado e desiludido com nosso sistema de governo, o que ocorre nos Estados Unidos, se não serve de consolo, pelo menos demonstra que a disfuncionalidade dos sistemas de governo baseados no modelo norte-americano de independência de poderes é um fenômeno mais ou menos generalizado na atualidade.

    Idealizado como forma de garantir a separação dos poderes, que, em última instância, objetiva manter a paz na sociedade e assegurar o gozo da liberdade, evitando a arbitrariedade e o autoritarismo[1] , tal sistema não tem conseguido resistir ao processo de extrema polarização que assistimos no mundo atual, no qual a política, ao invés de ser um instrumento para construir relações entre as pessoas, tornou-se em instrumento para separá-las e dividi-las.

    Tal fenômeno, embora atenuado em sistemas multipartidários, como o do Brasil, torna-se extremamente agudo em sistemas bipartidários como nos Estados Unidos. Nessas condições, o papel da oposição – no caso, os republicanos nos Estados Unidos – deixa de ser o de atuar para impedir que o partido no governo aja arbitrariamente, facilitando, assim, a busca do bem-comum, que inclui os direitos das minorias, para se tornar um instrumento cujo principal objetivo é o de inviabilizar o exercício do poder pelo partido vencedor das eleições.  Quando o partido ou partidos de oposição formam maiorias no poder legislativo, como ocorre hoje na Câmara dos Deputados nos Estados Unidos, dominada pelos Republicanos, o problema se torna ainda mais agudo e o país corre o risco de se tornar ingovernável.

    Uma revolta comandada por um deputado republicano de extrema-direita da Flórida destituiu o presidente da Câmara, que é de seu próprio partido, e criou um vácuo de poder que levou à paralisia do Congresso norte-americano com sérios reflexos sobre o governo por quase todo o mês de outubro, o que não é pouco para a principal potência mundial.

    No dia 3 de outubro, Kevin McCarthy, presidente da Câmara, foi demitido por uma pequena facção de republicanos liderada por Matt Gaetz, aparentemente agindo por animosidade pessoal. Ele foi derrubado por uma rebelião de apenas oito deputados extremistas republicanos, que o acusam de não ter mantido uma promessa de bloquear fundos para o governo do presidente democrata, Joe Biden. McCarthy foi destituído de seu cargo por 216 votos a 210 após nove meses de luta com a ala conservadora de extrema direita do partido. O estopim foi o voto da ala moderada do partido Republicano a favor de uma legislação para evitar uma paralisação do governo, que bateu no limite de endividamento. Sem a ampliação desse limite, o governo corria o risco de paralisar atividades essenciais.

    Dada a escassa maioria que o partido Republicano tem na Câmara, eleger um novo presidente acabou por se tornar um enorme problema, uma vez que a falta de apoio unânime dos deputados republicanos para todos os candidatos que sucessivamente se apresentaram inviabilizou a eleição de um novo presidente por quase um mês, o que impediu a Câmara de funcionar normalmente no período.  Conforme noticiou o jornal O Estado de S. Paulo (21/10), “O impasse é resultado de uma maioria apertada em tempos de polarização política. Os republicanos têm apenas nove deputados a mais que os democratas (221 a 212, com duas cadeiras vacantes). Eles precisam de 217 votos para eleger um líder. A consequência direta dessa matemática é que um pequeno grupo de 10 deputados é capaz de pressionar por uma agenda radical, colocando sempre uma faca no pescoço dos congressistas moderados”. Ainda segundo o jornal, “Desde que a bancada republicana derrubou seu próprio líder, Kevin McCarthy, há duas semanas, a Câmara dos Deputados dos EUA parou de funcionar. Sem presidente, ela não pode votar leis ou aprovar um orçamento. O problema, até então uma questão interna, ultrapassou as fronteiras americanas ontem, quando Joe Biden pediu formalmente US$ 105 bilhões em ajuda para as guerras de Israel e Ucrânia”.

    Segundo matéria do jornalista Humberto Saccomandi do jornal Valor (04/10), “Ao longo da história política dos EUA era comum que políticos republicanos e democratas tivessem posições políticas parecidas em vários assuntos. Durante décadas a bancada democrata dos Estados do Sul dos EUA foi fortemente conservadora em termos de direitos civis. E eram comuns os “republicanos Rockfeller” (numa referência ao ex-governador de Nova York Nelson Rockfeller, um bilionário democrata), que tinham posições de moderadas a liberais em várias questões sociais. Já há mais de duas décadas, porém, vem ocorrendo um processo de polarização. O Partido Republicano vem se tornando mais conservador e o Partido Democrata mais liberal nesses temas sociais. Encontrar pontos de convergência, o que marcou a democracia americana por muito tempo, foi se tornando cada vez mais difícil. Uma medida dessa polarização é justamente o bloqueio pelo Congresso de verbas para financiar o governo, o chamado “shutdown”, que pode levar ao fechamento de quase todos os serviços públicos federais. Normalmente um partido, que controla uma das casas do Congresso, tenta com isso impor sua agenda a um presidente de outro partido”.


    [1] Pelicioli, A. C.  A atualidade da reflexão sobre a separação dos poderes Revista de Informação Legislativa Brasília a. 43 n. 169 jan./mar. 2006

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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