Enfrentamento da pandemia da Covid-19 exige um esforço de guerra, não de filantropia

    O Triunfo da Morte - Quadro de Pieter Bruegel (Holanda, 1525 - 1569)

    Apesar do vírus da Covid-19 não escolher suas vítimas pelo nível de renda, as estatísticas mostram que as maiores vítimas da doença são os mais pobres. Evidentemente há uma grande diferença entre ser pobre na Europa ou nos Estados Unidos, onde a vacinação já alcançou uma grande parte da população, ou ser pobre na África, na Índia ou na América Latina, onde apenas uma pequena fração foi vacinada até agora.

    De qualquer modo, as maiores vítimas, independentemente do país, são os mais pobres, ou porque exercem profissões que os expõem mais ao risco, ou porque, sem uma fonte alternativa de renda, veem-se obrigados a sair de casa para buscar algum meio de sobrevivência.

    Conforme relata o jornal Folha de S. Paulo, “Entre as atividades ocupacionais que mais registram mortes por Covid-19 na cidade de São Paulo entre março de 2020 e março deste ano estão as empregadas domésticas, pedreiros e motoristas de táxi e aplicativo, segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Pólis com base em dados da Secretaria Municipal de Saúde”[i].

    Até o início de junho, 41% dos residentes nos Estados Unidos já estavam totalmente vacinados e já podiam retornar ao trabalho, aos bares e parques sem o uso de máscaras. No Reino Unido, com 39% dos residentes vacinados, em Israel, com 57%, e nos Emirados Árabes Unidos, com 63%, assim como em outros países de renda alta, a vida vai progressivamente retornando ao normal.

    A revista inglesa The Economist criou um índice de normalidade que procura medir a situação dos diversos países relativamente à anterior à pandemia. O índice considera itens como viagens, divididas entre rodovias, voos e transporte público; o tempo de lazer, dividido entre horas passadas fora de casa, receita de cinema e participação em eventos esportivos. O último é atividade comercial, medida pela movimentação em lojas e escritórios. Nos Estados Unidos o índice está em 73, na União Europeia, 71, na Austrália, 70 e no Reino Unido, 62. Os países melhor situados são Hong Kong e Nova Zelândia, com 96 e 88 respectivamente. 

    A Covid-19 exibiu com mais vigor o abismo social que separa o mundo pobre do mundo rico, principalmente no acesso às vacinas.

    Na China, graças ao rigoroso esquema de distanciamento social e à vacinação massiva, que alcançou em junho, um bilhão de dose aplicadas, a vida segue praticamente normal, com um índice próximo de 80. Mas não é essa a realidade na maioria dos países pobres e em desenvolvimento. Malásia, Índia, Tailândia, Argentina, Peru e Brasil aparecem na parte mais baixa da tabela, todos abaixo da média mundial que está em 66[ii].

    Na Índia, onde apenas 3% da população já recebeu as duas doses da vacina, uma nova variante do vírus, batizada de “delta”, devasta o país. Em algumas cidades indianas as fogueiras funerais queimam 24 horas por dia. A situação não é muito diferente na América Latina e na África. No Brasil, onde apenas 11% da população já recebeu as duas doses da vacina, o número de mortos já ultrapassou os 500 mil e pode, nas próximas semanas, superar os Estados Unidos, onde já morreram 600 mil pessoas, mas que apresenta uma forte trajetória de queda desde que a administração de Joe Biden empreendeu um grande esforço de vacinação cujo êxito surpreendeu até o próprio governo americano.

    As diversas iniciativas já tomadas para garantir a vacinação de toda a população mundial, embora se apresentem como um alívio parcial da situação, estão longe de representar uma resposta efetiva para a pandemia que, enquanto não for controlada em nível mundial, continuará a ser uma ameaça também para os países ricos, devido ao surgimento de novas cepas do vírus, mas contagiosas e letais.

    De acordo com os epidemiologistas, a chamada imunidade de rebanho exige que pelos menos 70% de toda a população mundial esteja vacinada. Mas nenhuma das iniciativas tomadas até agora, seja o consórcio Covax-Facility ou as promessa do presidente Joe Biden de doar 80 milhões de vacinas até o final de junho, da União Europeia de doar 100 milhões, e nem a dos países do G7 de doarem um 1 bilhão de doses para os países pobres chegam perto desse número.

    O fato é que as diversas iniciativas que vêm sendo tomadas pelos países ricos, inclusive o consórcio Covax Facility, adotam a lógica da ajuda humanitária, do mesmo tipo das campanhas de alívio da fome e da pobreza extrema. Embora esse tipo de ação tenha o seu mérito, não resolve o problema, uma vez que se limitam a oferecer o que sobra nos países ricos sem levar em conta se isso é suficiente ou não para resolver definitivamente o problema. O consórcio Covax-Facility, por exemplo, tinha o objetivo vacinar 27% da população dos 92 países de renda baixa e média do mundo em 2021. Além de estar longe de alcançar a meta, por falta de recursos, uma vez que a adesão ao consórcio dos países ricos e de renda média-alta ficou abaixo do esperado, mesmo que o fizesse estaria longe de resolver o problema. Apenas 1,2% da população da África, 4,8% da Ásia e 14% da América do Sul foi vacinada até agora.

    De acordo com um estudo elaborado pela Deutsche Post DHL, para acabar com a pandemia até 2023, seria necessário produzir e distribuir cerca de 28,5 bilhões de doses de vacinas contra a Covid-19.  Estima-se que para vacinar 70% da população mundial seriam necessários recursos adicionais na ordem de U$ 50 bilhões. Não é possível produzir essa quantidade de vacinas e muito menos levantar esses recursos em chás beneficentes, mesmo que organizados pelos países do G7 ou por filantropos bilionários como Bill Gates ou George Soros. A abordagem precisa ser outra. É preciso enfrentar a pandemia como uma guerra, que precisa ser travada onde a doença estiver presente, não importa se em Nova Iorque ou nas favelas do Rio de Janeiro ou Mumbai. A causa deveria ser comum. US$ 50 bilhões é muito dinheiro, mas comparativamente aos US$ 12 trilhões que os países ricos já gastaram para fazer frente aos estragos provocados pela doença em suas respectivas economias, ou aos US$ 9,2 trilhões que se estima que o mundo ainda vai perder sem o acesso dos países em desenvolvimento às vacinas, é muito pouco. O FMI poderia liberar esse dinheiro sem maiores problemas. Infelizmente não há quem lidere tal iniciativa. Biden está mais preocupado em arregimentar aliados contra a China que, por sua vez, por mais que faça – e tem feito muito – enfrenta o pesado isolamento político dos Estados Unidos e seus aliados. A Índia, uma grande aposta para o fornecimento global de vacinas para o mundo em desenvolvimento pelo consórcio Covax-Facility com a vacina da AstraZeneca, enfrenta um aumento brutal da pandemia em seu próprio território que levou a suspender as exportações de vacinas. O Brasil, se fossem outros tempos, poderia jogar algum papel. Não mais.


    [i] Freitas, C. Motoristas, domésticas e pedreiros estão entre os que mais morrem de Covid-19 em SP. Folha de S. Paulo, 01/06/2021

    [ii] The Economist. Our normalcy index shows life is halfway back to precovid norms. Jul 3rd, 2021.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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