Eleições em Taiwan

    Pela terceira vez seguida o DPP (Partido Democrático Progressista), partido de tendências independentistas de Taiwan, venceu as eleições para a escolha do líder da província rebelde da China, tornando cada vez mais tensa a relação entre os dois lados do estreito. O novo líder, Lai Ching-te, que na gestão que se encerrou ocupava o cargo de vice, declarou, em ocasiões anteriores, ser favorável à independência da ilha, na contramão do Consenso de 1992, segundo o qual os dois lados concordam que há uma só China. Agora, como candidato a líder, foi mais moderado quanto à suas intenções separatistas, tanto para não assustar o eleitores, que apoiam o Consenso de 1992, de que existe uma só China, e não desejam um conflito armado entre os dois lados do canal por conta dessa questão, quanto para criar problemas com os Estados Unidos, que ficariam na embaraçosa situação de estar apoiando um candidato abertamente separatista, na contramão dos compromissos assumidos internacionalmente de que existe uma só China.

    Isso não quer dizer, contudo, que a maioria dos eleitores de Taiwan desejassem a continuidade do DPP no governo da ilha. Muito pelo contrário, as pesquisas indicavam e o resultado comprovou que pelo menos 60% dos eleitores queriam o DPP fora do poder. Segundo o Global Times (14/1), “Lai, do DPP, e seu companheiro de chapa Hsiao Bi-khim obtiveram mais de 40% do total de votos nas eleições de 13 de janeiro, enquanto Hou Yu-ih, candidato da oposição Kuomintang (KMT), e seu companheiro de chapa, Jaw Shaw-kong, obtiveram 33,49% da votação. O candidato do terceiro partido, Ko Wen-je, e seu companheiro Wu Hsin-ying, do Partido Popular de Taiwan (TPP), receberam 26,45% dos votos, de acordo com relatos da mídia”.

    O fato é, portanto, que  60% do eleitorado da ilha, conforme pesquisas anteriores já apontavam, não desejava que o DPP continuasse à frente do governo local, o que só não ocorreu porque os dois partidos de oposição não conseguiram chegar a uma plataforma comum. Tanto o Kuomintang, partido nacionalista, quanto o TPP, de centro-esquerda, são contrários às teses separatistas e repudiam as provocações dos líderes do DPP, o que demonstra que a maioria do eleitorado de Taiwan deseja que a questão da reunificação seja resolvida de forma pacífica, tal como propõe o governo chinês.

    Enquanto de um lado a República Popular China mandou avisos claros alertando para os riscos do movimento separatista, os Estados Unidos têm um comportamento dúbio, embora reafirmando o seu compromisso formal com a política de uma só China, estabelecido em 1972, quando a ONU reconheceu a República Popular da China e o governo do Partido Comunista Chinês como o único e legítimo representante de toda a nação chinesa e, em 1979, quando os dois países reataram relações diplomáticas.  

    Ao mesmo tempo em que os Estados Unidos reafirmam sua concordância com a política de uma só China e com os Três Comunicados Conjuntos China-Estados Unidos, enviam sinais de que correriam em socorro da ilha, caso a China continental resolvesse trazer Taiwan de volta ao controle de Pequim pelo uso da força.

    Essa dubiedade dos Estados Unidos em relação ao tema vem desde que os dois países reataram relações diplomáticas, pois no mesmo ano em que os Estados Unidos passaram a reconhecer o governo de Pequim como o legítimo representante do povo chinês, assinaram o Ato das Relações com Taiwan, em 10 de abril de 1979, tratando a ilha, na prática, como um país independente. Com esse comportamento ambivalente, conhecido como “dubiedade estratégica”, os Estados Unidos pretendem manter indefinidamente o atual status quo da ilha, não deixando claro nem aos separatistas que viriam em socorro da ilha no caso de uma invasão militar pelo continente, nem a Pequim que aceitariam passivamente a reincorporação da ilha ao governo central, tal como já ocorreu com Hong Kong, em 1998, e Macau, em 1999.

    Ocorre que a política de dubiedade estratégica vem sendo cada vez mais deixada de lado em favor de uma posição cada vez mais assertiva de apoio ao movimento separatista. Em três ou quatro vezes em que foi questionado sobre o assunto, Biden afirmou que os Estados Unidos interviriam militarmente a favor da ilha no caso de invasão por parte de Pequim, embora em seguida a Casa Branca tenha “retificado” a declaração reafirmando que os Estados Unidos continuam comprometidos com a política de uma só China e com os três comunicados conjuntos China-Estados Unidos que tratam do assunto.

    A verdade é que na medida em que a rivalidade estratégica entre Estados Unidos e China se aprofunda, Taiwan se torna cada vez mais uma carta importante nesse jogo. Desde o final da Guerra da Coréia, em 1951, quando China e Estados Unidos se confrontaram militarmente na península coreana, os Estados Unidos veem a ilha de Taiwan como uma espécie de porta-aviões inafundável estacionado na costa da China, seja como forma de manter seu predomínio estratégico no Pacífico, seja como forma de constranger a China continental, fazendo incursões militares provocativas no estreito de Taiwan. Manter algum nível de controle sobre Taiwan é importante para os Estados Unidos para impedir o livre acesso da China ao Oceano Pacífico, uma vez que a ilha de Taiwan, com o Japão ao norte e as Filipinas ao sul, ambos aliados dos Estados Unidos, fazem parte da primeira cadeia de ilhas que separa o Mar da China do Oceano Pacífico.

    Em entrevista ao jornalista americano Mike Wallace, da rede americana CBS TV, em setembro de 1986, Deng Xiaoping afirmou: Há três obstáculos nas relações sino-soviéticas, e um obstáculo nas relações sino-americanas. É a questão de Taiwan, ou da reunificação dos dois lados do Estreito de Taiwan. Nos Estados Unidos, as pessoas dizem que o governo americano toma a posição de “não envolvimento” na questão de reunificação da China, ou seja, a questão de Taiwan. Isso não é verdade. O fato é que os Estados Unidos têm estado envolvidos o tempo todo. Nos anos 1950, MacArthur e Dulles viam Taiwan como um porta-aviões americano não afundável na Ásia e no Pacífico. A questão de Taiwan era, portanto, o ponto mais importante nas negociações para o estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e os Estados Unidos.”

    Caso retome o controle da ilha, a China terá acesso direto ao Pacífico, o que é uma preocupação para os Estados Unidos, seja porque hoje a China tem a mais poderosa marinha mundial, seja porque o poder naval voltou a ser cada vez preponderante na disputa pelo poder global. De acordo com a revista, a frota naval da China, que inclui porta-aviões, cruzadores, destroieres, fragatas e submarinos, é ligeiramente superior à dos Estados Unidos, quase o dobro da Rússia e maior que a do Reino Unido, França, Coréia do Sul e Japão juntas.

    Conforme afirmou a revista The Economist (11/01), “Os oceanos são mais uma vez importantes na geopolítica. No Médio Oriente, o grupo rebelde Houthi está a ameaçar o transporte marítimo no Mar Vermelho, perturbando o comércio global. Em 12 de Janeiro, a América e a Grã-Bretanha lançaram ataques contra mais de 60 alvos Houthi no Iémen. Os ataques dos aliados são uma tentativa de reafirmar a liberdade de navegação numa artéria crucial do comércio mundial, mas também de expandir dramaticamente o âmbito geográfico do conflito no Médio Oriente. Taiwan está à beira de uma eleição que poderá moldar o seu futuro. Uma luta pela ilha envolveria uma intensa guerra naval sino-americana que se estenderia muito além do Pacífico. E na Europa a guerra na Ucrânia poderá desencadear a disputa marítima pelo Mar Negro e pela Crimeia. O poder marítimo está de volta”.

    Acrescente-se a isso uma importante variável econômica. A empresa taiwanesa TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company) é hoje a principal produtora mundial dos semicondutores e chips de memória mais avançados, abaixo de oito nanômetros, vitais para a setor de alta tecnologia, incluídos telefones celulares, supercomputadores, armamentos e inteligência artificial dos Estados Unidos.

    Como afirmou Laura Tyson, ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Bill Clinton, em artigo publicado no site Project Syndicate (17/01), “A economia dos EUA está perigosamente dependente de semicondutores avançados produzidos por uma única empresa (TSMC) num único local (Taiwan), que está repleto de riscos geopolíticos”. No ano passado os Estados Unidos tentaram, em vão, convencer a TSMC a transferir a produção dos seus chips mais avançados para o território americano  (já abordamos esse tema em relatório anterior), oferecendo subsídios bilionários, mas sem sucesso. Nem a empresa nem o governo local aceitaram, até porque esse “guarda-chuva dos chips” é considerado um importante trunfo para garantir o apoio norte-americano contra a determinação de Pequim de reincorporar a ilha à administração central chinesa.

    O fato é que a questão de Taiwan, de um desafio a ser resolvido a longo prazo, passou para a ordem do dia, seja porque o presidente Xi Jinping já deixou claro que pretende reunificar totalmente o país (“A unificação de Taiwan com a China continental “certamente será realizada”, declarou o presidente chinês, Xi Jinping, num discurso em Pequim em 26 de dezembro passado para comemorar o 130º aniversário do nascimento de Mao Tse-tung), o que coloca um horizonte para a resolução do problema até no máximo em meados da próxima década, seja porque as forças separatistas da ilha estão cada vez mais assertivas quanto às suas intenções independentistas, seja porque os Estados Unidos não dão mostras de que pretendem corrigir sua rota de confronto com a China, tanto no plano econômico quanto no plano geopolítico.

    Taiwan é parte da China pelo menos desde 1662, quando o guerreiro Zheng Chengong, conhecido no ocidente como Coxinga, no final da dinastia Ming, expulsou os holandeses e retomou o controle da ilha que anteriormente já estivera sob o domínio dos espanhóis e dos portugueses, que a denominaram Formosa.

    Em maio de 1950, após a derrota das forças do Kuomindang na guerra civil que levou à criação da República Popular da China, as forças nacionalistas do general Chiang Kai-shek refugiaram-se na ilha, onde estabeleceram o governo da República da China que deteve o assento de representação na ONU até 1972. Desde então, Taiwan permanece formalmente separada da China continental, graças, sobretudo, ao apoio militar dos Estados Unidos.

    Sob a ótica do direito internacional não há qualquer dúvida de que Taiwan seja parte integral da China e não se trata, portanto, de uma questão que possa ser resolvida por parte da sua população local e suas lideranças (Taiwan tem 23,4 milhões de habitantes, menor, portanto, que a população de Xangai que tem 26 milhões, em um país com 1,4 bilhão de habitantes) e muito menos sob a influência de alguma outra potência estrangeira, da mesma forma que não caberia à população de nenhum estado norte-americano decidir se quer ou não fazer parte dos Estados Unidos da América, ou de nenhum estado brasileiro se quer ou não fazer parte do Brasil.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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