Discurso econômico de Joe Biden fecha era neoliberal

    A barca de Don Juan, pintura de Eugéne Delacroix (França, 1798-1863).

    Resenha Estratégica – Vol. 18 – nº 17 – maio de 2021.        

    O discurso proferido pelo presidente Joe Biden no Congresso, em 27 de abril, não foi uma orientação ideológica para consumo dos seus eleitores, mas refletiu a convicção de parte do Establishment dirigente dos EUA sobre a necessidade da reconstrução física da economia, mesmo sob o enfoque da pretensão de manter uma hegemonia global. Recorde-se que a economia física estadunidense entrou em declínio com a hegemonia das finanças “globalizadas”, a partir de 1971, com o fim do arranjo estabelecido no pós-guerra, cujo resultado foi a transformação de uma admirável economia industrial e produtiva em um sistema parasitário, dentro e fora do país. Para os países em desenvolvimento, o desfecho foi a era neoliberal imposta na esteira da crise da dívida induzida pela triplicação dos juros da Reserva Federal de Paul Volcker, no final da década.

    A pandemia de Covid-19 trouxe à tona globalmente a necessidade de se recuperarem e reforçarem as estruturas econômicas dos Estados nacionais, já fragilizadas pela perda de soberania economia associada à “globalização” e ao livre comércio irrestrito. O próprio antecessor de Biden, Donald Trump, havia percebido a mesma necessidade, embora não tenha conseguido implementar o megaplano de investimentos em infraestrutura física que chegou a anunciar ao assumir o cargo.

    O visível esgotamento da era neoliberal e dos axiomas do “Consenso de Washington” tem provocado uma desorientação sistêmica nos adeptos de tal sistema, muitos dos quais consolidaram bem-sucedidas carreiras profissionais em governos, na academia, consultoras, mídia etc. e, agora, experimentam uma autêntica crise existencial.

    Um caso típico foi um editorial do jornal O Globo de 30 de abril, explicitando a estupefação dos neoliberais brasileiros com a audácia do presidente estadunidense, que, corretamente, pretende turbinar a recuperação econômica do país recorrendo aos antecedentes históricos de maximização da ação do governo federal como indutor dos processos econômicos, uma velha tradição nacional, geralmente, ignorada por aqui.

    O plano do presidente norte-americano Joe Biden surpreendeu e desgostou os sacerdotes do neoliberalismo.

    A irritação é explícita:

    Biden lançou três pacotes de investimento público somando US$ 6 trilhões, nível de intervenção estatal que não se vê desde antes da Era Reagan. A crença subjacente é que só o dirigismo tirará o país da crise para torná-lo líder de uma economia de baixo carbono (modelo não tão distante do preconizado pela China). (…)

    Para financiá-los, Biden propõe aumentar o imposto de renda da faixa de 1% com maior rendimento, ampliar taxas sobre herança, sobre ganhos de capital e dividendos (para quem ganha mais de US$ 1 milhão ao ano). Seu programa soa como música aos ouvidos dos preocupados com justiça social (dificilmente Sanders ou Warren teriam imaginado algo tão ambicioso) [grifos nossos]. Como diletos representantes da casta oligárquica que tem o Brasil como um gigantesco balcão de negócios, em vez de uma Nação digna, pode-se imaginar o arrepio dos herdeiros de Roberto Marinho, o que consideram como um “mau exemplo” para um País onde quem ganha o equivalente a menos de 900 dólares já entra na faixa máxima de desconto do imposto de renda, tem impostos sobre herança irrisórios e isenta os dividendos de tributação. E, mais ainda, com um megapacote de investimentos públicos quatro vezes maior que o PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. O temor leva os editorialistas do jornal à beira do patético: “Não se trata simplesmente de ‘cobrar mais dos ricos’. Um estudo da Universidade da Pensilvânia concluiu que o plano de Biden reduziria o PIB em 0,8% até 2050.”

    Como, provavelmente, os autores do estudo não identificado bebem na mesma fonte ideológica que os irmãos Marinho e seus escribas, é evidente que nenhum deles pode ser levado a sério.

    O editorial conclui explicitando o temor dos Marinho e sua classe:

    A maior consequência do intervencionismo de Biden será o recado torto (sic) transmitido ao resto do planeta. Numa pandemia, é necessário que o Estado coordene uma resposta eficaz à crise e tenha recursos para isso… Passada a emergência, porém, a situação será outra. A conta a pagar poderá ficar mais alta do que uma economia ainda enfraquecida, em recuperação, será capaz de suportar.

    É evidente que o significado do discurso de Joe Biden está sendo percebido por personalidades públicas com experiência, conhecimento, lucidez e honestidade intelectual. Uma delas é a economista Monica de Bolle, professora da Universidade Johns Hopkins, cujos artigos semanais, antes, no “Estadão” e agora no El País Brasil, têm oferecido importantes contribuições para o entendimento do cenário global, a crise brasileira e o seu enfrentamento. O de 30 de abril veio com o sugestivo título, “A reconstrução dos EUA com Joe Biden é um nó na cabeça dos ‘liberais à brasileira’”. Nele, de saída, ela desmente um dos mitos recorrentes sobre o desenvolvimento estadunidense, que vale destacar:

    Conta-se, por exemplo, uma história no Brasil de que o desenvolvimento dos Estados Unidos se deu pelo papel preponderante da iniciativa privada. Não há ideia mais errada do que essa para quem conhece a história deste país… Os EUA sempre viram no Estado o papel de indutor do desenvolvimento de longo prazo. Não se trata da visão nacional-desenvolvimentista da América Latina, tampouco pode ser compreendida com lentes sulistas. O desenvolvimento norte-americano e a atuação do Estado têm contextos, texturas, estruturas e história próprios. (…)

    O estadista norte-americano Alexander Hamilton sabia da importância do Estado para o desenvolvimento dos Estados Unidos.

    Pode ser uma história pouco contada no Brasil aquela segundo a qual os EUA se industrializaram por meio de políticas de substituição de importações e muitas práticas protecionistas inspiradas na obra de 1791 do primeiro secretário do Tesouro norte-americano, Alexander Hamilton. Em seu Report on the subject of manufactures, Hamilton delineou os conceitos de indústria nascente e apoio estatal, que, mais tarde, influenciariam não apenas a industrialização de seu país, mas a da Alemanha, a do Japão, a da França, chegando à América Latina nos anos 1930, quarenta e cinquenta. A obra de Raúl Prebisch e o que ficou conhecido como pensamento cepalino cita Hamilton recorrentemente, e não é por acaso. O Estado indutor norte-americano seria revisto e reinventado ao longo de toda a história, passando pela corrida espacial da Guerra Fria, o surgimento da Internet, o desenvolvimento do setor de tecnologia, sobretudo o de bioteconologia, que tanta relevância tem tido na atual pandemia. Para que as vacinas gênicas, as mais sofisticadas contra covid-19, saíssem dos laboratórios para os nossos braços, o Governo de Donald Trump fez a enorme Operação Warp Speed. Logo, no mundo real se deu o contrário do que sustenta o ministro da Economia brasileiro, e não haveria Moderna ou Pfizer sem a atuação vultosa do Estado.

    O plano econômico de Biden, diz ela, “são profundamente marcados pela tradição norte-americana do Estado indutor” e têm uma evidente intenção de “dar forma a um Estado de Bem-Estar Social”.

    Sua conclusão é dirigida diretamente aos brasileiros: “Com Biden, os Estados Unidos estão fazendo aquilo que sempre fizeram de melhor: se reimaginando e reinventando. Por certo, há lições aí para o Brasil. Mas elas estão longe de ser o que tantos regurgitam nos jornais ou na TV.”

    Na mesma tecla, bate o diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). Em uma entrevista publicada no “Estadão” de 29 de abril, ele afirma categoricamente que o Brasil também precisa rediscutir o papel do Estado na economia. A essência da mensagem está na resposta à pergunta do jornalista Renato Vasconcelos sobre o que o Brasil precisaria captar sobre as medidas tomadas por Biden:

    O discurso apresenta uma revisão da política econômica americana, em que o Estado passa a ter um papel central. E isso é uma revolução.

    Os planos todos, do FMI e demais, focam na contenção da dívida pública, no equilíbrio fiscal, mas Biden está falando outra coisa. Ele fala em prestar atenção na classe média, na necessidade do país crescer para fazer frente à competição externa e no investimento estatal pesado. Isso não é mais Estado mínimo, é Estado é grande. Teremos que discutir aqui no Brasil essa questão do papel do Estado na economia, à luz da atual política econômica.

    Outra coisa que ele mencionou, que temos que pensar aqui no Brasil, é a questão da taxação. Ele defendeu que parte dos recursos para esses planos venha através da taxação de grandes empresas e dos mais ricos. A classe média, com renda de até 400 mil dólares, está fora. Para eles, não vai ter aumento de imposto. Quem vai pagar parte desse esforço tremendo do governo americano são os ricos, a classe média alta e as empresas. A questão do papel do Estado na economia vai ter que ser discutida.

    Essa tendência pode chegar ao Brasil. Há um início de discussão nesse sentido com os debates sobre o auxílio emergencial, mas para fazer uma revisão do papel do Estado é preciso mudar conceitualmente os parâmetros que formam nossa posição. Toda a lógica atual, de teto de gastos, contenção de dívidas e equilíbrio fiscal estão em uma filosofia anterior à que Biden apresentou.

    Independentemente dos desdobramentos dos planos de Biden, como os EUA representam uma forte referência para muitos membros das elites dirigentes brasileiras, quem sabe se a sua intenção de reconstruir o país de acordo com as suas melhores tradições históricas, possa exercer uma salutar influência positiva por aqui. É hora de abandonar o charlatanismo neoliberal e levar a sério a reconstrução econômica nacional, com grandes investimentos públicos e privados em infraestrutura, modernização industrial e ciência, tecnologia e inovação.

    Aqui, sim, o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.

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