Intérpretes do Brasil – Cassiano Ricardo

Colonizadores da cidade de São Paulo (1969). Autor: Clóvis Graciano

Cassiano Ricardo (São José dos Campos, 1894 – Rio de Janeiro, 1974) foi um dos mais importantes poetas e literatos modernistas do Brasil. Tanto nas artes quanto na política, demonstrou inequívoco compromisso com um nacionalismo autenticamente brasileiro.

Junto a Plínio Salgado e Menotti del Picchia, fundou, em 1924, o Movimento Verde-Amarelo, como resposta ao Manifesto do Pau-Brasil, considerado por eles excessivamente “afrancesado”. Porém, afastou-se do grupo, particularmente de Plínio Salgado, na década de 1930. Em 1936, juntamente a Monteiro Lobato, Mário de Andrade e outros, fundou o grupo Bandeira, que rechaçava o fascismo ítalo-germânico esposado por Plínio Salgado e apoiava a política nacionalista de Getúlio Vargas. Hostil ao comunismo, ao fascismo e ao liberalismo, o grupo alinhava-se a uma solução especificamente brasileira para as questões e desafios do Brasil. Seu lema era “A vestir uma camisa verde ou vermelha, preferimos ficar sem camisa”. Por isso, recebeu o apoio de eminentes autoridades militares, como Góes Monteiro e Juraci Magalhães.

Cassiano Ricardo ocupou importantes funções governamentais durante o Estado Novo, tendo sido um dos coordenadores do planejamento cultural estabelecido pelo regime, que redefiniu a identidade nacional brasileira em termos nativos, pela primeira vez de forma independente das correntes europeias. Ele dirigiu a seção paulista do Departamento de Imprensa e Propaganda, o departamento cultural da Rádio Nacional e foi editor-chefe do jornal A Manhã, órgão oficial de comunicação. Manteve-se sempre aberto à pluralidade de ideias, desde que afins ao interesse nacional. Permitiu, assim, que opositores declarados do governo, como Graciliano Ramos, publicassem seus escritos na mídia oficialista.  

Cassiano Ricardo, paulista, viu o Brasil formado a partir da epopeia bandeirante, de personalidade sertaneja e mestiça.

Além da sua importantíssima atuação política, contribuiu imensamente para o pensamento social e político brasileiro. Valorizou os mais diversos aspectos históricos formadores do Brasil, notadamente os de ordem étnica, geográfica, mítica e simbólica, entendidos em conjunto. Em sua obra, o Brasil profundo e folclórico dos sertões, dos bandeirantes e dos caboclos ganha primazia em relação ao Brasil litorâneo, desencantado e cosmopolita, sendo entendido como o caudal da nacionalidade e a fonte das representações orgânicas dos sentimentos e dos modos de vida populares.

Entre suas principais obras, destacam-se Martim Cererê o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis (1928) e Marcha para Oeste – A influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil (1940).

Martim Cererê constitui-se em um livro de poemas em que a história do Brasil, o folclore e as reminiscências da infância interiorana do eu-lírico emaranham-se compondo um quadro poético-descritivo da formação, da identidade e das possibilidades da Nação brasileira. Passado, presente e futuro encontram-se associados no contínuo de um Brasil simultaneamente histórico e mitológico, desbravado e construído por um povo mestiço e original. Sendo o povo brasileiro eternamente criança e, portanto, sonhador, brincalhão e destemido, legítimo descendente dos bravos e fortes bandeirantes, ele zombaria dos preconceitos importados e estaria predestinado a construir, pela marcha adentro ao continente, uma civilização autêntica e vibrante, capaz de combinar o moderno progresso técnico e a vitalidade espiritual herdada das tradições rurícolas e sertanistas. A eletricidade e o saci-pererê seriam elementos coetâneos do Brasil brasileiro retratado por Cassiano Ricardo, um Brasil em que as máquinas estariam a serviço dos meninos, poetas e heróis, os verdadeiros arquétipos nacionais.

Marcha para Oeste, por sua vez, constitui um tratado historiográfico acerca da centralidade do bandeirantismo para a formação étnico-geográfica-cultural brasileira. Nessa obra, Cassiano Ricardo traça um contraponto a Gilberto Freyre: enquanto o sociólogo pernambucano investigou as origens do Brasil na grande propriedade imobiliária rural e escravista, atrelada aos regimentos e diretrizes da Coroa metropolitana, o literato paulista, sem negar a existência e a importância dos processos apontados por Freyre, privilegia o caráter nômade e independente do bandeirismo como gênese da nação brasileira. Enquanto Freyre viu o Brasil a partir da zona da mata nordestina, Cassiano Ricardo o viu a partir do planalto paulista. Ambos eram conscientes da concomitância e, em certa medida, da complementaridade desses dois eixos de formação nacional, que concorreram, de diferentes formas, para a estruturação do Brasil.

Segundo Cassiano Ricardo, o bandeirantismo, “uma das maiores revoluções da humanidade”, inicia efetivamente a história do Brasil como nação à parte de Portugal. Já não se tratava de colonos portugueses explorando o Brasil para atender aos interesses da metrópole, mas de mamelucos paulistas, juntamente a indígenas e negros, desbravando o continente e estendendo a fronteira do Brasil para além dos limites estipulados por Portugal e Espanha no Tratado de Tordesilhas.

Em Marcha para Oeste, Cassiano Ricardo escreve a biografia da autoconstrução do Brasil pelos Bandeirantes, do litoral para o interior pelo braço do índio, do mameluco, do português e do africano.

A ambição do ouro, das pedras preciosas e das drogas do sertão, alimentada pelos mitos de infinitos tesouros, impulsionou o contingente demográfico mestiço do planalto paulista para dentro do meridião americano, povoando-o com tipos étnicos especificamente brasileiros, nascidos da interação entre brancos/mamelucos, índios e negros, que as bandeiras fomentavam. O bandeirantismo, verdadeiro caldeirão étnico, não ocorreria sem o concurso dos índios, que mostravam os caminhos e as técnicas e os meios de sobrevivência e combate, bem como dos negros, essenciais nas batalhas contra espanhóis e jesuítas e no plantio que por vezes se fazia para abastecer as bandeiras vindouras. Portanto, o bandeirantismo não foi “branco” e “racista”, mas fundamentalmente mestiço e englobante das três principais etnias formadoras do Brasil.

O bandeirantismo, ao formar etnicamente o Brasil e contribuir para estabelecer nossas tradições de democracia racial, também promoveu a brasileirização da geografia sul-americana, rompendo o imobilismo do sistema de capitanias e os contornos desenhados pelas Coroas de além-mar. A interiorização da população nativa brasileira e a consequente expansão do território brasileiro rumo às bandas ocidentais modelaram-no em formato análogo ao do continente. 

A nacionalização do povo pela miscigenação franca e aberta e a nacionalização do espaço pela penetração demográfica a partir de São Paulo foram processos simultâneos, instituidores de todo um sistema de cultura, valores e modos de vida organicamente brasileiros, absolutamente dissociados dos comandos peninsulares. O Brasil passou a voltar seus passos e seus olhos cada vez mais para dentro de si, descobrindo sua realidade interna, ocultada pela prostração no litoral alienado, voltado apenas para fora. 

O afastamento bandeirante dos centros litorâneos – por meio dos quais eram exercidos os comandos do pacto colonial -, ao autonomizar as relações sociais, políticas e econômicas internas, favoreceu uma ocupação do solo fundada na pequena propriedade rural policultora de subsistência, em contraste com a grande propriedade agroexportadora e monocultora típica das regiões litorâneas. Assim, propiciou a formação de interesses domésticos, voltados para dentro, que se refletiram no surgimento das primeiras manifestações de autogoverno brasileiro, determinado pelas condições internas do povo e da terra, e não pela subjugação a uma monarquia transatlântica e exótica. Exemplos de autogoverno, criados pelos Bandeirantes, seriam a instituição de uma democracia representativa em Cuiabá, com deputados e governadores eleitos pelo povo já no início do século XVIII e a cunhagem de moeda própria com o ouro de Jaraguá. O bandeirantismo suplantou a talassocracia colonial pela telurocracia nacional, projetando formas autônomas de poder sobre o espaço geográfico que, formalmente pertencente a Portugal, era crescentemente organizado por brasileiros e para brasileiros. Iniciou-se, assim, na prática, o processo de Independência, que prosseguiu em um crescendo até culminar no 7 de setembro.

Martin Cererê é a história folclórica do Brasil, do primado do Brasil rural sobre o urbano, da criança sobre o adulto.

Cassiano Ricardo não entendia o bandeirantismo como um fenômeno circunscrito ao período anterior à Guerra dos Emboabas (1707-1709), quando os portugueses derrotaram os paulistas na luta pelas minas de ouro descobertas pelos últimos, ou ao Tratado de Madrid de 1750, que desfez o de Tordesilhas e incorporou definitivamente as conquistas bandeirantes ao território brasileiro por meio do dispositivo legal do uti possidetis. Para ele, o bandeirantismo, enquanto fator de construção da unidade e da soberania nacionais e gênese das instituições políticas e sociais brasileiras, seria um processo permanente. Sua permanência residiria não apenas na manutenção do legado geográfico e social, da incorporação ao Brasil de uma ampla parcela continental e sua ocupação por uma população mestiça. Mas, também, no fato dessa conquista impelir naturalmente os brasileiros para dentro do seu próprio País. O autor denomina esse processo de “imperialismo interno”, pois seria voltado à descoberta e brasilerização dos recônditos do próprio território, de forma a estender a fronteira econômica e demográfica aos limites da fronteira política. O fato do bandeirantismo pós-1750 ter se concentrado mais na expansão doméstica não o torna menos bandeirante, pois, de todo modo, fazia-se presente o ímpeto desbravador e integrador. 

Em sua concepção, não menos bandeirantes do que Anhanguera, Borba Gato e Raposo Tavares, foram, por exemplo, o santista Alexandre de Gusmão, redator do Tratado de Madrid de 1750; o também santista José Bonifácio de Andrada e Silva, Patriarca da Independência e arauto da interiorização do povoamento e do desenvolvimento; os cafeicultores paulistas da segunda metade do século XIX, que, por meio de ferrovias e estradas, estenderam suas atividades a Oeste, combinando o trabalho livre com a policultura agrícola que acompanhava as plantações de café; Rio Branco, protagonista da anexação do Acre, a última expansão fronteiriça para Oeste; o Marechal Rondon, desbravador dos sertões, protetor dos índios e construtor de linhas e estações telegráficas no interior do País; Getúlio Vargas, para quem “o verdadeiro sentido da brasilidade é a marcha para o Oeste” e que, por isso, coordenou, por meio do programa Marcha para o Oeste, esforços governamentais para realizar a integração nacional no seio da continentalidade. Em edição posterior da sua obra, de 1970, Cassiano Ricardo apontaria também como bandeirantes o governo Juscelino Kubitschek, continuador da Marcha para o Oeste de Getúlio e edificador de Brasília, cidade bandeirante por definição, e os governos militares de então, empenhados na expansão das infraestruturas e do desenvolvimento da hinterlândia brasileira. O Projeto Rondon e a Transamazônica seriam duas das maiores iniciativas bandeirantes do governo militar.

Dessa forma, segundo o autor, “Todo brasileiro que abre caminhos novos é, hoje um bandeirante” (p. 562). O bandeirantismo seria a própria essência da soberania brasileira. Somente sendo bandeirante, poderia o Brasil apropriar-se de si e desenvolver e se articular internamente, tornando-se um País voltado para si e não para os outros. Os meninos, poetas e heróis que comporiam a brasilidade seriam, todos eles, bandeirantes.

O pensamento nacional de Cassiano Ricardo, um dos mais originais e fecundos do nosso País, torna-se ainda mais importante na atual quadra histórica, quando os valores e o patrimônio histórico do Brasil são sistematicamente atacados, deturpados e soterrados por aqueles que pretendem dominar e extinguir a Pátria verde-e-amarela. Não surpreende que o legado e a realidade bandeirantes, como a miscigenação e a soberania brasileira sobre a Amazônia, sejam demonizados.  Isso é feito com o intuito de que os brasileiros se envergonhem da sua própria Nação e submetam-se docilmente aos comandos externos, entregando ao capitalismo estrangeiro as riquezas naturais, territoriais, científico-tecnológicas e culturais conquistadas a duras penas por gerações de brasileiros, todos eles bandeirantes e Martins Cererês.

Em 1972, a escola de samba Imperatriz Leopoldinense homenageou Cassiano Ricardo e Martin Cererê, enredo imortalizado na composição de Zé Catimba. O magnífico samba-enredo foi depois gravado por Zeca Pagodinho.

Porém, da mesma forma que o Brasil surgiu e se desenvolveu a despeito das oligarquias apátridas e/ou forâneas, demonstrando insubmissão bandeirante e “martimcererênica” aos centros político-econômicos externos e aos interesses antibrasileiros, saberá resistir a eles também hoje. Daí a importância de retomar a interpretação de Brasil formulada por Cassiano Ricardo, absolutamente fiel aos mais nobres princípios da nossa nacionalidade.

Obras mencionadas:

RICARDO, Cassiano (1928). Martim Cererê – o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7041

RICARDO, Cassiano (1970 [1940]). Marcha para Oeste – A influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil. 2 vol. 4ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

Felipe Maruf Quintas
Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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2 COMENTÁRIOS

  1. Felipe, parabéns pela publicação e por compartilhar conosco algo da nossa história como país! Formada por brasileiros que lutaram a sua moda e com suas armas pela nossa liberdade como nação!

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