A pandemia da Covid-19 já matou 5,6 milhões de pessoas em todo o mundo, a maior parte nos países pobres e em desenvolvimento. Boa parcela dessas mortes teria sido evitada caso as vacinas tivessem sido disponibilizadas a tempo. A quantidade de vacinas já produzidas – cerca de 10 bilhões – seria mais do que suficiente para imunizar toda a população adulta do mundo, mas nos países mais pobres os índices de vacinação permanecem assustadoramente baixos.
Até agora foram aplicadas, em todo o mundo, 9,93 bilhões de doses, com 4,1 bilhão de pessoas totalmente vacinadas, o que equivale 52,6% da população mundial. Restam ainda 3 bilhões de pessoas por vacinar, a maioria nos países pobres e em desenvolvimento. Em alguns países da África a taxa de vacinação ainda não passou dos 5% (Etiópia – 1,4%; Nigéria – 2,5%; Sudão – 3,3%; Uganda – 4,4%). Em outros a situação é um pouco melhor, mas os índices ainda permanecem muito baixos (Costa do Marfim – 8,5%; Quênia – 9,5%; Guiné – 9,9%; Gana – 10,1%; Argélia – 13,2%; Angola – 13,8%; Líbia – 14,0%; Zimbábue – 22%, África do Sul – 27,7%). Mesmo fora da África, há diversos países em situação semelhante (Síria – 5,3%; Afeganistão – 9.9%; Iraque – 15,5%; Bangladesh – 35,7%). Mas nos países ricos há vacinas sobrando; só não se vacina quem não quer.
Enquanto isso, os lucros dos principais fabricantes mundiais de vacina não param de crescer. Conforme noticiou o jornal Folha de S.Paulo (21/01/2022), “A receita das grandes empresas farmacêuticas chegará a quase meio trilhão de reais apenas com a venda de vacinas contra a Covid-19, no ano de 2022. As previsões são da consultoria Airfinity, que desde o início da pandemia se transformou na principal referência sobre mercado e projeções de produção de imunizantes. Os dados do levantamento indicam que, em 2022, as grandes empresas do setor terão uma receita de US$ 84,9 bilhões (R$ 460 bilhões) com a venda de vacinas, 29% superior ao que já obtiveram em 2021. Os cálculos excluem as vacinas chinesas”.
Embora diversos fatores contribuam para o baixo nível de vacinação nos países pobres, o principal deles continua sendo a falta de imunizantes, que por sua vez está relacionada ao seu preço e ao controle da produção por uns poucos laboratórios no mundo. A maioria dos países se dispõe a pagar pelas vacinas, mas o fato de elas serem protegidas por patentes impede sua produção e distribuição por laboratórios públicos em países mais pobres. Dessa forma, além de ter que ficar no final da fila, uma vez que os laboratórios privados priorizam atender os contratos maiores com os países ricos, são obrigados a pagar valores elevados, o que os impede de comprar as quantidades necessárias.
A questão das patentes de medicamentos tem sido um tema recorrente desde a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1994. Naquela ocasião a questão das patentes, cuja regulação estava na órbita da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), organismo da ONU que não obrigava os países a reconhecer patentes de remédios ou alimentos, passou para o controle da OMC. Todos os países que quisessem aderir à OMC foram obrigados a assinar um novo acordo de patentes chamado TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). Esse novo acordo incluiu a proteção intelectual para medicamentos e sementes, estendeu o prazo de proteção de 10 para 20 anos e criou o mecanismo de “patente de importação”, que desobrigava os laboratórios a produzir os medicamentos localmente desde que garantissem o abastecimento via importação.
Essas mudanças ocorreram por pressão dos Estados Unidos, cujas empresas farmacêuticas reclamavam da concorrência dos chamados “similares” produzidos nos países em desenvolvimento, limitando sua capacidade de imporem preços de monopólio. Após a entrada em vigor do TRIPS, em 1994, o custo dos medicamentos no mundo apresentou aumentos astronômicos, uma vez que sem a concorrência dos “similares” ficaram livres para impor os preços que quisessem. Isso dificultou o acesso aos remédios pelas populações dos países pobres gerando crises em momentos de pandemias, como foi o caso da AIDS, na década de 1990, e novamente agora com a Covid.
Na conferência de Doha da OMC, em 2001, para contornar parcialmente o problema foi introduzida a figura do “medicamento genérico”, mas que somente poderia ser produzido após a expiração da patente ou em situações excepcionais de ameaças humanitárias com foi o caso da AIDS. No episódio da Covid, embora a escala de mortes seja incomparavelmente maior do que na circunstância da AIDS, até hoje não se conseguiu um acordo para a quebra das patentes, o que explica os lucros exorbitantes dos laboratórios norte-americanos e europeus e a falta de vacinas no mundo pobre.