Um ponto fora da curva ou novo normal na política?

Os acontecimentos de 8 de janeiro em Brasília são lastimáveis sob todos os aspectos. Apurar as responsabilidades e punir exemplarmente os responsáveis, sejam os vândalos que depredaram o patrimônio público, sejam os financiadores dos atos golpistas e, sobretudo, seus mentores intelectuais e eventuais facilitadores, resolve parte do problema, uma vez que irão pensar duas vezes antes de tentar uma nova aventura.  Mas resta um problema de fundo que a mera punição não resolve, uma vez que para muitos dos punidos o castigo apenas reforçará suas convicções e alimentará o desejo de vingança.

Falar em conciliação talvez seja pedir demais, uma vez que os próprios princípios da competição, sobre os quais se baseiam as sociedades capitalistas, não satisfazem o desejo de unidade e harmonia e, acima de tudo, o de pertencer a uma comunidade especial, única e superior. É preciso, contudo, fazer o possível para trazer a disputa política de volta para seu antigo leito, o que no caso do Brasil não se trata de uma tarefa simples. Para piorar as coisas, o que se passa hoje no Brasil não é exceção, um raio em céu azul.

O desprezo pela democracia liberal eleitoral é um fenômeno mundial presente não apenas em países que nunca conheceram ou adotaram esse sistema de governo, considerado por Churchill a pior forma de governo com exceção de todas as demais, mas, no próprio coração do Ocidente, onde nasceu a democracia moderna, ou seja, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.

Os eventos do 8 de janeiro, no Brasil, terem sido um arremedo do 6 de janeiro nos Estados Unidos não é pura coincidência.  O fato de os promotores do ataque ao Capitólio, em 2021, estarem organicamente vinculados aos que incentivaram a arruaça de 8 de janeiro, em 2023, no Brasil, também não é. A circunstância de os websites voltados a criar falsas narrativas visando estimular a raiva, o descontentamento e o medo entre a população terem o mesmo estilo e layout em todos os países, como se fossem desenvolvidos pela mesma pessoa, ou provavelmente a mesma equipe de especialistas em relações públicas, também não é obra do ocaso.

Existe hoje, no Ocidente, um bem orquestrado movimento mal chamado de conservador, mas que na verdade é uma articulação protofacista que cresceu sobre o lixo do capitalismo monopolista globalizado com a pretensa intenção de lhe fazer oposição, mas que, na verdade, procura perpetuar por meios violentos uma situação de crescente desigualdade social que as antigas democracias liberais já não dão conta de fazer.  Tal movimento tem como base amplos segmentos da chamada baixa classe média e da burocracia estatal, que diante da crescente insegurança econômica e rejeitando soluções mais solidárias se apegam às promessas vãs desses encantadores de serpentes, dos quais Trump é uma espécie de sumo-sacerdote.

É preciso ter claro, contudo, que por trás dessa turba idiotizada há gente bem formada – intelectuais, empresários, políticos, jornalistas – que manipulam os cordões para que a malta faça o serviço sujo.  Não é por acaso que, no caso do Brasil, Bolsonaro chegou ao poder, em 2018, graças, em grande medida, ao apoio do chamado “mercado” e de amplos setores da burocracia estatal nas três esferas de poder e nos três níveis de governo e, não menos importante, da mídia tradicional. O chamado “Bolso-Dória” é o exemplo mais acabado dessa aliança que não ousa dizer seu nome.

Gente bem formada em universidades de prestígio internacional, templos do pensamento neoliberal, serviram de bom grado ao governo que sai e viabilizaram as chicanas jurídicas e econômicas para tentar garantir a reeleição de seu chefe.   Também não é por acaso que Bolsonaro, mesmo tendo feito um dos governos mais desastrosos de que se tem notícia, quase conseguiu reeleger-se, perdendo as eleições por apenas dois pontos percentuais.

Neoliberalismo e democracia são conceitos que não se conjugam; para que um floresça o outro tem que fenecer. Todo o processo de desconstrução da política que levou à eleição de Bolsonaro tem sua origem na necessidade do neoliberalismo de retirar dos poderes eleitos toda a capacidade de decidir sobre questões centrais para a sociedade, principalmente na esfera econômica. Por mais repulsa que as deploráveis imagens de vândalos depredando o patrimônio histórico e cultural do País possam causar à elite bem educada do mercado financeiro, como se não tivessem nada a ver com aquela barbárie, o fato é que o esvaziamento da democracia substantiva e a redução dos direitos de controle democrático foi uma condição necessária para efetuar a transição neoliberal nas últimas décadas, levando ao que Colin Crouch chamou de pós-democracia, definida como uma sociedade que continua a ter e usar todas as instituições da democracia, mas da qual elas crescentemente se tornam apenas uma casca formal.

A transição para a nova ordem econômica, o neoliberalismo, foi alcançado pela despolitização gradual da política econômica por meio da remoção da política macroeconômica do controle democrático pela separação da economia da política, isolando, dessa forma, a transição neoliberal da contestação popular. Fizeram parte desse processo, no mundo todo, tornar os bancos centrais independentes, adotar as metas de inflação, conjugar regras de limitação de gastos e submeter prerrogativas nacionais a órgãos internacionais, tornando o desafio à ordem político-econômica dominante cada vez mais difícil e frequentemente ilegal com a aplicação de leis de responsabilidade fiscal, regras de ouro, teto de gastos etc.

Não que no caso do Brasil, bem como de outros lugares do mundo, onde esses movimentos antidemocráticos têm vicejado, não haja outros fatores além dos econômicos ligados a questões religiosas e à agenda de costumes, mas, bem vistas as coisas, o que leva muitas pessoas a aderir de forma que beira o fanatismo a essas outras agendas é também a insegurança econômica generalizada característica dessa época neoliberal, quando família e igreja passam a ser os últimos esteios dos desesperados diante da retração cada vez maior do estado de seu papel social para converter-se apenas em garantidor dos ganhos financeiros por meio do sistema da dívida pública. Não há cura para esse mal-estar da civilização ocidental se os problemas de fundo não forem resolvidos.