Por que os Estados Unidos querem impedir a ascensão da China?

    Ocorreu em novembro o primeiro encontro pessoal entre o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, depois que foi eleito, e o presidente da China, Xi Jinping, à margem da cúpula do G20, em Bali, na Indonésia.

    A considerar o que disse o presidente americano, poderíamos supor que a atitude agressiva dos Estados Unidos em relação à China, que se tornou a marca registrada do governo Trump e que teve continuidade nos primeiros dois anos do governo Biden, poderia estar, finalmente, arrefecendo, com as relações entre os países entrando em uma nova fase, senão de cooperação, pelo menos de convivência civilizada.

    Depois de se encontrar com Xi Jinping, Joe Biden fez o possível para pintar uma imagem otimista das relações EUA-China. “Como líderes de nossas duas nações”, disse ele, “compartilhamos a responsabilidade de mostrar que a China e os Estados Unidos podem administrar nossas diferenças, impedir que a competição se transforme em um conflito e encontrar maneiras de trabalhar juntos em questões globais urgentes que requerem nossa cooperação mútua.”

    Não há, contudo, nas medidas tomadas pelo governo Biden nas últimas semanas, nada que indique que as relações bilaterais entre Estados Unidos e China caminhem em tal direção. Muito pelo contrário.  A verdade é que a relação EUA-China está em seu ponto mais baixo desde que estabeleceram relações diplomáticas em 1979 e só tende a piorar. E grande parte da culpa por isso é do governo Biden, cujas medidas tomadas em relação à China nas últimas semanas são ainda mais agressivas que aquelas adotadas por Trump. Apesar do discurso apaziguador de Biden, são medidas que apenas se toma contra países com os quais se pretende em breve entrar em guerra.

    No último mês de outubro, o presidente Biden baixou uma nova ordem executiva elevando as restrições às exportações para a China de microprocessadores avançados e equipamentos para sua produção à enésima potência. Medidas que, no governo Trump, tinham sido tomadas pontualmente contra algumas empresas chinesas como a Huawei e a ZTE, com o objetivo de impedir o avanço da China nas tecnologias relacionadas à Internet 5G, foram agora generalizadas para todas as empresas chinesas em todos os setores.

    Como observou Dani Rodrik em artigo publicado no site Project Syndicate (10/11), Biden foi muito mais longe do que seu antecessor, Donald Trump, que tinha como alvo empresas individuais como a Huawei. As novas medidas são surpreendentes em sua ambição, visando nada menos que impedir a ascensão da China como uma potência de alta tecnologia. Segundo Rodrik, “a estratégia de Biden tem quatro partes inter-relacionadas, observando todos os níveis da cadeia de abastecimento. Os objetivos são negar o acesso da indústria chinesa de inteligência artificial a chips de última geração; impedir a China de projetar e produzir chips de IA em casa, restringindo o acesso ao software de design de chips dos EUA e aos equipamentos de fabricação de semicondutores fabricados nos EUA; e bloquear a produção chinesa de seu próprio equipamento de fabricação de semicondutores, impedindo o fornecimento de componentes americanos”.

    As proibições se estendem não apenas à exportação de chips semicondutores e equipamentos dos EUA, mas também a quaisquer chips avançados fabricados com equipamentos americanos. Elas visam também “pessoas dos EUA”, significando não apenas cidadãos americanos, mas também portadores de green card, o que significa que não só americanos, mas muitos naturais da China ou outros países com cidadania ou green card americano, estão proibidos de trabalhar para empresas chinesas de alta tecnologia.

    Como resultado, empresas de Taiwan à Coreia do Sul e à Holanda agora estão tentando quantificar sua exposição, para não falar daquelas nos EUA e na China. Muitas empresas chinesas já estão sendo obrigadas a dispensar empregados americanos e muitos chineses precisam escolher entre ficar com o green card ou trabalhar para alguma empresa chinesa de alta tecnologia. Conforme informou o Financial Times (23/10), “A fabricante de chips chinesa Yangtze Memory Technologies Corp pediu aos funcionários americanos em cargos de tecnologia importantes que saíssem, enquanto se apressa para cumprir os novos controles de exportação dos EUA que estão atrapalhando a indústria de chips do país. Quatro pessoas próximas à empresa disseram que não está claro quantos cidadãos americanos e detentores de green card seriam forçados a deixar a YMTC, mas que vários na China já haviam deixado a produtora de chips de memória”. Trata-se de uma verdadeira declaração de guerra por meio do uso massivo de sanções econômicas, cujo objetivo é matar no nascedouro qualquer pretensão chinesa de se tornar uma potência tecnológica no século 21.

    Apesar de a justificativa de tais medidas fazer menção ao possível uso militar pela China dessas tecnologias, as verdadeiras razões podem ser encontradas no documento que atualizou a estratégia de defesa nacional da China. Nele se lê que as preocupações com a China não decorrem propriamente de alguma ameaça direta que o país represente para a segurança dos Estados Unidos, mas ao fato de os chineses estarem querendo reformar a ordem internacional a seu favor. Ou seja, o que preocupa os Estados Unidos não é a sua segurança interna que eles sabem não corre nenhum risco pela parte dos chineses, mas sim o que a China significa em termos de ameaça à hegemonia americana no mundo.

    A respeito disso, vejamos o que disse o escritor Thomas Fazi, autor do livro Reclaiming the State:

    “O aspecto mais terrível de tudo isso é que não há nada inevitável em uma guerra EUA-China. Se a China representasse uma ameaça à segurança para a sobrevivência dos Estados Unidos, esse poderia ser o caso. Mas isso não acontece. O problema com a China, como enfatizou a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA recentemente lançada, é ela ser o único concorrente dos EUA com “a intenção e, cada vez mais, capacidade de remodelar a ordem internacional em favor de uma que incline o campo de jogo global para seu benefício”, o equivalente a dizer que os EUA devem ter como objetivo “superar a competição” da China. A mais recente Estratégia de Defesa Nacional do Pentágono também conclui que a China “continua sendo nosso concorrente estratégico de maior importância nas próximas décadas”, devido ao seu “esforço coercitivo e cada vez mais agressivo para remodelar a região do Indo-Pacífico e o sistema internacional para atender aos seus interesses e preferências autoritárias”. Em outras palavras, a China não é uma ameaça porque mina os interesses de segurança dos EUA, mas porque vai querer moldar – e de fato já está moldando – a ordem política e econômica global de uma maneira que sirva a seus próprios interesses, e não apenas aos dos EUA e outras nações ocidentais, como tem acontecido desde a Segunda Guerra Mundial. A ameaça real, então, não é para a América, mas para as ambições unipolaristas hegemônicas da América e aqueles que se beneficiam disso. Reconhecer isso não é ser “anti-China” ou “pró-China” – é aceitar que uma ordem mundial pacífica depende de nossa capacidade, como ocidentais, de admitir uma distribuição mais equitativa dos recursos globais e de tolerar diferentes culturas nacionais, arranjos e práticas institucionais, mesmo que os achemos desagradáveis”.

    Passaram-se 30 anos desde o fim da URSS e do campo socialista, quando os Estados Unidos assumiram por um breve período a condição de potência unipolar. Depois disso, o mundo mudou muito, tanto pela queda relativa da importância dos Estados Unidos, quanto pela simétrica ascensão de novos atores na cena internacional, entre eles a China, mas não apenas ela. Os Estados Unidos não admitem, entretanto, esse novo mundo multipolar e tornam-se cada dia mais agressivos na medida em que pressentem que o resto do mundo já não está disposto a acatar suas ordens sem contestação, como fazia há 30 anos.

    Os Estados Unidos sequer se dão conta de que muitas das medidas que estão tomando se voltarão contra eles próprios, uma vez que grande parte de seu próprio avanço econômico nesses últimos 30 anos dependeu do aprofundamento do processo de globalização econômica, que não apenas criou novos mercados para suas empresas como também propiciou uma nova divisão internacional do trabalho que lhes foi imensamente favorável, ao lhes garantir as partes mais lucrativas das cadeias globais de valor, transferindo para outros países, nomeadamente a China, aquelas atividades geradoras de menor valor agregado que poderiam ser executadas fora dos Estados Unidos por uma pequena fração do seu custo em território americano.

     Conforme observou o Financial Times (07/11): “A empresa de tecnologia mais lucrativa que opera na China não é uma gigante doméstica da Internet, como Alibaba ou Tencent, mas a Apple, com sede na Califórnia. Seus negócios na China cresceram tão rapidamente durante a pandemia que agora geram mais lucro do que a receita combinada das duas maiores empresas de tecnologia do país, de acordo com uma análise do Financial Times. A dependência da Apple no país como sua base de fabricação – com responsabilidade por 95% da produção do iPhone, de acordo com o Counterpoint, um grupo de inteligência de mercado – deixa o negócio vulnerável a choques na cadeia de suprimentos (…). No entanto, quando se trata de vender seus dispositivos para consumidores chineses, os negócios dispararam. Os lucros operacionais na grande China – que inclui Hong Kong, Macau, Taiwan e China continental – dispararam de 104% em 24 meses, para US$ 31,2 bilhões no ano fiscal encerrado em setembro, superando os US$ 15,2 bilhões ganhos pela Tencent e os US$ 13,5 bilhões do Alibaba em seu período de 12 meses mais recente, de acordo com a S&P Global Market Intelligence”.

    Como potência global em fase declinante, os Estados Unidos representam hoje um risco crescente à paz mundial, o que, infelizmente, obriga aqueles países que eles veem como desafiantes a se armarem minimamente a fim dissuadi-los de os atacarem diretamente. Por isso, os Estados Unidos optaram por fazer a guerra por outros meios, usando o dólar como arma de guerra e recorrendo às sanções econômicas. A respeito disso, Edward Luce, comentarista do Financial Times (19/10), assim se expressou: “Imagine que uma superpotência declarou guerra a uma grande potência e ninguém percebeu. Joe Biden lançou este mês uma guerra econômica total contra a China – quase comprometendo os EUA a impedir sua ascensão – e os americanos, na sua maior parte, não se deram conta. Com certeza, há a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a inflação interna para chamar a atenção. Mas é provável que a história registre a jogada de Biden como o momento em que a rivalidade EUA-China saiu do armário. A América agora está empenhada em fazer tudo, exceto lutar uma guerra real, para impedir a ascensão da China”

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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    2 COMENTÁRIOS

    1. A análise mais completa sobre a situação atual. Louvo a coragem de firmar que os EUA são uma potência em declínio. Dificilmente veríamos isso em texto da grande mídia.

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