Ao que tudo indica Joe Biden e Donald Trump disputarão novamente a presidência dos Estados Unidos nas próximas eleições de novembro. A última rodada das primárias americanas conhecida como Superterça selou a reedição da disputa de 2020 entre Donald Trump e Joe Biden para as eleições de novembro. É a primeira vez, desde 1912, que um ex-presidente disputa a presidência dos Estados Unidos com o presidente em exercício. Não se trata de mera coincidência. Na verdade, diz muito, não apenas sobre a personalidade de Trump, um aventureiro ambicioso que conseguiu pôr de joelhos o “velho grande partido” (GOP), como é conhecido o Partido Republicano, como também sobre as profundas mudanças pelas quais passa a sociedade norte-americana, sobretudo se levarmos em conta que Trump não é um candidato qualquer.
Trata-se, afinal, do primeiro ex-presidente dos Estados Unidos que está sendo processado, ao nível federal e estadual, não apenas por ter atentado contra a democracia em seu próprio país, ao tentar desqualificar o resultado do pleito em que foi derrotado em 2020 e estimular uma fracassada insurreição para impedir a posse de seu concorrente eleito, como também por uma série de outros crimes comuns. Ao todo, Trump responde por 91 acusações em quatro processos criminais. E mesmo assim não só conseguiu eliminar todos os seus competidores nas eleições primárias, tornando-se o virtual candidato do partido Republicano às próximas eleições, como aparentemente está à frente de seu provável concorrente democrata, o atual presidente Joe Biden, na preferência geral dos eleitores americanos.
Se partirmos do pressuposto razoável de que seus apoiadores não estão ao seu lado porque o considerem um criminoso, é de se supor que as pessoas simplesmente não acreditam que ele tenha cometido algum crime, preferindo ficar com suas próprias verdades, segundo as quais as eleições de 2020 foram realmente roubadas por Biden e os democratas e que Trump é vítima de perseguição do “sistema”. Também seria razoável supor que mesmo reconhecendo seus crimes, ainda assim, considerem-no como o candidato que melhor representa seus interesses.
Também é importante considerar que Trump, ao se assenhorar do Partido Republicano, não apenas mudou a natureza do próprio partido, até então o reduto preferido da elite e dos endinheirados norte-americanos, transformando-o em uma organização sectária que abriga não apenas os conservadores tradicionais, mas todo o tipo de negacionistas, cujo traço comum é a negação da ciência em geral, como também alterou radicalmente sua base de sustentação.
A base eleitoral do Partido Republicano é hoje majoritariamente formada pela chamada “baixa classe média”, ou seja, trabalhadores em geral de baixa renda, na maioria brancos, com baixo nível de escolaridade, que foram jogados ladeira abaixo na íngreme escalada da ascensão social pelos efeitos colaterais da globalização e das mudanças tecnológicas na produção de bens e serviços. São pessoas frequentemente cheias de ressentimento, que não sabem a quem atribuir sua desdita, para as quais o discurso oportunista de Trump contra os migrantes, contra a China e o resto do mundo, que ele acusa de “roubar os Estados Unidos”, cai como uma luva. Ao prometer fazer a “América Grande de Novo” alimenta nesses segmentos a vã esperança de voltar a um passado que já não existe mais. Como demonstram eventos históricos anteriores, esta é a base social de todos os movimentos fascistas que lograram empalmar o poder na Europa em meados do século passado.
A ligeira vantagem de Trump nas pesquisas atuais não são, contudo, um indicador seguro do resultado eleitoral de novembro próximo, mesmo porque os dois candidatos apresentam forte nível de rejeição por parte dos eleitores. Como observou editorial do jornal O Estado de S. Paulo (07/03), “Em seus quatro anos na presidência, Trump nunca atingiu 50% de aprovação. Hoje, de acordo com uma pesquisa da Fox News, sua taxa de desaprovação, 57%, só é superada pela de Biden, 59%”.
Além disso, devido às peculiaridades do sistema eleitoral dos Estados Unidos, o resultado das eleições de novembro próximo pode depender de fatores fortuitos que pouco têm a ver com a vontade dos eleitores expressa na contagem final dos votos em todo o país. Mais de uma vez, nas eleições dos Estados Unidos, candidatos derrotados por ampla margem na contagem geral de votos acabaram sendo eleitos por conta do sistema eleitoral indireto, no qual os eleitores que realmente contam são os delegados que cada candidato consegue amealhar em cada estado americano, os quais não guardam uma proporção direta com o número total de eleitores do país.
Na verdade, o resultado das eleições será em última instância definido pelos eleitores de meia dúzia de estados conhecidos como “swing states”, assim chamados porque oscilam de eleição para eleição entre democratas e republicanos. Na eleição passada, embora Biden tenha tido na contagem final cerca de cinco milhões de votos a mais do que Trump, o que realmente decidiu sua vitória foi ter conquistado um número maior delegados nesses estados que oscilam entre os dois partidos. Como observou a revista The Economist (09/03), “Da última vez [2020], 160 milhões de americanos votaram, mas Joe Biden venceu em Wisconsin, o estado do ponto de viragem, por 20.000 votos, ou 0,013% do total de votos expressos.”.
O fato é que a situação de Biden, apesar dos bons resultados econômicos, não é boa. Ele tem tido extrema dificuldade de obter o crédito pelos pontos positivos da economia americana e não consegue se descolar da responsabilidade pelos pontos negativos. Como afirma Michael J. Boskin, professor de economia na Stanford University, em artigo publicado no site Project Syndicate (12/3), “Biden está claramente frustrado por não obter crédito pelo baixo desemprego (que é de 3,9%), pelo forte crescimento (que atingiu uma taxa anualizada de 4,9% e 3,3% nos últimos dois trimestres de 2023) e pela desaceleração da inflação (3,2% em 2023). Ele aponta regularmente a Lei Bipartidária de Infraestrutura, a Lei de Redução da Inflação (IRA) e a Lei CHIPS e Ciência como sucessos revolucionários. Mas uma sondagem recente mostra que apenas 23% dos americanos pensam que suas políticas os ajudaram, em comparação com 53% que dizem ter sido prejudicados pela sua presidência. Para Trump, os números eram de 49% e 37%”.