Risco de default dos Estados Unidos revela que a economia sempre depende da política

Imagine um país cuja moeda não apenas é aceita, mas também desejada avidamente em todos os demais países do mundo. Uma moeda com que se pode comprar ou vender qualquer coisa em qualquer canto do mundo, que é usada para medir e comparar o valor de todas as coisas produzidas na face da Terra e que é o refúgio mais seguro para guardar a riqueza dos países e pessoas mais ricos do planeta, uma moeda que está para o funcionamento da economia global quase que como o ar e água estão para a vida no planeta. Qualquer um que dissesse que esse país teria problemas para pagar suas contas seria taxado de louco, uma vez que, no limite, bastaria imprimir mais moeda, a um custo praticamente zero, e utilizá-la para pagar qualquer dívida, no país ou no exterior.

Esse país e essa moeda existem: são os Estados Unidos e o dólar americano. E tem sido dessa forma que as coisas têm efetivamente funcionado nos últimos quase 80 anos, desde que, em 1944, na Conferência de Bretton Woods, o dólar substituiu a libra esterlina e o ouro, como a moeda internacional de referência. Não é por outra razão que os Estados Unidos, desde então, ano após ano, acumulam déficits comerciais gigantescos que, em 2022, alcançou quase um trilhão de dólares. É que, diferentemente de nós, mortais comuns, que precisamos vender 50 sacos de soja para obter os dólares necessários para importar um mísero iPhone, os Estados Unidos resolvem o problema de forma bem mais simples: imprimem dólares e compram o que quiserem mundo afora.

Pois não é que, apesar de todas essas facilidades, só possíveis pelo que ficou conhecido como “privilégio exorbitante”, os Estados Unidos estão na inimaginável situação de dar um calote em sua dívida pública, paralisar atividades essenciais do governo e provocar ondas de choque na economia mundial com resultados imprevisíveis, porque a Câmara dos Representantes, agora dominada pelos republicanos, nega-se  a expandir o limite da dívida do governo, que chegou em janeiro ao limite estabelecido pelo Congresso dos Estados Unidos, limite esse politicamente determinado para o total de empréstimos federais brutos, atualmente em US$ 31,4 trilhões.

Afora evidenciar o quanto a polarização política extrema hoje existente nos Estados Unidos corrói a sociedade americana, a negativa dos republicanos em permitir a ampliação do limite da dívida, algo que seria absolutamente normal, até porque para se manter como proporção constante em relação ao PIB, que aumenta todos os anos, é de se esperar que o valor total da dívida também aumente na mesma medida,  revela o quanto o funcionamento da economia, nos Estados Unidos e em qualquer outra parte do mundo, depende o tempo todo da política. Isso porque a economia, diferentemente dos que pensam ser uma condição natural da sociedade humana, não funciona no vazio e depende de todo um arcabouço institucional para funcionar, o qual é decorrente fundamentalmente da atividade política.

Não há, portanto, nada de “natural” na economia, seja as finanças, o dinheiro, as empresas, o direito de propriedade, os direitos sociais, as relações de trabalho, o valor das coisas, a concorrência entre as empresas, enfim, o próprio mercado como um todo. São todas construções sociais condicionadas pelas relações de poder existentes na sociedade, mediadas pelo estado, que se traduzem em leis e instituições que não têm nada de eternas nem de naturais, podendo ser alteradas conforme mudem essas relações e cuja expressão maior é a política. Leis, instituições, regimes políticos e modos de produção nascem, transformam-se e, algum dia, morrem. O que nunca morre é a política.

Como afirmam William Mitchell e Thomaz Fazi no livro Reclaiming the State, “nós podemos concluir que a noção de finanças como um poder amorfo que existente independentemente do Estado é totalmente infundada. As finanças apenas comandam porque as instituições políticas criaram um sistema regulatório compatível com o processo de reprodução capitalista sob o seu comando (…) A globalização, mesmo em sua forma neoliberal, não é o resultado de uma dinâmica intrínseca do capitalismo ou dirigida pela tecnologia que inevitavelmente leva à redução do poder do Estado como frequentemente se afirma. Ao contrário, é um processo que foi ativamente delineado e promovido pelos Estados (e pelos Estados Unidos em particular, embora isso pareça estar mudando), (…) Mesmo a globalização em sua forma neoliberal continua a depender das instituições políticas e de iniciativas políticas para lançar o neoliberalismo e mantê-lo funcionando frente às falhas de mercado, tendências de crise, e resistência como ficou claro pela resposta dos governos à crise financeira de 2007-2009”.

Até pelo estrago que um eventual calote provocaria na economia e na própria reputação internacional dos Estados Unidos, é provável que se chegue a algum acordo antes de 05 de junho, quando, segundo o Tesouro dos Estados Unidos, o dinheiro acaba e a diferença entre o que governo arrecada e o que o governo gasta a cada mês ficará a descoberto, obrigando o governo a deixar de pagar os títulos da dívida vincendos ou outras despesas internas, como o Medicaid, que subsidia o atendimento de saúde para a população idosa e outras despesas do governo.

A condição que os republicanos estão impondo ao governo Biden para autorizarem um aumento do limite da dívida para os próximos dois anos é cortar gastos sociais, aumentando as exigências para os trabalhadores desempregados receberem auxílio de alimentação, os chamados “Food Stamp”. Alegam que não faz sentido pegar dinheiro emprestado da China e outros compradores dos títulos do Tesouro americano para pagar benefícios sociais para pessoas que poderiam estar trabalhando caso não recebessem esses auxílios do governo.

O que está por trás disso é a reclamação das empresas, que estão sendo obrigadas a oferecer salários maiores pois precisam “concorrer” com os programas sociais do governo para contratar trabalhadores. Aumentar as exigências para ter acesso aos auxílios obrigaria os trabalhadores a aceitarem empregos que não estariam dispostos a aceitar caso tivessem alguma alternativa. Como se vê, portanto, tudo depende da política.

Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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