Depois de mais de três décadas de discussão, a primeira etapa da reforma tributária, aprovada no início da madrugada de 7 de julho, na Câmara dos Deputados, tem como foco o consumo, mas já traz algumas mudanças na taxação da renda e do patrimônio. Ao adotar os princípios da cobrança no destino, da não-cumulatividade e da simplificação, a reforma aprovada enfrenta três problemas graves do sistema tributário brasileiro que são a cobrança do imposto sobre consumo (ICMS) na origem, a cumulatividade e a complexidade.
A atual sistemática de cobrança do ICMS no local de origem do produto, além de concentrar a arrecadação do principal imposto estadual nos estados mais industrializados do país, nomeadamente em São Paulo, gera uma série de outros problemas como a dificuldade de empresas exportadoras reaverem os impostos pagos ao longo da cadeia produtiva quando o produto era exportado. Além disso, a falta de regulamentação por parte da União sobre as regras de cobrança do imposto pelos demais entes federados deu origem à chamada “guerra fiscal”, por meio da qual, para atrair novos empreendimentos para seus territórios, os estados oferecem isenções para empresas que aceitem ali se instalar, dando origem a um verdadeiro leilão promovido pelas empresas para ver quem lhes oferece as condições mais vantajosas. No fim todos perdem: os estados que perdem os investimentos, os estados que “ganham” os investimentos, mas ficam sem os impostos em troca de promessas frequentemente enganosas de geração de empregos, uma vez que muitos desses empreendimentos são altamente automatizados.
Essa mesma falta de regulamentação permitiu que cada estado estabelecesse alíquotas diferentes para produtos idênticos, criando um cipoal de regras e normas que obrigavam as empresas a gastarem mais tempo e recursos para o cumprimento de suas obrigações tributárias que suas concorrentes em outros países. O Brasil lidera o ranking dos 190 países em que as empresas mais gastam tempo apenas para cumprir suas obrigações fiscais. No país, são necessários em média 1.501 horas de trabalho ao ano – valor quase 50% maior que o segundo colocado, a Bolívia e seis vezes maior que a média mundial
A reforma simplifica o sistema tributário brasileiro, unificando cinco impostos e contribuições sociais (ICMS, ISS, IPI, PIS-PASEP, Cofins) em um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) que será dividido em dois: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), destinada à União, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), para os estados e municípios. Diferentemente do que acontece hoje em alguns setores, a CBS e o IBS não se acumularão ao longo do processo produtivo, sendo cobrados por fora e somente sobre o valor agregado em cada etapa da cadeia produtiva.
A parcela que caberá aos estados e municípios será administrada por um comitê gestor que se encarregará de fazer a divisão do montante arrecadado entre Estados conforme o local de cobrança do imposto. E aí começam os problemas. A reforma está criando assim um “ente” que não é a União e nem os Estados que além de ter poderes para distribuir a arrecadação do novo imposto poderá propor mudanças na legislação que trata do assunto. Tal solução vem sendo objeto de fortes críticas de tributaristas e ex-secretários da receita federal que estão qualificando a reforma como a pior já realizada no Brasil.
Em artigo publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de S. Paulo, afirma que “São vários os seus defeitos. Propõe-se um modelo de gestão para o Imposto de Bens e Serviços (IBS) que é inconstitucional e gera incentivos econômicos perversos. O chamado Conselho Federativo terá mais poder que qualquer governador de Estado. Vai arrecadar, normatizar, regulamentar, mandar lei complementar para tratar do novo tributo, partilhar as receitas e devolver créditos aos contribuintes. E não se trata apenas de uma questão federativa (para quem acha pouco). É preciso dizer que a criação de uma estrutura como essa para garantir a devolução de créditos aos contribuintes estimulará a fraude, erodindo o erário. Se o crédito vai ser pago de modo automático, sem fiscalização ex-ante, então cabe perguntar: o que impedirá empresas de emitirem notas frias para fabricar direito a crédito? Só a atuação intensa dos Fiscos para evitar esse risco. Mas, se o conselho os substituirá, na prática, comandando todas as administrações tributárias estaduais, então, por favor, apaguem a luz antes de sair. A crítica ao Conselho Federativo é política, jurídica e econômica. Há tempo para corrigir essa sandice.”
Além disso, o texto final aprovado pela Câmara abriu brecha para que estados exportadores de produtos primários e semielaborados, como commodities agrícolas e minerais, possam instituir novos impostos sobre a exportação desses produtores, o que redundaria em elevação da carga tributária. A expectativa é que tais problemas possam ser melhor analisados pelo Senado, que deverá votar a proposta enviada pela Câmara.
É preciso destacar ainda que a parte da reforma aprovada pela Câmara e agora sob análise do Senado apenas tratou dos impostos indiretos, cobrados sobre o consumo, e alguns poucos impostos diretos (herança, imóvel e veículos automotores), tendo deixado para uma segunda etapa as mudanças nos impostos diretos que incidem sobre a renda e o patrimônio. Os impostos indiretos, cobrados sobre o consumo, são considerados impostos regressivos, uma vez que oneram desproporcionalmente a população de baixa renda, uma vez que os trabalhadores mais pobres gastam praticamente toda sua renda com consumo, enquanto a parcela mais rica da população gasta apenas uma pequena parte de seus rendimentos nesse quesito alocando parte de sua renda em ativos reais ou financeiros que em alguns casos sequer pagam impostos. Dada a composição conservadora da Câmara e do Senado, é pouco provável que mudanças nos impostos diretos que impliquem em uma taxação progressiva ou até mesmo proporcional dos mais ricos consigam ser aprovadas. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), defendeu para uma plateia de empresários, em São Paulo, em 24/7, que o debate sobre a taxação dos “super-ricos” seja feita somente depois da promulgação da reforma tributária, ou seja, nunca.