Artigo publicano no Portal Frente Sol da Pátria
Freyre! O inventor do “mito” da “democracia racial”! Não é isso que ouvimos? Tudo besteira, groselha pura, conversa fiada de quem nunca leu a obra do pernambucano.
A sociologia do conflito, de forte teor marxista, criticou a abordagem culturalista de Freyre, abusando de retórica e caindo em um conflito geracional que, com o tempo, divulgou uma versão caricatural da obra do mestre pernambucano.
O surgimento de movimentos ativistas que emulam as teorias e práticas norte-americanas, buscando ler o Brasil por uma ótica e um processo histórico bastante diverso do nosso, completam o quadro de distorção e difamação da obra do autor de Casa Grande & Senzala.
Constatamos no capítulo quatro desta obra que Freyre compara a nossa realidade social e cultural com a dos EUA, país em que estudou como aluno do antropólogo Franz Boas. Nada disso implica em negar os malefícios da escravidão nem mesmo em enaltecer o sistema escravagista brasileiro. Seu escopo era superar a abordagem racista predominante, e demonstrar que as relações raciais construídas no Brasil tinham potencial inclusivo muito superior ao da América anglo-saxã.
O cerne da argumentação de Freyre é que, para o bem ou para o mal, o sistema escravocrata deixou profundas marcas sociais, culturais e até religiosas e afetivas na sociedade e no comportamento do povo, inclusive nas relações interpessoais. A chaga da escravidão (assim como, em outros povos, o fizeram as guerras, a calamidade, a opressão) moldou em algum grau nosso caráter e formou aquilo que somos.
Milhões de africanos chegaram ao solo nacional e a maior parte deles veio em navios negreiros, de modo que é impossível estudar a contribuição cultural dos povos africanos ao Brasil sem incluir na equação o contexto escravista. O que fazer com esse legado?
”Sérgio e Prudente conhecem de fato literatura inglesa moderna, além da francesa. Ótimos. Com eles saí de noite boemiamente. Também com Villa-Lobos e Gallet. Fomos juntos a uma noitada de violão, com alguma cachaça e com os brasileiríssimos Pixinguinha, Patrício, Donga”.
Gilberto Freyre registra em seu diário, descrevendo a primeira visita que fez ao Rio, em 1926.
”Ontem, com alguns amigos — Prudente, Sérgio — passei uma noite que quase ficou de-manhã a ouvir Pixinguinha, um mulato, tocar em flauta coisas duas de carnaval, com Donga, outro mulato, no violão, e o preto bem preto Patrício a cantar. Grande noite cariocamente brasileira. Ouvindo os três sentimentos o grande Brasil que cresce meio-tapado pelo Brasil oficial e o postiço e ridículo de mulatos a quererem ser helenos (…) e de caboclos interessados (…) em parecer europeus e norte-americanos; e todos bestamente a ver as coisas do Brasil (…) através do prince-nez de bacharéis afrancesados”.
O mesmo Freyre, citando o encontro, em artigo do Diário de Pernambuco publicado em setembro de 1926.
Isso foi escrito numa época em que as doutrinas racistas de Arthur de Gobineau eram amplamente discutidas e aceitas. O racismo científico apresentava um dilema civilizacional e realmente existencial (“to be or not to be”…) às classes pensantes brasileiras, frequentemente elas próprias mestiças. Ora, uma das contribuições mais aclamadas de Gilberto Freyre para os estudos sócio-culturais e históricos no Brasil foi a inversão do significado da mestiçagem.
Até então considerada uma calamidade por boa parte da elite do país, que até suportava com estoicismo nossas origens e mesclas indígenas, mas lamentava profundamente a presença de pretos e mulatos na composição nacional (ou mesmo em seu próprio meio), Freyre mudava a equação, como um sol novo raiando no horizonte.
A força do país estava justamente em sua capacidade de cruzar raças e gestar algo novo dessa mescla, e a composição a contribuição africana (Freyre a enfatizava) havia sido fundamental. Pode-se argumentar igualmente em prol de uma contribuição ameríndia também, mas, de qualquer forma, eis aí uma revolução na forma de encarar a população brasileira e que iria sacudir o ‘vira-latismo’ até então onipresente.
Nesse sentido, a América anglo-saxã, que era a base de comparação com que os intelectuais pátrios se debatiam e continuaram se debatendo ao longo das décadas, saía perdendo. Desde o século XIX, intelectuais brasileiros admiravam o protestantismo anglo-saxão e os EUA como uma espécie de modelo de sociedade no Novo Mundo (mesmo Ruy Barbosa demonstra, em vários momentos, essa admiração). O Brasil, para inserir-se no mundo civilizado, precisava, então, abraçar as ideias herdeiras do Iluminismo (que incluíam o racismo científico e a eugenia), repudiar o catolicismo da maioria da população e adotar o protestantismo anglo-saxão, suprimir manifestações culturais associadas à negritude e promover o branqueamento da população via estímulo à migração europeia.
O tema da mestiçagem, hoje negado por pós-modernos, é importante para toda a América Latina, em cujos países, frequentemente mais de 50% da população se define como “mestiza” ou mestiça. Cantado pelos nossos sambistas e por amplas manifestações culturais populares, o processo histórico da mestiçagem no Novo Mundo criou identidades, criou Povos Novos e um Mundo Novo, marcado pelo sangue, pelas injustiças, pela opressão e todo o drama da existência humana e também marcado pelos sonhos, pela negociação, afetos e pela utopia.
Este é o nosso mundo, estes somos nós e estes são nossos antepassados.
Viva o Brasil! Viva Gilberto Freyre!
PÃO, TERRA E TRADIÇÃO!
O tema da mestiçagem , amplamente discutido por Gilberto Freire , ofereceu grande contribuição sociológica à compreensão da relação entre o negro e o branco no Brasil e todos os seus desdobramentos. É impossível desconsiderar este estudo e sua respectiva análise como querem alguns na atualidade.